domingo, 31 de janeiro de 2016

O medo como instrumento de manipulação

Muito Além das Palavras e Sentimentos

O medo, ao longo da história, pode ser analisado nos mais diversos campos, sendo administrado para controlar e manter a ordem.

Por ser uma emoção tão forte o medo vem sendo utilizado ao longo da história humana como uma das mais eficientes formas de manipulação. Quando tememos muito por algo e não temos coragem de enfrentar, acabamos fazendo qualquer coisa para nos livrar dessa sensação incômoda.

No entanto, no campo religioso ele é mais visível e pode ser muito contributivo para o estudo da manipulação em massa. 
Analisar a manipulação através do medo não tem por principio desrespeitar a escolha do outro, e sim lançar um olhar crítico e isento.

Medo, culpa e castigo seria uma tríade histórica nos processos de evangelização. Por trás da manutenção e crescimento dos movimentos religiosos, pode-se claramente observar a estratégia do "medo" como instrumento de manipulação. 

O ser humano tem pavor do desconhecido.

A partir dessa premissa o medo foi sofisticado, sendo criado o misticismo – misticum provém da mesma raiz latina de misterium. 
O sistema de criar um mundo que não pode ser visto ou controlado por simples mortais,  dá um poder infinito àqueles que dizem que conseguem manipula-lo.

Devido à força que o misticismo possui, ele acabou sendo institucionalizado em forma de religiões. Hoje, elas estão aí para provar o poder que o desconhecido pode exercer sobre nós.

A religião atua no medo mais profundo do ser humano, que é o medo da morte.
Essa manipulação das massas é o mais forte instrumento de dominação dos povos. Ela anestesia as pessoas, mediante a alienação, ao invadir a mente de cada uma delas, com ideais de salvação.
"O horror visível tem menos poder sobre a alma do que o horror imaginado."  - William Shakespeare

Deus não é para ser amado, é para ser temido. Não é a toa que o cristianismo católico utiliza-se da imagem da crucificação de cristo como símbolo. Nada mais assustador que visualizar sistematicamente o flagelo do Cristo, exposto em suas entranhas, nos lembrando de "nossa culpa".

Afinal, ele morreu para nos salvar!

Medo, Culpa, Castigo...

Eis o mistério da fé!

Para os espiritas, existe a tão temida região do Umbral. Segundo os espiritas, o Umbral nada mais é do que o reflexo dos pensamentos, desejos e vontades de inúmeras pessoas semelhantes, em seus sentimentos negativos. Estes sentimentos intoxicam a alma e dificultam ou impedem que estas pessoas sigam para as regiões superiores.

Portanto, observem bem, pensamentos, desejos, e sentimentos, podem levá-lo direto para Umbral, onde você experimentará dores insuportáveis em um ambiente depressivo, angustiante, de vegetação feia, sujo, escuro, de clima e ar pesado e sufocante. Uma região terrível e horripilante.

É exatamente a partir dessa imagem, que você cede a toda e qualquer crença espírita.

Mais uma vez, a manipulação pelo medo.
"O medo dos poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos, chama-se religião." -Thomas Hobbes

Para os budistas, o medo vem travestido de sofrimento. Buda ensina que o sofrimento não surge 'por acaso', nem é um castigo imposto por um 'ser superior' em decorrência de nossos 'pecados'. Sua origem não está em coisas externas como a sociedade, a política e a economia; estas são causas secundárias, reflexos externos de nossas delusões internas.

Para Buda, o sofrimento é causado pelo apego ao desejo e ao intenso 'querer' do ser humano, a sede de prazeres físicos, uma ânsia que nunca pode ser plenamente saciada e que, portanto, sempre irá provocar um sentimento de desprazer. 
Desta forma, fica claro que para os ensinamentos budistas, devemos seguir certas regras (Verdades) se quisermos viver felizes. O que não deixa de ser uma forma de manipulação, baseada no medo do sofrimento.

O super dimensionamento do medo leva a estagnação, furta a possibilidade de experiências com outras dimensões da vida, oblitera a liberdade de consciência, coage e inibe o desenvolvimento da personalidade, dos relacionamentos, inclusive reprime os demais sentimentos.

"Se as pessoas são boas porque temem uma punição ou porque esperam uma recompensa, então somos todos, de fato, uma espécie lamentável" - Albert Einstein

O pior dos medos a nós incutidos, é o medo do pecado (ou do sofrimento gerado pelo pecado). O pecado é visto como um ato contrário à razão, à verdade, à consciência reta. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana. Pode-se dividi-los em pecados por pensamento, palavra, ação ou omissão, e segundo o catecismo, a raiz do pecado está no coração do homem, em sua livre vontade.

Entenda-se "pecado" como o profundo medo de não seguir o que está pré-estabelecido na religião. O mesmo serve para o "sofrimento" budista, ou para o Umbral espirita, por exemplo.

A premissa é sempre a mesma, se você não seguir os pressupostos de uma determinada religião, vai padecer. 
Essa é sem dúvida, uma forma eficaz de manipulação em massa. Milhares de pessoas abrem mão de sua liberdade, de seu livre pensar, de seu discernimento, para seguir dogmas que lhes são impostos.

"Você não necessita de religião institucional para estabelecer espiritualidade. Há muitas pessoas fora desse sistema que estabeleceram densa espiritualidade." - Leandro Karnal

Os medos reais sendo potencializados e fortalecidos pelos poderes espirituais em ralação aos quais as religiões afirmam ter domínio em nome de Deus.

Tudo passa pelo crivo dos sentimentos, especialmente do medo, da culpa e do castigo, assim a manutenção ocorre, em nome da ignorância, falta de discernimento e apatia, quanto aos males provocados pela falta de liberdade.
O medo de padecer massifica, tolhe e limita nossas escolhas. Nos tira a verdadeira essência da alma, sem liberdade para desejar, ter pensamentos próprios, ser o dono de nossa vontade ou simplesmente de sentir.

"Onde o medo está presente, a sabedoria não consegue estar." -  Lucius C. Lactantius

A Absolutização da ignorância faz com que milhares se submetam ao carisma reificado que rouba a palavra da pessoa humana, relegando-a a uma condição de não perceber e resolver seus próprios problemas sem passes de magia. 

O medo, como instrumento de manipulação, é uma força coletiva exercida sobre um indivíduo, que faz com que este aja e viva de acordo com as normas e regras, sem nada questionar.

" Pessoas assustadas, são pessoas dóceis." - Leandro Karnal




Reencarnação como expressão maior da justiça

Federação Espírita do Paraná

“A doutrina da reencarnação é a meu ver a maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é oportunidade de evolução.”

A afirmação é do jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça (2002); professor titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo (USP); Secretário de Administração do Estado de São Paulo (governo de Mário Covas Jr. – 1995/2001); Secretário de Segurança Pública do Estado (governo Franco Montoro – 1983/1987), entre outros títulos, além de escritor e membro da Academia Paulista de Letras.

Com doutorado pela mesma USP em 1971, o professor Reale Júnior foi autor de texto publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 3 de janeiro de 2009, no qual, sob o título “Razão e religião”, expôs as mudanças conceituais de Cesare Lombroso, cujo centenário de desencarnação ocorre em 2009, provocadas pelo estudo do Espiritismo. Lombroso notabilizou-se pela formulação da hipótese de que o criminoso seria fruto de um atavismo, demonstrado em suas feições físicas.
Na entrevista, Miguel Reale Júnior revela que frequenta reuniões mediúnicas há 30 anos; dá dados e raízes familiares em torno do meio, outras de ordem política e fala de sua atuação no campo do direito e especificamente da luta para levar a justiça a maior número de brasileiros.

“Venho lutando para se dotarem os presídios de oficinas de trabalho, a fim de que o preso possa sentir que, se perdeu a liberdade, não perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho”, diz. Acrescenta que:
“A evolução espiritual não encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do cão, dos chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de Execução Penal são apenas “para inglês ver”.

O senhor mostra em seu artigo ter uma leitura acurada dos livros de Allan Kardec, com expressões típicas, como livre-arbítrio e determinismo. Como e por que se deu esse interesse?
Posso dizer que tenho grande interesse religioso. A história das religiões e as religiões em geral são objeto de minhas indagações. O meu interesse pelo Espiritismo e por Kardec, que conheço apenas pela rama, vem desde a juventude. Meu interesse pelo Espiritismo nasceu pelo exemplo de meu avô materno, o engenheiro José Pucci, que realizava sessões de mesa branca em sua casa da Avenida Paulista. Sua morte, aos 98 anos, foi uma lição. Certa manhã, pediu para ser inteiramente despido. Logo que estava sem roupa, sorriu e disse que iria morrer como nascera. Em seguida faleceu.

Na troca de correspondência virtual que mantivemos, o senhor revela “ter continuamente experiências que firmam minha convicção”. Poderia nos aclarar quais são essas experiências?
Há 30 anos frequento regularmente a casa de uma senhora já com seus 80 anos, na Mooca, extraordinária pessoa e médium que recebe Espírito integrante de corrente liderada pelo Espírito de um jovem tenente da Força Pública de S. Paulo.
Tenho por padrinho espiritual a figura de eminente e combativo homem público e jurista brasileiro falecido no primeiro quartel do século passado.
Tenho tido experiências reveladoras e mesmo comoventes.
Ademais, recebi, anos atrás, de amigo penalista de Curitiba o aviso para se possível visitar a Instituição Lar Escola Doutor Leocádio José Correia, do Dr. Maury Rodrigues da Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas. Lá estive em três oportunidades, tendo tido a possibilidade de ser atendido pelo médium Dr. Maury e me aconselhado com o Dr. Leocádio.
Em Brasília, estando à frente do Ministério da Justiça, estive no centro espírita no qual atendia o ministro general Cardoso (1), que como médium recebia o Espírito de um médico. O general Cardoso, quando de minha saída, em vista do recuo do presidente quanto à intervenção no Estado do Espírito Santo (2), prestou-me aberta solidariedade.

O senhor tem defendido uma democratização da justiça, de modo a fazê-la chegar a amplas camadas da população. Como se trata de um princípio de igualdade, quais os principais obstáculos para se avançar mais rapidamente nesse objetivo?
A maior dificuldade está na falta de sensibilidade e de vontade política. Os caminhos para uma Política Criminal de cunho social estão traçados. Sugerimos vários programas em nosso Diagnóstico do Sistema Criminal Brasileiro elaborado a pedido do Ministério da Justiça em 2000. Quando no ministério, em minha rápida passagem em 2002, deixei prontos para serem implementadas iniciativas como criação de plantões sociais nas delegacias de polícia, com a presença de estagiários de psicologia e de serviço social. O programa seria financiado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria). Saí e nada foi feito pelo meu sucessor, nem por Márcio Thomaz Bastos, ao qual dei toda a indicação do programa, denominado Indústria da Paz.

Outro programa consistia na união de esforços dos ministérios da área social, na transformação das escolas em centros de convivência, nas regiões pobres das grandes cidades. Houve por nossa iniciativa a primeira reunião dos ministros da área social. Saíram entusiasmados. Logo depois deixei o ministério e a ideia morreu.
Hoje me dedico à assistência às mulheres vítimas de violência sexual. O nosso escritório dava assistência jurídica às mulheres atendidas pela Casa da Mulher, instituição da Escola Paulista de Medicina. A Casa agora fechou por serem encaminhadas as vítimas exclusivamente ao hospital Pérola Bayton.
Tentamos apoio do governo federal para assistir às 200 mulheres que mensalmente se apresentam no hospital. Foi considerado irrelevante o programa.
Muito pode ser feito com pouco dinheiro. Mas, repito, falta vontade política, até mesmo para o crescimento e fortalecimento da Defensoria Pública.

O sistema judiciário e prisional carrega ainda a tendência da simples aplicação da penalidade ao agente do crime. Sob os aspectos social e espiritual, aqui no sentido espírita, aberto ao crescimento do Espírito, a punição sem educação resolve o problema da Sociedade?
Como um dos autores da Lei de Execução Penal e presidente da comissão que elaborou uma proposta de modernização da lei, venho lutando para se dotar os presídios de oficinas de trabalho a fim de que o preso possa sentir que, se perdeu a liberdade, não perdeu a dignidade, a ser mantida pelo trabalho. Outro ponto essencial e muito descurado é a assistência ao egresso. Em uma semana em liberdade, sem acolhida e auxílio, desfaz-se todo o possível esforço de ensino, trabalho, e de eventual assistência social, psicológica ou religiosa. Daí ser importante a ação dos patronatos, também prevista na Lei de Execução Penal.
A punição não promove o crescimento e a mudança, que devem partir do próprio condenado, mas desde que lhe sejam abertos os caminhos para sua decisão de palmilhá-los. A evolução espiritual não encontra terreno fértil no meio prisional, onde vigora a lei do cão, dos chefetes de cadeia, enquanto o regulamento administrativo e a Lei de Execução Penal são apenas “para inglês ver”.

As conclusões de Cesare Lombroso, na segunda fase de sua vida, praticamente desfazendo o peso do atavismo no criminoso, têm sido consideradas nos julgamentos forenses?
Os resquícios do critério de periculosidade foram em grande parte eliminados na Nova Parte Geral do Código Penal, de cuja elaboração participei.
O Código Penal de 1.969, revogado antes de entrar em vigor, trazia a figura do criminoso por tendência. Mantém-se a figura no Código Penal Militar, mas na prática sem efetividade. A periculosidade, no entanto, retornou com a criação do Regime Disciplinar Diferenciado, que enclausura o condenado e constitui um regime enlouquecedor. Os aspectos antropológicos, no entanto, não são mais levados em conta. Faz-se apenas um juízo de periculosidade real consistente na probabilidade da prática de delitos no futuro, em uma avaliação livre com elevada discricionariedade.

“Nos tempos de barbárie são os mais fortes que fazem as leis e eles as faziam para si. (…) As leis humanas são tanto menos instáveis quanto mais se aproximam da verdadeira justiça, isto é, à medida que são feitas para todos e se identificam com a lei natural” (O Livro dos Espíritos). À luz do direito contemporâneo, o senhor identifica progressos na legislação ou ainda há muito caminho a ser percorrido?
No campo penal há o que se denomina “expansionismo penal”, criminalizando-se condutas sem maior relevo, pois o Direito Penal não mais visa proteger bens jurídicos, buscando apenas determinar condutas de modo simbólico, transformando-se em um direito de ordenação, despreocupado em se limitar à tutela de valores fundamentais. A desobediência a regras de interesse da Administração passa a ser crime. Vulgariza-se a incriminação em uma sociedade sem controles informais (família, escola, igreja, sindicato, vizinhança). O Direito Penal passa a ser a tábua de salvação de uma sociedade sem exemplos, sem limites. O Direito Penal regride.

A 3ª Parte de O Livro dos Espíritos, enfocando as chamadas Leis Divinas ou Naturais, é apontada por pensadores espíritas como uma excelente proposta de jusnaturalismo (3), onde Allan Kardec amplia o conceito de Direito Natural dando-lhe uma dimensão transcendente, a partir do pressuposto da imortalidade do Espírito. Até que ponto lhe parece que o aprofundamento dessa reflexão poderia enriquecer o estudo da Filosofia do Direito, nos dias de hoje?
Tenho uma posição historicista dos direitos humanos, mas não relativista. Pode-se dizer com Kardec: “A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela pouco a pouco”. Os Direitos do Homem, desde 1.789, foram ganhando foro de verdade. Parece hoje que são revelados, mas foram conquistados e se inserindo em nossa consciência em um processo evolutivo. A questão atual não é falta de declaração dos direitos, constantes tão claramente do art. 5° de nossa Constituição, e sim de dar efetividade aos mesmos. Acrescidos no processo histórico à consciência dos homens transformaram-se na expressão de meu pai em “invariantes axiológicas”.

Quando Allan Kardec indagou de seus interlocutores espirituais qual seria o principal fundamento da teoria da reencarnação, estes lhe responderam ser a Justiça. Admite o senhor que a tese da reencarnação, hoje expressamente repelida pelo Cristianismo, pode melhor se adequar aos anseios humanos da efetiva concretização da justiça e trazer uma visão menos catastrófica acerca do futuro da sociedade humana?
A doutrina da reencarnação é a meu ver a maior expressão da justiça. A reencarnação não é castigo, é oportunidade de evolução. Seria injusta a condenação eterna por atos praticados em uma vida plena de carências. Dar ao Espírito a possibilidade de aprimoramento em situações diversas e experiências múltiplas me parece uma justa busca de justiça.
O senhor foi transparente no trato da colaboração espírita, enquanto coadjuvante no diagnóstico do criminoso. Não receia, com isso, ser vítima do preconceito?
Nesta altura da vida, com 40 anos de docência, não temo preconceitos. Como disse, a Sociedade é adepta de largo sincretismo. Isto não impede manifestações raivosas, como algumas que recebi de pessoas ligadas à Igreja.

NOTAS DO PENSE
(1) Referência ao general Alberto Cardoso, ex-ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).
(2) A intervenção foi solicitada por unanimidade pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, com anúncio em contrário, do procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, por orientação do chefe do governo. O motivo do pedido de intervenção visava o enfrentamento ao chamado crime organizado no Estado do Espírito Santo. Com a negativa, Miguel Reale Júnior pediu exoneração, após cerca de quatro meses, do cargo de Ministro da Justiça.
(3) O mesmo que direito natural (em latim lex naturalis) ou jusnaturalismo. Trata-se de uma teoria que postula a existência de um direito cujo conteúdo é estabelecido pela Natureza e, portanto, é válido em qualquer lugar.




sábado, 30 de janeiro de 2016

Da série corrupção de valores: mercado

Jorge Maranhão

As iniciativas do recém-empossado presidente da Argentina, Mauricio Macri, trazem a esperança de que, pelo menos do lado dos “hermanos”, o país finalmente vai trilhar o caminho do livre mercado, bem distante do que se viu nos tempos do intervencionismo kirchnerista. Menos impostos, menos demagogia social e menos tutela; mais liberdade de escolha e de iniciativa dos cidadãos.

E aqui no Brasil, como estamos?

Ainda no ano passado, em um de seus oportunos artigos, o economista Gustavo Franco já fazia o alerta: “o Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas, jornalistas e universitários não gostam do capitalismo.” Mas se, de fato, temos um país eminentemente capitalista, de que tipo ele seria? Na verdade, trata-se de um grande erro chamar o que temos hoje no Brasil de capitalismo, como tantos fazem através de expressões como “capitalismo de Estado, de compadrio”, “neopatrimonialista”, “capitalismo oligopolista” e outros. Ora, quando começamos a adjetivar muito um substantivo é sinal de que o mesmo está perdendo a substância. Classicamente, o capitalismo é o sistema econômico baseado no livre mercado, onde a concorrência é o melhor traço para lhe definir a natureza. Além de outros consagrados valores morais da tradição ocidental judaico-cristã, como a propriedade privada, a liberdade de empreender, o respeito à lei e aos contratos, e a competitividade dos agentes econômicos que determina preços.

Diríamos mesmo que o fenômeno da concorrência capitalista, para além de garantir a riqueza das nações, garante a própria liberdade de escolha do cidadão, e, por consequência, a sua soberania política. Não é apenas um, dois ou três desses quesitos. Só há capitalismo de fato quando todos eles estão presentes. E quem, em sã consciência, pode garantir isso em se tratando de Brasil?

Medidas que vêm sendo tomadas há mais de uma década, como a polêmica “nova matriz econômica” – e seus campeões nacionais, subsídios setoriais pontuais e crédito a fundo perdido para alguns eleitos nacionais ou estrangeiros – fracassaram de maneira retumbante, jogando o país na pior crise de sua história. Não por outra razão, nenhuma delas expressa traços mínimos do que possa se chamar de livre mercado ou mesmo de capitalismo concorrencial. Ao contrário, observou-se no Brasil um fenômeno de oligopolização de vários setores produtivos, não por acaso financiados pelo Estado, e responsáveis diretos pelo recrudescimento inflacionário dele decorrente. Ainda assim, o nosso imaginário social vê o livre mercado e o capitalismo como aqueles dos primórdios da revolução industrial inglesa da virada dos séculos XVIII para o XIX, com sua produção em ritmo cada vez mais acelerado, zero de direitos trabalhistas, salários aviltantes e um índice altíssimo de mortes no trabalho.

Esta é a imagem que nos é repetida constantemente por setores da mídia, acadêmicos e grupos políticos esquerdistas. Ricos espoliando pobres, e só. E mais: que a economia planejada, controlada pelo Estado, é a única forma de se evitar desigualdades sociais e garantir vida digna a toda população. Pura e perversa falácia. Ainda em 1920, Ludwig Von Mises demoliu essa tese, ao mostrar que, sem a propriedade privada dos meios de produção, o cálculo econômico é impossível. Mises explicou que, nesse sistema, nenhum governo é capaz de saber o que produzir, quanto produzir e quais recursos  utilizar para produzir o que quer que seja, pois somente aqueles que são proprietários dos meios de produção podem alocar racionalmente o escasso capital de investimento. Ou seja, são capazes de determinar custos efetivos e fixar preços de maneira competitiva. E, sem preços competitivos, não temos ganhos de produtividade, não temos eficiência econômica, e muito menos condições de planejar os rumos da economia. E isso torna a tal “economia planejada” uma contradição em termos. A academia sabe disso muito bem. Daí ser maior a sua responsabilidade na perpetuação dessa falácia em nosso imaginário social. Junte-se políticos demagogos a esta academia amestrada pelo Estado, e não teremos outro resultado se não a maior desigualdade social, o imposto perverso da inflação e a crise de escassez e desemprego flagelando exatamente os mais pobres.

Todavia, existe hoje no mundo uma conscientização sobre a importância de se esclarecer isso aos cidadãos comuns. Alguns movimentos internacionais, como o Capitalismo Consciente, se dedicam a essa tarefa, ao mesmo tempo em que divulgam para os empresários novas práticas, em direção a uma nova forma de se aperfeiçoar o livre mercado e fazer do capitalismo oligopolista um capitalismo concorrencial e moderno. André Kaufmann, um dos representantes do movimento no Brasil, declarou em depoimento ao programa Agentes de Cidadania, aqui da Voz do Cidadão, que, hoje, o mundo empresarial reconhece que a percepção sobre o que é o capitalismo vem sendo deturpada, o que vem gerando uma rejeição pela sociedade. Para ele, o movimento procura conscientizar o mundo corporativo de que “ganhar muito dinheiro e fazer o bem não são incompatíveis.”

É preciso uma grande campanha da cidadania para esclarecer as distorções sobre o capitalismo e resgatar o valor do mercado da corrupção geral dos valores. Pois se a mídia de massa sensacionaliza a onipotência do Estado, esquece que este surgiu exatamente para servir ao mercado e não o contrário. Pois, o que o Estado não pode ser de maneira alguma é empreendedor, interventor e tutelador do cidadão.

Como disse Gustavo Franco: “Seria maravilhoso se, junto aos desdobramentos da Operação Lava-jato, pudéssemos rever a vasta constelação de políticas públicas discricionárias e seletivas que tanto favorecem mercados cativos, desvios éticos e prejuízos ao nosso crescimento”.
Para tanto, precisamos urgentemente, e antes de mais nada, decidir que capitalismo queremos. O que não podemos é continuar nos autoenganando de que há alguma alternativa viável de economia planejada e coletivista para o país. 

Publicado no site de Época em 28/01/2016


No dia Internacional da Lembrança do Holocausto, somos todos "negacionistas"

Antonio Caleari

Há pouco mais de um ano, com a publicação do relatório final da enviesada “Comissão da Verdade”, o estado brasileiro cruzou uma fronteira: reconheceu a condição de verdade oficial a uma determinada narrativa histórica. Mutatis mutandis, o Direito Comparado tem subsidiado os juristas com inúmeros casos bastante atuais, nos quais se constata a tendência crescente de proteção jurídica a um fato da história por todos nós conhecido, pretendido inquestionável: o relatado do genocídio judeu.

No Brasil, diferentemente do cenário internacional, não há — pelo menos por enquanto — consequências na esfera penal a quem ousa questionar o “pensamento obrigatório”. Não por falta de vontade. O Projeto de Lei Federal nº 987 de 2007 pretende, nesse sentido, criar um novo e decisivo marco em nossa política criminal: tornar crime a negação do Holocausto. São diversas as implicações jurídicas possíveis e ainda pouco exploradas.

Quando na USP, há poucos anos, Tese de Láurea — posteriormente convertida em livro — questionou a legitimidade das leis europeias que colocam na cadeia os “negadores do Holocausto”, uma parcela fundamentalista da academia procedeu uma verdadeira patrulha ideológica sobre os envolvidos, vendo naquela arguição científica uma terrível heresia, estigmatizando-a e sepultando um debate tamanho frutígero para uma compreensão crítica da realidade política.

Tanto não se deveria admitir a revisão de uma versão sobre um fato histórico (o mérito), tido “transitado em julgado”, como não se toleraria nem sequer o questionamento da proibição de se questionar o dogma. Sim, soa mesmo confuso e kafkiano.

Dentro da mesma discussão acerca dos limites da liberdade de expressão, há de se destacar a bastante noticiada censura ao trabalho dos biógrafos, impedimento que sensibilizou a opinião pública, chegando à pauta do Supremo Tribunal Federal. Centenas de professores universitários publicaram manifesto conjunto que muito lembra o seu correspondente francês, Liberté pour l’Histoire. O resultado anunciado não podia ser outro: não há espaço para a censura prévia na república contemporânea (ao menos em tese).

Tratou-se de uma rica ocasião na qual os limites da liberdade de expressão foram, mais uma vez, rediscutidos e sopesados com outros direitos tutelados na Constituição, tal qual o foram no emblemático caso Ellwanger. No outro episódio mencionado, na França, os acadêmicos também se mobilizaram contra as “leis memoriais”, fazendo uma única exceção: o Holocausto judeu, cuja proteção por meio da lei penal fora casuisticamente reputada legítima e necessária.

Os paralelos não se esgotam por aí. A mesma França, a qual permite as caricaturas e provocações mais agressivas possíveis à religião maometana, encarcera também — vejam só — aqueles que questionam o genocídio armênio. Na Turquia, por sua vez, é crime (literalmente) afirmar a ocorrência de um genocídio armênio, constituindo-se algo que, em confrontação com a legislação gaulesa, poderíamos caracterizar como uma excêntrica antinomia internacional. Ironicamente, o historiador britânico Bernard Lewis, filho de pais judeus, foi condenado na França por questionar o dogma histórico dos armênios.

Exemplos outros há em abundância. Polônia, Estônia e Letônia encarceram aqueles que negam os crimes do comunismo (representados em maior parte pela extinta União Soviética), ao passo que a Rússia criminaliza quem “distorça o papel da URSS na Segunda Guerra Mundial”. Aqueles que tiverem curiosidade acerca de uma das maiores reviravoltas provocadas pela revisão histórica — e muitas outras ainda estão por vir, como o caso de Rudolf Hess — podem pesquisar sobre o massacre de Katyn, o qual expôs justamente a falsa narrativa da “verdade oficial” envolvendo crimes de guerra entre Alemanha, Polônia e União Soviética.

Ao contrário do que muitos pensam — e torcem —, o veredicto do tribunal ad hoc composto pelos vencedores da guerra, em Nuremberg, está longe de ter se estabelecido como fulcralmente acurado.

Voltando ao âmbito das biografias, vale registrar um estudo apresentado na Universidade de Montreal, sem que causasse qualquer escândalo acadêmico, em que se procurou “desmontar o mito do altruísmo e generosidade de Madre Teresa de Calcutá”, verdadeiro ícone da solidariedade humana. Este mesmo Canadá, porém, faz parte do grupo de países que condenam e prendem os “negacionistas” da Shoah (vide o caso Zündel).

No Irã, o revisionismo da biografia de Jesus, a partir do apócrifo Evangelho de Barnabé, infere que “Jesus nunca foi crucificado e que Cristo previu a vinda do profeta Maomé”. Agências de notícias desse país de maioria islâmica afirmam que a descoberta “vai causar o colapso do cristianismo no mundo inteiro”. Encontra-se literatura revisionista dos dogmas da doutrina cristã em praticamente qualquer livraria do mundo.

Todavia, neste mesmo estado do antigo território persa, o autor de Versos Satânicos, livro considerado uma terrível ofensa ao Islã, teve sua morte exultada por ninguém menos que o Aiatolá Khomeini, a maior autoridade religiosa do país.

Nos EUA, embora fortemente cristianizado, faz-se valer a liberdade de expressão estatuída na Primeira Emenda. Há, a título de ilustração, estudos publicados que procuram comprovar a autenticidade do Evangelho de Judas (no qual, ao contrário da “Bíblia oficial, onde esse discípulo é retratado como um traidor, se sugere que foi Jesus quem pediu para a seu amigo que o traísse perante as autoridades). O pesquisador Joseph Atwill, também estadunidense, foi muito além disso: Cristo seria uma completa fabricação da aristocracia romana com o intuito de controlar o povo e fazer frente ao movimento messiânico na Judeia.

O famoso judeu Elie Wiesel, ganhador do Nobel da Paz, confrontado em entrevista com o fato do “negacionismo” ser permitido nos Estados Unidos, em discurso similar ao citado dos antirrevisionistas franceses da década passada, propõe a criação de uma particular ressalva legal à liberdade de expressão dos americanos: “sou um grande admirador da Primeira Emenda, mas acho que ela deveria comportar uma exceção em relação ao Holocausto”.

Voltemos à inflamada realidade brasileira e sua sucessão interminável de escândalos políticos. Da narrativa oficial proclamada pela Comissão da Verdade, passando pela polêmica das biografias, aportamos no cenário das condenações de políticos, também proclamadas pela corte suprema.

Com o julgamento dos réus no processo da Ação Penal 470 (vulgo “Mensalão”), pela mais alta corte do país e em último grau recursal (lembrando que os Infringentes não abarcam toda a trama), o Estado brasileiro declarou a existência de uma sofisticada quadrilha que atuou no governo federal, desviando dinheiro público, à época da administração deste mesmo Partido dos Trabalhadores que promove, agora, uma censura de ofício aos saudosos do regime militar e a outros teóricos dissidentes.

Notável, neste contexto, que o historiador e ferrenho antipetista Marco Antonio Villa defenda, conforme assinalado em seu livro Ditadura à Brasileira, ao contrário da Comissão da Verdade e da grande maioria dos autores que pesquisam a esse respeito, que apenas metade do período que vai de 1964 a 1985 pode ser considerado como uma verdadeira “ditadura militar”.

Vejamos que parte daqueles que desqualificam como uma teoria da conspiração a interpretação contramajoritária dos eventos da Segunda Guerra Mundial bradam ser uma “maquinação da mídia golpista” e “invenção da direita” o mais infame caso de corrupção dos últimos tempos. Negavam também, há não muito tempo, o “Petrolão”, sendo depois desmentidos pelo próprio balanço auditado da empresa estatal e pelas delações premiadas.

Os petistas, antes considerados referências éticas na política, ao instituírem uma Comissão da Verdade e silenciarem com a prisão dos revisionistas inconvenientes, convertem a si próprios em potenciais delinquentes de opinião (ou seja, também revisionistas de uma verdade oficial, pois negam a existência do Mensalão, discussão esta também já “transitada em julgado”, se nos valermos da mesma lógica).

Tal estrutura de incongruências irá fatalmente implodir, e isso está longe de ser uma questão partidária ou oposicionista, conforme já visto no panorama internacional. Não se pode defender uma seletiva liberdade de expressão para alguns, quando apropriado, e ao mesmo tempo sacramentar novos tribunais neoinquisitoriais para uma minoria de párias políticos.

Por que o Charlie Hebdo circula livremente, enquanto Dieudonné é preso por fazer piadas com os judeus? Por que militantes da Marcha das Vadias e da Parada Gay podem vilipendiar símbolos cristãos, ao ponto de publicamente introduzirem o crucifixo no ânus e registrarem o ato, em plena Avenida Paulista, enquanto a Viradouro foi proibida, mediante liminar judicial, de prestar uma homenagem às vítimas do Holocausto, retratando-o em seu desfile de Carnaval?

Os militares são negacionistas do libelo da resistência dita “democrática”, composta por movimentos de luta armada em defesa das ditaduras comunistas. Os petistas são negacionistas do Mensalão, e nem por isso se cogita a prisão de seus militantes por questionarem também uma verdade oficial e transformarem corruptos sentenciados em heróis (o que poderia, no limite, ser subsumido como apologia ao crime).

Parte dos humanistas da USP, tão bem a postos para estigmatizarem uma pesquisa metadiscursiva laureada (a qual certamente não leram), são também negacionistas de diversas teses por eles revisadas e tomadas como objeto de análise no ambiente acadêmico, ao longo de suas carreiras, a exemplo do professor Clóvis de Barros Filho, para o qual “pedofilia é amor” e “há afetos que a sociedade aplaude e afetos que a sociedade não aceita”; nas suas palavras, o “tesão oficial”.

Não consta ter havido qualquer moção da Congregação da FFLCH ou do IP a esse respeito, muito menos no caso de Paulo Ghiraldelli, filósofo doutor pela PUC, o qual ainda mais explicitamente defende a relativização da vida sexual infantil.

Falta-lhes compreender que, se em uma universidade deve haver espaço para a universalidade do conhecimento, não se pode criar exceções casuísticas que apenas evidenciam uma incoerência sistêmica dessas trincheiras acadêmicas da “esquerda” brasileira.

Há, para citar apenas mais um exemplo emblemático dentre infindáveis outros, renomados pesquisadores, como o professor e meteorologista Luiz Carlos Molion, que negam categoricamente as mudanças climáticas por resultado da ação humana. Afirmam que a Terra está a esfriar, entrando numa nova era glacial (!), e não o contrário, como dispõe a cartilha do aquecimento global da ONU.

Não seria também uma verdade histórica a existência da rede de corrupção petista, tal quais as apontadas violações de direitos humanos pela ditadura? A dor causada ao biografado e à sua família em virtude de informações escancaradas pelo seu biógrafo apócrifo não seriam análogas à dor causada pelos ateus “negacionistas” dos cânones religiosos e pelos caricaturistas de Maomé?

Um participante de uma marcha da maconha, já reconhecida legítima pelo STF, não causa também a indignação de setores mais conservadores, da mesma forma que parte da mobilizada comunidade judaica, autodiscriminada “povo eleito”, alega lutar justamente contra a discriminação por meio da aprovação do Martelo do Holocausto (Malleus Holoficarum)?

Há, de fato, um quê de “Je suis hypocrite” nisso tudo.

Segundo o hors concours das citações tão presentes na retórica antitotalitária, George Orwell, “se liberdade significa algo, significa o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem ouvir”. De fato, no campo das ideias, os “negacionismos” são recíprocos e essa é uma dinâmica natural no processo de busca pela verdade e pelo aperfeiçoamento do conhecimento humano.

Neste 27 de janeiro, “Dia Internacional da Lembrança do Holocausto”, cumpre refletir: não somos todos nós, em ao menos algum plano, também “negacionistas” de uma crença alheia? Quantas pessoas podem se sentir ofendidas com nossas opiniões mais controvertidas? Devemos caminhar no sentido de criminalizar opiniões, encarcerando os militares pró-64, os petistas de punho cerrado, os biógrafos não oficiais, os ateus, os humoristas, os usuários de drogas militantes, os cientistas contramajoritários e todos aqueles “negacionistas” de uma verdade oficial, assim caracterizados em virtude do volúvel espírito de seu tempo, o Zeitgeist?

Antonio Caleari é Bacharel em Direito pela USP, revisionista e autor do livro “Malleus Holoficarum: o estatuto jurídico-penal da Revisão Histórica na forma do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado Editora, Lisboa, 2012).


Nota do autor: O presente texto fora originalmente publicado no portal Consultor Jurídico (CONJUR), ontem, 27 de janeiro de 2016. Após sua divulgação via Twitter e diversos compartilhamentos pelo Facebook e por outros meios, o artigo foi simplesmente “despublicado” pelos editores do site, sob circunstâncias as mais escusas, poucas horas depois, restando em todos aquele velho sentimento de “deja vu”, pois, em se tratando do tabu do Revisionismo Histórico, coisas estranhas sempre acontecem… Um desrespeito aos leitores e uma atitude que, infelizmente, trás descrédito e envergonha este que é um dos principais veículos do país no ramo.

Alerta Total – www.alertatotal.net



sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Igualdade perante a lei, o resto é falácia

Roberto Rachewsky

Como somos naturalmente desiguais, como temos capacidades e oportunidades distintas, o que nos leva,  inexoravelmente, a resultados diferentes, a única maneira de igualar tais oportunidades e tais resultados é, pensam eles, através da coerção, do uso da força, iniciativa produzida pelas leis estabelecidas pelos governos, que adquirem uma aparência de legitimidade ao se vestirem de uma legalidade formal.

Mas, como justificar qualquer ação governamental coercitiva formulada para obter uma pretensa igualdade, se o próprio poder de coerção, se a própria capacidade do uso da força, entre quem detém tal poder, os agentes do governo, e aqueles que são objeto de tais ações, os indivíduos na sociedade, é desigual? Nenhuma lei pode modificar a natureza humana e nem os princípios da verdadeira justiça que deve ser baseada no mérito.

Somos todos desiguais porque somos dotados de capacidades diferentes pela própria natureza. Experimentamos diferentes oportunidades porque vivenciamos circunstâncias particulares, aproveitando-as à nossa maneira.

Resta-nos apenas uma possibilidade de sermos efetivamente iguais, e esta é criada pela política, ao estabelecer que cada um de nós tem o direito de ser tratado com igualdade perante a lei, que deve proteger nossos direitos individuais. Quando as leis tentam igualar capacidades, oportunidades e resultados, a igualdade perante a lei acaba sendo suprimida.

Portanto, num sistema capitalista radical, onde a lei é igual para todos e visa defender igualmente os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade, como aprouver a cada um, há a possibilidade de se obter um tipo de igualdade, justa e legítima, que é a igualdade perante a lei.

Em qualquer outro sistema político, onde haja a tentativa de igualar oportunidades, capacidades e resultados, através do uso da força, da coerção, todas as possibilidades de se alcançar algum tipo de igualdade são absolutamente eliminadas, inclusive a igualdade perante a lei.

Não podemos descartar, é claro, se olharmos a história, que todas as tentativas de igualar os homens no que se refere às suas capacidades, oportunidades e resultados, só obtiveram sucesso com o aniquilamento genocida da população.

Afinal, somos iguais apenas depois da morte.

Roberto Rachewsky
Empresário e articulista

Instituto Liberal


O GIGANTISMO DO JUDICIÁRIO

José Maria Couto Moreira

A nação ouve constantemente um brado pelas reformas. Reforma política, previdenciária, eleitoral etc e etc. Para um Brasil próspero - a prosperidade é o desejo de todo brasileiro - há que se cuidar, prontamente, da reforma do Estado, essa hidra que a cada dia mais cabeças e monstruosas garras atemorizam a todos.

Comecemos pelo Judiciário. Este poder, que agigantou-se no Brasil democrático, acompanhou o crescimento do Estado, e serve ao Estado, enquanto o Estado devia servir-se dele. Na Constituição democrática de 1946, o Poder Judiciário era composto da justiça de primeira instância e dos tribunais estaduais, com o concurso especializado da Justiça do Trabalho e da Eleitoral. A criação da Justiça Federal, pelo AI 2, previa um número inicial de apenas cinco juízes. Hoje, são mais de 1.600 ! Imaginem os leitores o que será esta hidra daqui a 20 anos !

Há de se perguntar: o quê fazer? Responde-se: da mesma forma como foi unificada a nossa previdência social. E como foi? No dia 21 de novembro de 1966, numa bela manhã de verão, o presidente Castelo Branco, homem que sempre esteve acima de cargos e paixões, de uma canetada só, expediu o Dec. Lei 72, providência há muito reclamada pela administração federal, cujo artigo 1º, sem meneios, determinava a extinção de todos os institutos de pensão e aposentadoria existentes no País. A coexistência de institutos cobrindo cada setor da economia causava verdadeira anarquia, cada qual com seus interesses peculiares, e provocavam imenso e constante atropelo à administração.

Seria necessário um ditador para também unificar o Judiciário e impedir que a cada dia surjam novas cabeças nesta hidra de hoje? Extinguir os IAPs, principalmente o dos bancários, o dos industriários e o dos trabalhadores em transportes e carga, o forte (quase desafiador) IAPTEC, era declarar briga com cachorro grande. Os segurados dos IAPs gozavam de sindicatos fortes e atuantes, aguerridos, cada um muito cioso dos direitos de seus filiados, e as vantagens ou prestações salariais de cada corporação variavam por sua natureza, tempo de serviço e valores consequentes.
Para a tarefa hercúlea de consolidação do disperso aparelho judiciário, isto é, intervir num setor de forte e acendrado corporativismo, com jurisdições especializadas, só se pode entregá-la a um mandatário de reconhecida autoridade moral. Há que se enfrentar este fenômeno do crescimento avassalador do judiciário, reforma esta que incluiria também os tribunais de contas, cuja função seria delegada a câmaras de contas nos tribunais de justiça.

A quem se detiver ante o edifício do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal Superior Eleitoral e outros gigantes de concreto de Brasília e demais construções monumentais nos estados, sem mencionar o custeio e uma pletora de vantagens e penduricalhos de que são destinatários seus ocupantes, haverá de chorar pelos irmãos nortistas e nordestinos que não possuem teto, água limpa, energia e outras necessidades de que desfrutam os demais.

José Maria Couto Moreira
Advogado em Belo Horizonte

Diário do Poder
Cláudio Humberto



quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O apoio externo à esquerda brasileira

Carlos I. S. Azambuja

O dinheiro é uma coisa esquisita. Quem tem diz que não tem e quem não tem diz que tem” (WOODY ALLEN, cineasta norte-americano)

É interessante conhecer um pouco da história do apoio externo aos partidos, organizações e grupos de esquerda brasileiros. Diversos Estados constituídos, através dos anos, apoiaram a esquerda com dinheiro, treinamento político-ideológico e militar: União Soviética, Alemanha Oriental, Checoslováquia, Bulgária, China e Cuba. Sem dúvida, o apoio mais eficaz foi dado pela URSS, China e Cuba.

- União Soviética

Em 1922, cinco anos após a Revolução Bolchevique, foi fundado no Brasil o Partido Comunista do Brasil, Seção Brasileira da Internacional Comunista.

Em 1935, Prestes regressou da União Soviética acompanhado por Olga Benário - os dois nunca foram casados -, uma agente do Exército Vermelho e do Komintern, a fim de preparar aquilo que ficaria conhecido como Intentona Comunista. Para isso, um grupo de experts da Internacional Comunista foi deslocado para o Brasil.

A partir de 1953, o Partido Comunista da União Soviética passou a ministrar cursos, em Moscou, a militantes do PCB. Cursos de treinamento militar e condicionamento político-ideológico. O último desses cursos foi em 1990, quatro anos após terem sido implantadas por Gorbachev as políticas de perestroika e glasnost.

Cerca de 700 militantes foram treinados na Escola de Quadros, como era mais conhecido o Instituto de Marxismo-Leninismo do PC Soviético, e na Escola do Konsomol  (Juventude do PCUS), em cursos cuja duração variava de 3 meses a 2 anos.

Cerca de 1.300 outros brasileiros concluíram cursos superiores na Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba e em outras universidades soviéticas, em cujo currículo sempre constou a matéria marxismo-leninismo. Até mesmo em cursos de balé. As matrículas na UAPPL sempre foram efetuadas através da Seção de Educação do Comitê Central do PCB e também através do Instituto Cultural Brasil-URSS, um apêndice do PCB. Algumas dessas pessoas, no regresso ao Brasil, passaram a trabalhar em empresas estatais e, pelo menos um, formado em Medicina, como Oficial das Forças Armadas, nos anos 80.

Filhos e parentes próximos de dirigentes encastelados na nomenklatura do partido constituíram a maioria desses 1.300 brasileiros, pois sempre foram privilegiados para estudar, gratuitamente, na pátria do socialismo e em países do Leste-Europeu. Inúmeros exemplos podem ser dados, de filhos de dirigentes aquinhoados com bolsas-de-estudo nesses países.

Tudo o que de relevante ocorreu no PC Soviético sempre influenciou diretamente o PCB: a desestalinização, de Kruschev, em 1956, e o fim do PCUS, em 1991, são exemplos marcantes dessa influência.

- China

Ainda antes da Revolução de 31 de março de 1964, no governo do presidente João Goulart, um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil foi enviado à China, onde recebeu treinamento militar na Escola Militar de Pequim. Também um grupo de dirigentes da Ação Popular recebeu treinamento político-ideológico na China no início dos anos 70 (depoimento de Herbert José de Souza -“Betinho”-, na época dirigente da AP, no livro “O Fio da Navalha”).

Os militantes do PC do B, no regresso, a partir de 1966, passaram a instalar-se em um ponto do Brasil Central, dando início à montagem daquilo que somente em 1972, os Órgãos de Segurança viriam a detectar: a Guerrilha do Araguaia, totalmente erradicada dois anos depois. Curiosamente o jornal Folha de São Paulo em reportagens publicadas nos dias 21 e 22 de novembro de 1968 já havia noticiado pormenorizadamente o assunto, dando os nomes dos militantes chegados da China e referindo-se à sua ida para o Brasil Central.

Alguns desses militantes relacionados pela Folha de São Paulo seriam mortos no Araguaia.

Em fins da década de 70, com a opção dos dirigentes chineses por uma economia socialista de mercado, descaracterizando o marxismo-leninismo, o PC do B passou a eleger a Albânia, o país mais atrasado da Europa, como o farol do socialismo mundial. A Albânia treinou guerrilheiros de vários países, inclusive do Brasil, segundo documentos do Partido do Trabalho da Albânia, que vieram a público após o desmantelamento do socialismo naquele país. A partir de então, o PC do B passou a estreitar suas relações políticas com a Coréia do Norte.

- Cuba

O Estado cubano sempre exerceu marcante influência junto à esquerda brasileira. Desde antes da Revolução de Março de 1964.

Francisco Julião, o criador das Ligas Camponesas, esteve em Cuba em 1961 e, no regresso, mandou um grupo de militantes àquele país para receber treinamento militar, e fundou o Movimento Revolucionário Tiradentes, que teve uma existência efêmera.

Nesse sentido, recorde-se o objetivo da OLAS-Organização Latino-Americana de Solidariedade, criada em Havana, em 1966: “Coordenar e promover eficientemente a solidariedade que existe e deverá continuar existindo entre os movimentos e organizações em luta, em seus respectivos países, pela libertação nacional (...) conseguindo a unidade entre aqueles que se encontram empenhados na luta armada”.

A intromissão dos Serviços de Inteligência cubanos junto aos grupos de esquerda nacionais voltados para a luta armada, atingiu seu ponto máximo no período de 1967 (a partir da I Conferência da OLAS) a 1972, período em que o Partido Comunista Cubano ministrou treinamento militar, em Cuba, a cerca de 240 brasileiros do Movimento Nacional Revolucionário - criado por Brizola -, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, Ação Libertadora Nacional, Movimento de Libertação Popular, Vanguarda Popular Revolucionária e Movimento Revolucionário Oito de Outubro.

Um dos instrutores nesses cursos, no final da década de 70, segundo alguns brasileiros que lá estiveram, era conhecido como major Fermin Rodriguez, que na realidade tratava-se do coronel Fernando Ravelo Renedo, homem do aparato de Inteligência cubano, embaixador na Colômbia, em 1981, ano em que a Colômbia rompeu as relações diplomáticas com Cuba face aos vínculos do embaixador com narcotraficantes colombianos. Fernando Ravelo Renedo foi, posteriormente, nomeado  embaixador na Nicarágua.

É fato notório que a diplomacia cubana nada mais é que um apêndice dos Serviços de Inteligência. No Brasil, desde que as relações diplomáticas foram retomadas, sempre existiu um Oficial do Serviço de Inteligência acreditado junto à embaixada, em Brasília, oficialmente com funções burocráticas.

O treinamento a brasileiros em Cuba continua até os dias atuais, embora somente no terreno político-ideológico, na Escola Superior Nico Lopez, do PC cubano, Escola Sindical Lázaro PeñaEscola de Periodismo José Martí, Escola da Federação de Mulheres Cubanas, Escola da Federação Democrática Internacional de Mulheres e Escola Nacional Julio Antonio Mella, da União da Juventude Comunista. Por essas escolas já passaram mais de 100 brasileiros. Todavia, o mais importante em tudo isso, é que a ida de qualquer brasileiro para fazer cursos em Cuba depende do aval do Partido Comunista Cubano, após entendimentos anteriores, de partido para partido. Atualmente, existem diversos brasileiros matriculados na Faculdade Latino-Americana de Ciências Médicas e militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra vêm recebendo, em Havana, treinamento em técnicas agrícolas.

A interferência de membros da Inteligência cubana junto a partidos políticos e grupos de esquerda brasileiros sempre foi uma prioridade. Logo após o reatamento das relações diplomáticas, em 1986, essa interferência tornou-se irritantemente ostensiva, com cubanos participando, inclusive, de comícios na campanha presidencial de 1989.

Em maio de 1988, o dirigente cubano Carlos Rafael Rodriguez, vice-presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros, membro do Comitê Central do Partido Comunista Cubano desde 1976 e membro do Politburo, declarou à revista Veja:


“Hoje a situação é bastante diferente da dos anos 60. Em primeiro lugar, a guerrilha está na ordem do dia em poucos lugares. Os movimentos guerrilheiros deixaram de ser o ponto de vista principal das forças democráticas. Em segundo lugar, mudou o comportamento dos governos da América Latina com relação a Cuba. O reconhecimento e a legalização das relações diplomáticas fazem com que nós também tenhamos uma atitude de respeito total nesse sentido. Em terceiro lugar, estamos dando a nossa solidariedade, de diversas maneiras, a movimentos guerrilheiros como os do Chile. Quando há situações desse caráter, continuamos dando nossa solidariedade, porque não mudaram os princípios, mas as situações”.

Carlos Rafael Rodriguez foi claro: não mudaram os princípios, mas as situações. A solidariedade aos movimentos guerrilheiros, portanto, prossegue. Essa solidariedade sempre se expressou no apoio em armas, treinamento militar, trabalhos de Inteligência e, algumas vezes, quando necessário, dinheiro obtido através de seqüestros praticados com a mão de obra ociosa de ex-guerrilheiros, sob a orientação óbvia da Inteligência cubana, como os de Abílio Diniz, Beltran Martinez e Washington Olivetto, no Brasil.

É interessante conhecer a opinião de um dos comandantes da Ação Libertadora Nacional, Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz (“Clemente”), autor de inúmeros assaltos, mortes (inclusive de um Oficial do Exército, conforme narra em suas memórias) e justiçamentos, em São Paulo. No início da década de 70 abandonou seus comandados no Brasil e dirigiu-se voluntariamente para Cuba, onde recebeu treinamento armado e, posteriormente, viajou para a França, abandonando definitivamente a guerrilha.

Alguns trechos de seu livro “Nas Trilhas da ALN”, editado em 1997, relatando as peripécias por que passou em Cuba e dando uma cáustica versão do apoio do Estado cubano à revolução no Brasil.


A interferência deles (dos cubanos) já nos custaram caro demais; a volta dos companheiros do Molipo sem nossa autorização foi um desastre. 18 mortos e mais tantos presos... e tudo por uma rasteira política de infiltração, querendo influenciar nosso movimento de dentro, para adequar nossa política às necessidades deles (...). Entendo que os militantes nossos, afastados da realidade brasileira e querendo voltar para lutar, questionem a Coordenação Nacional, fundem uma corrente ou saiam da Organização, mas os cubanos não tinham o direito de autorizar a saída deles do país sem nos comunicar, quando havia meios para isso. Cederam os esquemas, promoveram a volta e ajudaram a convencer os combatentes que tinham dúvidas. Chegaram a São Paulo procurando militantes queimados, usando esquemas já abandonados por falta de segurança, aparelhos que não mais existiam, despreparados e desinformados dos avanços da repressão. Achavam que não autorizávamos a volta para não perdermos o comando da Organização. Infelizmente, sentiram na pele que estávamos cercados, fazendo ações de sobrevivência, assaltando bancos e super-mercados na véspera do vencimento dos aluguéis, e tentando não desaparecer (...). O que me revolta é que caíram como moscas e hoje ninguém assume suas responsabilidades.

(...) No curso de Estado-Maior, em Cuba, esmiúço a história da revolução cubana e constato evidentes contradições entre o real e a versão divulgada América Latina afora (...). Muitas ilusões foram estimuladas em nossa juventude pelo mito do punhado de barbudos que, graças ao domínio das táticas guerrilheiras e à vontade inquebrantável de seus líderes, tomou o poder numa ilha localizada a 90 milhas de Miami. Balelas, falsificações (...). O poder socialista instituiu a censura, impediu a livre circulação de idéias e impôs a versão oficial. Os textos encontrados sobre a revolução cubana são meros panfletos de propaganda ou relatos factuais, carentes de honestidade e aprofundamento teórico (...).

A ameaça iminente de agressões facilitou a militarização do país. Milícias Populares e Comitês de Defesa da Revolução formam uma teia considerável que abastece o S2 de informações sobre posições políticas, atitudes sociais e escolhas sexuais dos cidadãos (...). O Partido Comunista é o único permitido e em seus postos importantes reinam os comandantes de Sierra Maestra ou gente de sua confiança, em detrimento dos quadros oriundos do movimento operário e do extinto Partido Socialista Popular (anterior à revolução de Fidel), representante em Cuba do Movimento Comunista Internacional e aliado da União Soviética.

Os contatos com as organizações de luta armada são feitos através do S2, conseqüência esperada das deturpações do regime. A revolução na América Latina não seria uma questão política e sim, usando as palavras do caricato TOTEM (referência ao general Arnaldo Uchoa, comandante do Exército em Havana em 1973, que lutou na Venezuela e Angola, vindo a ser, no final dos anos 80, condenado à morte e fuzilado, sob a acusação de envolvimento com o narcotráfico), uma questão de ‘mandar bala’. Nos relacionamos com agentes secretos (...). Eles tentam influenciar na escolha de nossos comandantes, fortalecem uns companheiros em detrimento de outros; isolam alguns para criar uma situação de dependência psicológica que facilite a aproximação; influenciam o recrutamento; alimentam melhor os que aderem à sua linha e fornecem informações da Organização; concedem status que vão desde a localização e qualidade da moradia à presença em palanques nos atos oficiais; não respeitam nossas questões políticas e desconsideram nosso direito à autodeterminação (...).

Fabiano (Carlos Marighela)negociou com os cubanos de igual para igual, mas Diogo(Joaquim Câmara Ferreira) concedeu demais. Sentiu-se enfraquecido pelas quedas em São Paulo que culminaram com a morte do nosso líder e permitiu algumas ingerências nas escolhas de quadros para a volta e os postos que ocupariam na Organização. No Brasil, recebemos com espanto a volta de um comandante indicado pelos cubanos e aceito por Diogo. O episódio não chegou a ter maiores conseqüências, pois o comandante desertou no caminho e foi morar na Europa” (referência ao comandante “Raul”, Washington Adalberto Mastrocinque Martins, muito tempo depois identificado como funcionário da prefeitura de São Paulo).

Ao final, em 1973-1974, depois de meses de reuniões de autocrítica, em Cuba, entre “Clemente” e os militantes restantes da ALN, que lá se encontravam, recebendo treinamento militar, todos decidiram, por unanimidade, abandonar a luta armada. Muitos voltaram ao partido do qual haviam saído, o Partido Comunista Brasileiro, e outros, como “Clemente”, que foi morar em Paris, depois de abandonar a luta armada, parece terem abandonado também a esquerda. A montanha de mortos havia sido em vão.

Maria Augusta Carneiro Ribeiro, recentemente falecida em um acidente de automóvel, militante da ALN, banida do Brasil em setembro de 1969 em troca da liberdade do embaixador norte-americano, que havia sido seqüestrado, também deu seu depoimento (livro “Exílio, Entre Raízes e Radares”). Disse que 20 dias após a chegada ao México veio um convite, através de enviados do governo cubano, para treinamento em Cuba, ocasião em que assumiram um compromisso com Fidel Castro: “Faríamos toda propaganda antiamericana que ele queria e, em troca, ele nos daria apoio para treinar, viver lá e voltar (...)”. Maria Augusta dá uma idéia do que significava, naquele contexto, a possibilidade da morte: o fato de pertencer a uma Organização de vanguarda dava um sentido à vida e ao futuro e “não importava se esse futuro era morrer”. Achava que morreria ao voltar, o que não a afastava desse objetivo: “Não era uma coisa prazerosa, mas muito lógica. Queria viver, mas era mais importante o papel que estavam me dando. Eu aceitava e achava que era correto”. O fato é que os militantes sentiam-se em dívida com a Organização por terem sido libertados através de uma ação de seqüestro.

Maria Augusta Carneiro Ribeiro voltou ao Brasil após a anistia e obteve o cargo de Ouvidora da Petrobrás.

Os diversos livros e entrevistas de militantes de organizações de luta armada, no Brasil, após a Anistia, tornaram possível o resumo abaixo do treinamento militar a que eram submetidos os revolucionários latino-americanos, em Cuba:

Em Havana, os militantes recebiam pseudônimos, documentos e eram instalados em aparelhos (...).  Os militares cubanos os agrupavam em turmas de aproximadamente 12 pessoas, de acordo com a Organização a que pertenciam. Primeiro, era dado um curso de explosivos de um mês de duração, em um quartel da província, onde passavam a semana. Aí aprendiam fórmulas, a montagem e desmontagem de explosivos. Em seguida, iniciavam o curso de tiro ao alvo e de manipulação de pistolas e fuzis, que consistia em desmontá-los com os olhos abertos, e depois fechados.

Por fim as turmas eram levadas para o interior do país, onde passavam cerca de oito meses, no treinamento propriamente dito de guerrilha rural. Os militares cubanos cuidavam da preparação física dos militantes, davam aulas de tática e cartografia, simulavam emboscadas, promoviam marchas e exercícios de tiro e sobrevivência na mata.

Embora fosse levado muito a sério pelos integrantes de todas as organizações, as condições de treinamento que, supostamente, os colocariam no ambiente e nas situações de uma guerra de guerrilhas foram decepcionantes e despertaram críticas de vários militantes:

“Nós fomos para lá acreditando que íamos encontrar um treinamento que nos desse as condições próximas às que teríamos na guerrilha rural no Brasil. Mas nada disso ocorreu. Nós ficamos num barracão de madeira, onde havia uma cama para cada um; uma coisa rudimentar, mas havia. As refeições eram todas servidas por caminhões do Exército. Até para tomar banho tinha um cano... era um acampamento! Nós protestamos contra isso. Tentamos ganhar os cubanos para o fato de que nós queríamos dormir no mato todos os dias, por mais que isso fosse terrível (...) Aquilo ali era uma brincadeira. O próprio Zé Dirceu dizia que o treinamento era um teatrinho de guerrilha e o pior, um vestibular para o cemitério (...) Bem intencionados, os instrutores eram primários do ponto de vista teórico e político. Longe da realidade que encontrariam na guerrilha, até marchas eram feitas em trilhas.” (depoimento de Daniel Aarão Reis, banido do país em troca de liberdade de um embaixador seqüestrado, atual professor de História na Universidade Federal Fluminense; livro “Exílio, Entre Raízes e Radares”).

Para muitos, talvez a maioria, a próxima estação, ao término dos cursos, não foi o Brasil, mas o mundo.

Carlos I. S. Azambuja
Historiador.

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