Cristiano
Romero
Beneficiários
de privilégios bloqueiam o debate do tema
Ao
participar de evento promovido pelo Valor e o banco Santander em outubro, em
São Paulo, o ex-presidente Barack Obama disse, a respeito de como lidar com o
aquecimento global, que pode debater com quem acredita que as regras de mercado
sejam a melhor solução para tratar do problema ou, então, ficará muito caro.
"Mas, ligo, sim, se você me disser que a temperatura do planeta não está
aumentando, porque 98% dos cientistas dizem que está", observou Obama.
O
debate sobre a necessidade de mudança das regras de aposentadoria no país
lembra o exemplo dado pelo ex-presidente americano: aqui, muitos batem no peito
para dizer que o déficit da previdência da União (INSS mais regimes próprios do
funcionalismo público federal) - que neste ano deve chegar a R$ 270 bilhões -
não existe e é apenas uma armação das elites para piorar a vida dos pobres e
melhorar a dos banqueiros...
O
mesmo tipo de argumento marcado pela desonestidade intelectual é usado em
debates de outros temas, como o acesso gratuito dos ricos a universidades e
hospitais públicos; a manutenção sob o manto do Estado - sem nenhuma
justificativa - de uma miríade de empresas estatais; a concessão inaceitável de
privilégios a determinadas categorias de funcionários públicos - dentre os
quais, destacam-se as férias de dois meses para juízes e procuradores, fora o
pagamento de auxílio-moradia mensal de R$ 8.500 e outras benesses -; a oferta
de empréstimos subsidiados, com dinheiro público, a grandes empresas nacionais
e multinacionais com acesso a dinheiro barato no mercado de capitais e no
exterior etc.
Se o distinto interlocutor afirma, no
início da conversa, que não existe déficit da previdência, o debate é
automaticamente interditado. Se diz ainda que a previdência é deficitária
porque os governos, em conluio com os financiadores de campanhas eleitorais,
deixam a roubalheira comer solta, é porque não quer saber de debate. Seu
objetivo é embaralhar as cartas do jogo antes de o jogo terminar.
Se
há uma boa definição para reacionário, eis um exemplo: o sujeito que,
geralmente pensando apenas em vantagens pessoais, se põe contra ideias que
defendam importantes transformações político-sociais. Não se tenha dúvida:
ignorar o gigantesco problema da Previdência no Brasil é, além de desonesto e
anti-ético, dar uma vergonhosa contribuição para a inviabilidade do
financiamento da saúde e da educação públicas - de onde já sai e sairá o
dinheiro para pagar as aposentadorias - e, assim, condenar à miséria e ao
atraso o futuro de milhões de crianças e jovens, solapando as poucas chances
desta nação de se tornar menos injusta.
O
problema dos reacionários interessados é que eles têm enorme força para fazer
barulho em Brasília e, assim, amedrontar parlamentares e impedir mudanças. As
consequências são sempre nefastas. O Brasil debate a necessidade de mudar os
rumos da previdência social e do funcionalismo desde o início dos anos 1990.
Isso mostra o poder daqueles que, beneficiários de privilégios concedidos - não
foram adquiridos, no sentido jurídico da palavra, resultado de conquistas
políticas e justas - e mesmo sendo uma minoria entre os trabalhadores e
evidentemente na população, sempre bloquearam as discussões sobre o tema: os
funcionários públicos federais.
Para
quem chegou agora, alguns números: a previdência do funcionalismo público
federal, que paga benefícios a menos de 1 milhão de pessoas, deve fechar este
ano com déficit (resultante da diferença entre as contribuições de servidores
ativos e inativos e o gasto com aposentadorias e pensões) de R$ 85 bilhões. Já a
Previdência Social, que por meio do INSS paga benefícios e pensões a cerca de
30 milhões de brasileiros, terminará o ano com déficit estimado em R$ 185
bilhões.
Somados,
os dois déficits montam a algo como 4,5% do PIB, dinheiro que consome 55% da
receita líquida da União. Se nada for feito, daqui a dez anos apenas essa
despesa responderá por 80% do gasto da União, de onde se conclui que, se já
faltam recursos hoje para bancar educação e saúde públicas de qualidade,
imaginem em 2027. Obviamente, faltará dinheiro também para muitas outras
despesas, especialmente, para programas sociais discricionários, como o Bolsa
Família, que, mesmo beneficiando um universo de 50 milhões de pessoas, é
baratinho - custa R$ 27 bilhões ao ano - perto do que a sociedade despende com
aposentadorias, especialmente as dos funcionalismo.
Quando
se organizam para minar o debate da reforma, as corporações acabam atingindo
pontos que não lhes dizem respeito diretamente. É a tática de defesa dos
"interesses" dos pobres, sem falar abertamente dos seus. Por causa
disso, o projeto original do governo foi esquartejado, de forma que a nova
proposta, embora já represente algum avanço, não seja suficiente para
estabilizar o déficit da Previdência Social, segundo cálculos da equipe de
economistas do banco Credit Suisse, liderada por Nilson Teixeira.
"No
projeto original, o crescimento real médio dos gastos recuaria para 1,7% ao
ano, estabilizando o déficit da Previdência Social em 3,6% do PIB em 2027,
patamar projetado para 2017. Essa projeção corresponde a gastos em 2027 21%
acima dos registrados em 2017, em termos reais", revela o "Cenário
Brasil", o estudo mais completo sobre as perspectivas da economia
brasileira, lançado por Teixeira e sua equipe todo fim de ano - o que acaba de
sair do forno tem 320 páginas, dezenas delas dedicadas, ao incerto cenário
político de 2018.
"Na
nova proposta [da reforma da previdência], o crescimento real médio dos gastos
diminuiria para 3,6% ao ano entre 2017 e 2027. O déficit alcançaria 5,0% do
PIB, e os gastos com a Previdência Social em 2027 seriam 43% acima dos
registrados em 2017, em termos reais", compara o estudo. Teixeira estima
que, se a reforma ficar para 2019, a economia de recursos que seria gerada
pelas mudanças será 3,7 pontos percentuais do PIB menor que a original, algo
como R$ 220 bilhões.
Valor
Econômico
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