por
Carlos I. S. Azambuja
Quando alguém examina livros, revistas e
folhetos dos partidos comunistas verifica um fato surpreendente. Em nenhuma
parte da interminável verborréia que pretende abordar o político-social
encontra-se qualquer referência ao indivíduo.
Página após página, encontram-se os termos
“massas”, “proletariado”, “burguesia”, “mercenários do capitalismo”,
“reformistas”, “revisionistas”, “renegados”, e sempre, em toda a parte,
referências à “vanguarda revolucionária”, isto é, ao partido.
Sempre que qualquer membro do partido é
referido, é esterilizado psicologicamente e tirada a sua individualidade: é
convertido em “camarada”, “companheiro” ou “quadro”.
Não é por acidente que o ser humano está
ausente dos escritos comunistas. O indivíduo não tem cabimento na teoria e nos
programas dos partidos comunistas, pois a ideologia só se interessa pelo homem
como membro de uma classe e, no que diz respeito ao programa partidário, os
indivíduos são referidos como massas.
Na medida em que o indivíduo siga sendo ele
mesmo, diz-se que está animado por interesses e esperanças pessoais; é sensível
às dúvidas e ao otimismo; é capaz de ser tocado pelo mistério da vida; torna-se
imprevisível e capaz de ater-se às suas próprias opiniões.
As mesmas qualidades que fazem dele um
indivíduo, o desqualificam para os fins partidários. Tende demasiado a não ser
facilmente convencido, a mostrar-se céptico, a aborrecer-se pelas reiteradas
abstrações próprias da ideologia comunista, a duvidar do método, a manter uma
opinião ainda mesmo depois de se ter convertido à “linha partidária” e a
simpatizar ou antipatizar com seus semelhantes sem permissão da “nomenklatura”
encastelada nos Comitês Centrais.
Em conseqüência, não é confiável. Necessita
ser “desenvolvido” e integrado à massa, ou mesmo, conforme o caso, “justiçado”
– como mais de uma vez já ocorreu no Brasil -, a fim de que o partido cumpra
sua “missão histórica”, pois, de acordo com a “doutrina científica”, todos os
aspectos do ser humano que não se prestem à sua politização são burgueses.
Durante os 70 anos em que, dialeticamente,
o socialismo real nasceu, desenvolveu-se, cresceu e desapareceu, foram vários
os dissidentes e contestadores, em todas as latitudes, da “doutrina científica”.
O mais conhecido, todavia, talvez tenha sido o iugoslavo Milovan Djilas,
nascido em 1911, considerado um herege pelo mundo comunista do pós-Guerra. Após
estudar Literatura e Direito na Universidade de Belgrado, filiou-se ao Partido
Comunista e, em 1938, aos 27 anos, foi nomeado membro do Comitê Central do
Partido Comunista (Liga Comunista Iugoslava) pelo então Secretário-Geral Josip
Broz Tito, transformando-se em um dos seus mais fiéis assessores. Por alguns
anos foi Ministro da Informação e Propaganda e vice-presidente da República.
Desempenhou várias missões políticas junto
à União Soviética e foi considerado um dos responsáveis pelo rompimento de Tito
com Moscou, após rejeitar, em 1948, todas as propostas e tentativas soviéticas
de dominar a Iugoslávia, transformando-a em mais um satélite.
A partir daí, Djilas começou a demonstrar
as evidências de uma profunda mudança ideológica. Desiludido com as propostas
do stalinismo e com a própria linha política adotada pela Liga Comunista de seu
país, defendeu, em uma seqüência de artigos publicados no jornal porta-voz da
Liga, o “Borba”, a tese de que os rumos da revolução deveriam ser revistos e de
que naquele momento já se tornava necessária uma maior liberdade de opinião e
um abrandamento do controle do partido sobre o Estado e sobre todo o povo. Em
1954, foi ainda mais longe, ao formular duras críticas ao modo de vida e à moralidade
dos que se apoderaram do poder, não apenas na Liga, mas também na União
Soviética e demais países da Europa Oriental.
Afastado de suas funções no governo e
expulso da Liga, Milovan Djilas concedeu uma série de entrevistas a jornais
estrangeiros, condenando o regime iugoslavo, o que o levou à prisão por três
anos. Foi quando escreveu o seu mais importante livro, “A Nova Classe”, que em
1967 foi editado no exterior. Esse livro é uma reflexão sobre os objetivos do
stalinismo ao lutar para destruir a classe capitalista, supostamente
exploradora, antevendo o surgimento de uma nova classe dirigente: a burocracia
política, ou seja, a nomenklatura, como mais tarde ficaria conhecida.
Em razão desse livro, Djilas foi novamente
condenado. Desta vez a sete anos de prisão, dos quais cumpriu a metade. Em
1962, voltaria ao cárcere, condenado por escrever o livro “Conversações com
Stalin”.
Nessa época, Djilas ainda acreditava que
poderia permanecer sendo um comunista e, ao mesmo tempo, um homem livre.
Finalmente, em 1970, escreveu “Além da Nova Classe”, livro no qual defendeu a
tese de que a ideologia comunista se encontrava em estado de deterioração e não
mais era aceita como instrumento de organização de uma sociedade, nem mesmo
pelos próprios comunistas.
Vinte anos depois, a queda do Muro de
Berlim e o desmantelamento do socialismo real confirmariam essa previsão.
Milovan Djilas faleceu em 20 de abril de
1995. Um ano e meio antes de sua morte, escreveu uma série de três artigos,
descrevendo os grandes momentos de sua vida e sua visão sobre o futuro do
socialismo. A imprensa, em maio de 1995, publicou essa série de artigos. O
último deles, “O Futuro do Socialismo Democrático”, indiscutivelmente foi o
mais importante.
Antes, porém, nos dois primeiros artigos,
Milovan Djilas fez algumas revelações até então desconhecidas do grande público:
- que suas ideias a respeito do comunismo
foram mais fruto de sua experiência própria, de seus problemas pessoais, da sua
vivência, do que da simples contemplação filosófica;
- que era um crente, pois acreditava
fielmente no comunismo. E somente um crente pode tornar-se um herege;
- que criticou o regime iugoslavo por sua
conduta ambígua em relação à revolução húngara de 1956, embora Tito tivesse
apoiado a intervenção soviética na Hungria.
Que do alto dos seus 82 anos - 18 meses
antes de sua morte -, recordava-se de quatro momentos cruciais em seu
desenvolvimento intelectual: sua transformação de intelectual rebelde em
militante comunista; a compreensão de que, após a II Guerra, a Liga Comunista
Iugoslava adotara uma orientação bolchevique e stalinista; a de suas longas
prisões como comunista, quando teve oportunidade de voltar às suas leituras
filosóficas; e a quarta e última fase, que foi a da intuição, que depois se transformou
em experiência pessoal.
Somente em 1989, quando o desmoronamento do
socialismo já era um fato na Europa Oriental, foi autorizada em seu país a
edição de seus 14 livros.
Em “O Futuro do Socialismo Democrático”,
Milovan Djilas reconhece ter previsto o fim do socialismo, mas não a maneira
como esse edifício iria desmoronar. Crê, entretanto, que o fim do socialismo
real não tenha provocado seqüelas na social-democracia e nem na chamada “esquerda
reformista”. Se a social-democracia européia está em crise, disse ele, isso se
deve à sua pouca adaptação à realidade do mundo atual e à sua identificação com
o capitalismo neoliberal, pois a social-democracia, que hoje pode ser
considerada a esquerda do capitalismo neoliberal, não elaborou idéias para
reagir diante das mudanças que não cessam de ocorrer nas sociedades
capitalistas.
Segundo Djilas, embora não saibamos qual
deva ser a ideologia da social-democracia, jamais poderá ser o marxismo-leninismo,
pois essa ideologia não tem qualquer validade para a construção da sociedade do
futuro. Todavia, ainda considera válida a crítica ao capitalismo formulada por
Marx, particularmente nos países que hoje empreendem um capitalismo tardio,
como a ex-Iugoslávia e a Rússia, que até ontem eram comunistas. Esses países,
hoje, percorrem o caminho pedregoso de transição do socialismo de Estado para o
sistema de propriedade privada. Isso implica, necessariamente, diz Milovan
Djilas, um período de capitalismo primitivo e, nesse contexto, é válido o
método marxista, como o conhecimento histórico do capitalismo nascente e dos
pactos sombrios dos seus primeiros passos.
As sociedades que surgiram das ruínas do
socialismo, diante de um capitalismo primitivo e brutal, deverão lutar por
programas sociais bem concebidos, com os olhos voltados para a criação de
sociedades mais justas. Caso não consigam isso e prevaleçam os aspectos
negativos do capitalismo primitivo, esses Estados conhecerão tragédias imensas,
guerras e opressão.
As previsões de Djilas não ficaram longe da
realidade. Na Rússia, as empresas de livre mercado, organizadas a partir de
1991, transformaram-se em reféns de grupos de criminosos organizados,
conhecidos como a “máfia russa”. Nesse sentido, funcionários do Ministério do
Interior estimam que cerca de 40 mil empresas estão, de alguma forma,
conectadas com organizações criminosas, e cerca de 10 dos 25 grandes bancos
russos também têm conexões com a máfia. Os grupos criminosos também estão
roubando e exportando materiais estratégicos das fábricas russas de armamentos.
Empresas pequenas, tais como lojas de varejo, restaurantes e importadoras de
bens de consumo, estão cada vez mais vulneráveis à extorsão.
Durante os primeiros anos da reforma
econômica, gerentes e burocratas utilizaram-se ilegalmente do dinheiro e
propriedades do extinto Partido Comunista e ativos do Estado para implantar
bancos ou organizar empresas.
Hoje, é difícil distinguir os verdadeiros
empreendedores desses “sobreviventes soviéticos”.
As sociedades socialistas, ao se esgotar a
vitalidade da classe governante, transformada em uma burocracia parasitária,
parecem não ter meios de atender às exigências de uma sociedade moderna.
Segundo Djilas, da mesma forma como estão
sendo estruturadas as interações econômicas e políticas, irão nascendo as novas
ideologias, como é o exemplo da União Européia. A nova ideologia será uma
espécie de religião, caracterizada pela fé no ser humano e pelo propósito de
melhorar as relações sociais num ambiente de justiça para todos. Djilas, no
entanto, reconheceu que esse é um enfoque idealista, que precisará basear-se
numa visão que supere a interpretação do capitalismo neoliberal, que prevê o
atendimento dos interesses humanos apenas via lucro e eficiência econômica.
A futura ideologia da “esquerda reformista”,
por seu lado, não deverá representar obstáculo para as conquistas do
capitalismo, como a eficiência e a rentabilidade das empresas. O problema
central consistirá no modo de distribuir a riqueza sem prejudicar o bom
andamento da economia e, simultaneamente, promover uma sociedade baseada em
relações mais humanas e solidárias.
Esse idealismo, todavia, não deverá
entregar-se à ilusão de tentar instituir uma sociedade com formas rígidas e
permanentes. Sua finalidade será a criação de um novo modelo de relações
sociais. Quanto mais diferenciada, melhor e mais criativa será a sociedade.
Entretanto, o certo é que sempre existirão no mundo injustiças e desigualdades,
reconheceu Milovan Djilas.
Em, 1948, separando-se da ordem stalinista,
motivado por Milovan Djilas, Josip Broz Tito inaugurou um novo gênero na
história do comunismo: o cisma do comunismo nacional. O conflito foi originado
pelas tentativas de Stalin de infiltrar não apenas o partido iugoslavo, mas
também o exército, a administração e os serviços de segurança. Tito recusou-se
e assumiu os riscos de uma ruptura, dando inicio a uma nova fase do comunismo.
Tito teria muitos imitadores, de tal forma que o discurso anti-soviético em
linguagem soviética passou a constituir um gênero no repertório comunista. Ele
não deixara de ser comunista, mas prezava a independência de seu país.
Mao-Tsetung seria o mais célebre dos
contestadores da ortodoxia do marxismo-leninismo, mas não o único, pois até a
minúscula Albânia de Enver Hodja, o país mais atrasado da Europa, se ergueria
contra Moscou nos anos seguintes.
Mais recentemente, após o desmonte do
socialismo, Nicolas Buenaventura, engenheiro e professor, que hipotecou sua
vida ao comunismo, pois durante 40 anos foi membro do Comitê Central do Partido
Comunista Colombiano, com o cargo de chefe da Seção de Educação de Massas
também explorou a fundo, numa autocrítica ácida, constante de seu livro “Que
Pasó, Camarada?”, o que, segundo ele, foram as razões da catástrofe dos ”socialismos
reais”.
Diz ele que os comunistas sempre lutaram
por um pedaço dessa democracia formal e burguesa. Sempre defenderam, até a
morte, a sua minguada liberdade de palavra, de imprensa, de dissidência e de
oposição. A liberdade de locomoção, de ir e vir, de empresa - das empresas do
partido -, dos camaradas, das associações, dos sindicatos. “Cada resquício de
democracia tradicional, formal, era sagrado para nós”.
“Defendíamos
o pedaço de pão velho”, como diria Bertolt Brecht. Porém, isso nunca foi
considerado suficiente.
Esse não era o objetivo. Era o meio. “Buscávamos a
democracia total e real. Queríamos o pão inteiro”.
Certamente, “defendíamos a democracia
possível. Porém, quando chegasse o momento e tudo mudasse, chegaria a hora da
democracia real”.
Onde estava, então, o nosso erro? Qual foi
o nosso pecado?
A verdade é que sempre fizemos uma leitura
muito óbvia, muito simples, da história da “democracia formal”.
Sempre raciocinamos assim: uma democracia
sem pão, sem escola, sem terra, puramente formal, é mentirosa.
E daí em diante, dessa leitura simplista,
vinha o resto, a grande dedução: primeiro o pão, primeiro a roupa, primeiro a
terra e a escola e, depois, só depois...viria a democracia.
Era assim que nós encarávamos as coisas:
sem pão, a democracia é uma mentira. Sem teto, sem escola, sem o conhecimento,
é mentirosa a democracia. De forma que tudo tem o seu tempo, como diz a Santa
Bíblia. Por agora, a saúde e a educação gratuitas. Depois, só depois, a
democracia.
Nunca dissemos isso assim, explicitamente,
na Colômbia, em Cuba ou na União Soviética. Nunca dissemos isso com estas
palavras precisas.
Essa, porém, era a essência da nossa “democracia
real”. E era, por outro lado, a que melhor se adaptava ao mundo do
subdesenvolvimento, sem maior cultura política ou tradição democrática. A esse
mundo onde foi implantado e existiu o “socialismo real”.
Então, para essa viagem desde o pão à “democracia
do futuro” - uma viagem difícil; uma viagem, ademais, sem calendário -,
para esse percurso tão acidentado, um grupo de “escolhidos”, um grupo formado
pelos “melhores”, entre os quais Nicolas Buenaventura se encontrava, foi
encarregado da direção. E esse grupo construiu o instrumento que conduziria os
oprimidos à “Terra Prometida”. Esse instrumento denominava-se “o Partido”,
assim, com inicial maiúscula.
Não se tratava de falar, de protestar ou de
fazer oposição. Para isso havia sua hora, o seu tempo. Tratava-se de construir
a “democracia real”.
Depois, as coisas aconteceram como já
sabemos. É um fato e uma verdade. Primeiro faltou a democracia, faltou a
dissidência, faltou a oposição, faltou a minoria. Todos eram maioria. Uma
maioria ideal, plena, uniforme, de uma só cor, que pouco a pouco foi se
convertendo em unanimidade. Porém, o pão se acabou, veio a queda de produção, a
ineficiência e a obsolescência.
Primeiro, o Partido foi roubado na
democracia. Depois também no pão.
Dessa forma, nós aprendemos muito
duramente, para sempre, esta lição: a democracia não tem ordem, não tem espera,
não tem comissários políticos, nem delegação e nem guardiões. A democracia somos
cada um de nós. É você mesmo.
E mais: a democracia é, certamente, o
governo da maioria. Mas, de qual maioria?
De uma maioria que eu não chamaria
simplesmente de respeitosa ou tolerante para com as minorias. Porque essas
palavras têm, para mim, um sentido de autoritarismo.
De uma maioria enamorada das minorias,
interessada nas minorias, por duas razões. Uma, porque toda maioria é múltipla.
É composta por minorias concertadas. Outra, porque a minoria de hoje, como é
óbvio, é a maioria de amanhã, já que o novo sempre surge e se anuncia muito
pequeno, como uma semente.
A democracia é, justamente, o contrário de
tudo que nós fazíamos no Partido e no Estado. O contrário da famosa pirâmide
denominada “centralismo democrático”, no qual as bases elegem os dirigentes
intermediários e mantêm ligações com eles, que, por sua vez, elegem os
dirigentes superiores e mantêm ligações com eles. Isso é realizado de tal forma
que a linha de mandato e de contato entre a base e a cúpula, entre o povo e o
verdadeiro governo, o de cima, é interrompida ou perdida.
Democracia é o contrário dessa pirâmide
centralista ideal na qual a cúpula, isolada das bases, era sempre endeusada, convertendo-se
em uma dinastia.
Democracia é descentralizar. É ir
desamarrando por dentro, cada vez mais, o Partido e o Estado. É participar: que
todos os organismos de Poder, desde os mais imediatos até os mais elevados, no
Partido e no Estado, sejam eleitos diretamente pelos associados individuais.
Em uma palavra: democracia é cada vez menos
governo do Partido e do Estado, e mais autogoverno da sociedade civil.
E, paralelamente, com isso e junto com
isso, estará o problema do pão, da escola, da terra e do Direito.
Nós, do Partido Comunista, havíamos tapado,
afogado, o pensamento de Marx, o pensamento da ilustração, com a tradução de um
montão de manuais de marxismo-leninismo.
Nós vivemos sempre em um partido que não
fez outra coisa, durante mais de meio século, senão instalar-se na porta da
revolução, convencido, com a maior certeza, de que esse era o seu lugar,
acabando por receber, por isso, o castigo mais duro.
Todas as revoluções neste século, em
qualquer parte do mundo - e as revoluções são muito de invenção e riqueza -,
utilizaram a violência para moer a antiga máquina, para quebrar o poder militar
entrincheirado no capital. Tudo era uma grande festa.
Porém, mesmo após cumprir o seu papel
demolidor, rompendo as antigas cadeias, mesmo após forçar as portas dos
cárceres, a violência não cessava, não se detinha e começava a
institucionalizar-se.
Eu vivi isso muitas vezes, na Nicarágua, na
China e em Cuba. Experimentei o “Poder local” guerrilheiro e vivi o
poder opressor e absolutamente arbitrário dos donos do “novo Poder”. E
tudo me parecia lógico. O novo dia, após anos de obscuridade, surgiria enredado
em fios invisíveis de medo à cidade, ao povo, à vereda, ao camarada, ao
guerrilheiro, ao dirigente. O “novo Poder” não se equivoca. Ele conhece os
traidores, os colaboradores, os cúmplices passivos, os que nunca fizeram nada,
os que não moveram um dedo. Ele conhece a todos.
Esse, todavia, não foi o problema, pois
essa dinâmica é própria de todas as revoluções. Essa violência que cumpre seu
papel libertário logo se aposenta, cedendo lugar ao “novo Estado de Direito”.
Isso não foi o mais grave no nosso caso, na história do socialismo real. O
grande problema nunca foi, entre nós, a violência revolucionária e criadora,
que se prolongou, quase sempre, além do seu tempo.
O grande problema, o verdadeiro problema, o
problema real e profundo, teve lugar mais adiante e foi de outra natureza.
Trata-se do esquema do “socialismo real”. Esta segunda violência, a do esquema
sacralizado, a do esquema que converte um possível processo histórico, uma
hipótese de trabalho a verificar, em lei, norma e sentença. Essa “racionalidade”
seca e fria, inaugurada pelo stalinismo, gerou inflexivelmente uma nova
violência, que matou metodicamente todas as primaveras revolucionárias e aguou
todas as grandes festas do nosso século.
E agora, eu me pergunto, depois de todo
esse cataclismo: quando, em que momento, por que, nos convertemos a essa idéia,
à idéia desse socialismo de bruxos, desse socialismo que deveria desmantelar o
capitalismo como uma alternativa violenta, inevitável? Quando se atravessou em
nosso caminho essa idéia tão fácil do Estado todo-poderoso, proprietário único,
com todo o poder ao ombro, como se fosse um fuzil? Quando e como se impôs entre
nós o mito do Estado como panacéia e a estadolatria? Esse mito, que primeiro foi
um crime e em seguida simplesmente um vazio, quando se transformou em miséria
sacralizada e repartida?
Foi esse o depoimento de Nicolas
Buenaventura, que um dia foi um dirigente comunista.
A propósito: certa vez, um matemático disse
que a Álgebra é a ciência dos preguiçosos. Não se conhece o valor de X, mas
opera-se com ele como se fosse conhecido. No caso dos partidos comunistas, X
representa as massas anônimas. E a política do partido sempre operou com esse
X, por mais de 70 anos, sem a preocupação de conhecer a sua natureza real.
Uma grande parte dos comunistas permanece
voltada para a tentativa desesperada de administrar a nova situação produzida
pelo desmonte da “doutrina científica” antes que ela se evapore definitivamente
de seus corações e mentes. Isso não tem sido fácil, pois desde a queda do Muro
de Berlim, em 9 de novembro de 1989, e do fim da União Soviética, na noite do
Natal de 1991, os antigos dogmas, tidos como verdades científicas, permanecem
estratificados. Esse é, hoje, o X do problema algébrico.
Na década de 90, logo após o
desmantelamento do socialismo real, em um muro, em Quito, Equador, poderia ser
lida a seguinte frase, escrita pelos comunistas: “Ahora, que teníamos todas las
respuestas, se cambiaram las preguntas”.
A partir de então, um sem número de
defensores da causa, em todos os países, entregam-se a uma autocrítica
devastadora, chegando invariavelmente a uma mesma conclusão desoladora: os que
progrediram no partido da classe operária foram os burocratas, os secretários,
os maiores culpados pelo desmantelamento do socialismo real.
Onde quer que existisse um partido
comunista, o modesto burocrata sempre observou, desde a sua mesa, quase com
admiração, como chegavam à sede do partido os revolucionários, os heróis da
agitação social, que imediatamente eram recebidos pelos chefes. O agitador, o
brilhante lutador, apenas notava o burocrata porque fora convencido de que ele
era a alma da burocracia partidária.
Passam-se os anos. O herói revolucionário,
o agitador de massas, líder nas greves, nas passeatas, nas colagens de cartazes
e nas pichações, na distribuição de panfletos e outras tarefas menos nobres,
continuava indo à sede do partido. Algumas vezes até para ser repreendido e
fazer uma autocrítica. O burocrata, no entanto, prosseguia ali, impassível,
porém já em uma mesa maior. Antes manejava uma velha máquina de escrever
expropriada pelo revolucionário, brilhante lutador. Agora, na era da
informática, passava as idéias e decisões do partido diretamente ao computador.
Continuava, no entanto, obsequioso e admirador do ativista.
Passam-se mais alguns anos. O agitador tem
orgulho de seu passado glorioso, das prisões e perseguições que sofrera; da
clandestinidade, longe da família e dos amigos, e das eventuais vitórias
revolucionárias. É uma legenda, respeitado e admirado dentro do partido.
Em suas idas ao Comitê Central, é recebido
por aquele mesmo funcionário. Porém, com o passar do tempo, já algo mais que um
simples burocrata: fora elevado, por cooptação, ao cargo de Secretário de
Agitação e Propaganda (Agitprop, na terminologia partidária) ou Secretário de
Organização, com poderes, portanto, para remover o agitador, o brilhante
ativista, antes admirado, de um lugar para outro. Já, então, o burocrata encara
o velho lutador de forma diferente, pois agora lhe dá ordens, e o famoso
princípio do “centralismo democrático” faz com que essas ordens sejam
cumpridas.
Posteriormente, passados mais alguns anos,
o lutador, o ativista, comprova que o Secretário passou a integrar o Comitê
Central, substituindo um companheiro falecido. E que, assim, tornou-se membro
da privilegiada nomenklatura partidária, passando a ter direito a
passagens aéreas, férias anuais na Criméia e a matricular seus filhos na
Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba, na Escola de Ballet de
Leningrado e em outras.
O que se passou? Nada. Apenas o tempo.
O ativista, brilhante lutador, conserva seu
passado, porém já não é útil, pois está “queimado”, seja por ter se tornado
excessivamente conhecido da polícia, seja por ter cometido alguns erros, seja
porque militantes mais jovens já murmuram contra seus antiquados e
ultrapassados métodos de trabalho. Protestará, e então lhe recordarão, como se
fosse um membro da juventude partidária, que o partido da classe operária
possui um Estatuto que exige disciplina férrea e que, mais uma vez, deverá
fazer uma autocrítica.
Ao fazê-lo, a que conclusão chegará? Que
sua vida política já está - como o partido e a própria doutrina -, no descenso
da derrota, pois sonhou ser um chefe e não passou de um “quadro”; sonhou
tornar-se um teórico doutrinador e limitou-se, em toda a sua vida, a assimilar
as palavras-de-ordem alheias, nas quais, hoje, ninguém mais acredita.
Agora, resta ao velho lutador, ao agitador,
ao herói revolucionário, curar as cicatrizes e desilusões, voltar ao início do
século e, como Lenin, indagar: o que fazer? Enquanto não encontra uma resposta,
engaja-se, como tantos outros, no esporte da moda: atirar pedras nos patriotas
que impediram que a Pátria fosse transformada em um pleonasmo: uma “democracia
popular.”
O caso de Alexander Soljenitzyn foi
diferente. Tão logo foi expulso da União Soviética, teve início, no Ocidente,
uma campanha contra ele desenvolvida pelos expoentes da esquerda festiva que
não conhecem o socialismo, pois não viveram sob ele. Para essas pessoas,
Soljenitzyn passou a representar um problema, pois insistia em basear sua
rejeição ao comunismo em duas proposições morais: a de que um sistema que se
baseia na eliminação total da liberdade humana e na destruição sistemática de
todos os valores individuais é mau; e a de que tratar amistosamente esse
sistema significa trair os que sofriam sob seu jugo.
A imponente grandeza moral de Soljenitzyn e
homens como Andrei Sakharov, Vladimir Bukovsky, Piotr Grigorenko e tantos
outros, incomodava, daí a necessidade de desacreditá-los, pois não era fácil a
nenhuma sociedade conviver com essas pessoas que, pela suas próprias
existências conferem valor moral ao mundo em que vivem, inspirando milhões
dentro e fora daquele mundo, que, temeroso de matá-los ou de deixá-los viver,
acabou por expulsá-los.
Jamais a militância política nos partidos
da esquerda revolucionária poderá ser a mesma do passado: a militância
arquitetada pelo Partido Bolchevique. A impressionante explosão dos meios de
comunicação de massa modificou profundamente os padrões de sociabilidade,
diminuindo o peso das ruas, das assembléias, das passeatas, dificultando a
mobilização das chamadas massas, acrescido que a atual caminhada, sem volta,
para a globalização da economia, ao invés de concentrar trabalhadores,
dispersa-os em unidades produtivas, mantendo-os mais preocupados com seus
interesses espontâneos imediatos.
Até o início da década de 70, pelo menos,
os comunistas cultivavam a imagem do militante abnegado, totalmente dedicado à
“causa”, disciplinado, que colocava em segundo plano sua vida pessoal, quando
não abria mão dela, em função de um ideal: a vitória da revolução que abriria
caminho para a emancipação da humanidade.
O militante era, antes de tudo, o soldado
de uma causa, o homem do partido, quase o “homem-novo” idealizado por Marx.
Extremamente ideologizado, sempre dava razão ao partido, ou àquele que, no
momento, o encarnasse: Lenin, Stalin, Mao, Prestes e tantos outros. O militante
forjou-se no interior de partidos militarizados. Determinado, capaz de tudo
suportar, de jogar todas as suas fichas na utopia futura, de sufocar a
individualidade em nome de sua dissolução no universo do coletivo construído
pelo partido.
Leszek Kolakovski, outro dissidente russo,
foi mais contundente e prático, especificando o socialismo pelo que ele não é.
O socialismo não é:
uma sociedade na qual é crime ser irmão,
filho ou cônjuge de um criminoso;
uma sociedade na qual alguém possa ser
infeliz porque diz o que pensa, e um outro possa estar feliz porque não diz o
que pensa;
uma sociedade em que alguém possa estar
melhor ainda porque não pensa nada sobre coisa alguma;
um Estado cujos soldados são sempre os
primeiros a penetrar no território de um outro país;
um Estado em que qualquer um possa ser
condenado sem julgamento;
um Estado em que qualquer cidadão é
potencialmente suspeito de alguma coisa;
um Estado cujos dirigentes se nomeiam, eles
próprios, aos seus cargos, e nomeiam seus parentes para outros cargos;
um Estado que não permite a seus cidadãos
viajarem para o exterior;
um Estado cujos vizinhos amaldiçoam a
geografia;
um Estado que produz excelentes armas e
péssimos sapatos;
um Estado em que os advogados de defesa
estão sempre de acordo com o promotor;
um Estado que dita aos pintores as regras
de como pintar e outorga prêmios a autores que não sabem escrever;
uma Nação que oprime outras Nações;
uma Nação que é oprimida por uma noção;
um Estado que obriga todos os seus cidadãos
a terem a mesma opinião sobre Filosofia, Política Externa, Economia, Literatura
e Moral;
um Estado cujo governo define os direitos
do cidadão, mas a cujos cidadãos é vedado definirem os direitos dos governos;
um Estado em que cada um é responsável por
seus ancestrais;
um Estado que assina pactos com criminosos
e comete crimes para adaptar sua ideologia a esses pactos;
um Estado que gostaria de ver o seu
Ministro do Exterior determinar a opinião pública de toda a humanidade;
um Estado em que toda vontade dos cidadãos
é conhecida por seus governantes antes deles formularem qualquer pergunta;
um Estado em que os filósofos e os poetas
dizem a mesma coisa que os generais e ministros, sempre um pouco depois destes;
um Estado em que as plantas das cidades são
segredos de Estado;
um Estado em que os resultados das eleições
são sempre previstos com exatidão;
um Estado que detém o monopólio mundial do
progresso e bem-estar;
um Estado em que qualquer cidadão ou
qualquer grupo humano pode ser transplantado para outra área residencial, sem
qualquer consulta;
um Estado que acredita ser o único em
condições de salvar a humanidade;
um Estado que sabe que sempre tem razão;
um Estado que crê que nenhum outro possa
resolver melhor nenhum dos problemas existentes;
um Estado que determina quem pode
criticá-lo e como;
um Estado em que o governo pode, a cada
dia, rejeitar o que afirmou na véspera, acreditando e fazendo crer aos seus
cidadãos que nada mudou.
A verdade é que o novo militante pós-Guerra
Fria, pós-”perestroika” e pós-”glasnost”, pós- socialismo real, jamais será o
mesmo, pois não mais seguirá cegamente seus líderes; espera que o partido
imagine outros caminhos de mobilização, pois não mais poderá insistir,
simplesmente, em “colocar as massas na rua” .
Definitivamente, os modelos de militância
que marcaram os setores mais radicais da esquerda nos últimos 70 anos se
esgotaram. Figuras como “o bolchevique, o agitador anarquista, o guerrilheiro
urbano, o soldado-partido”, não mais existirão, pois as regras que regulavam o
funcionamento dos coletivos que constituíam essas figuras “jurássicas” foram
derrubadas.
Uma dessas regras, a fundamental, era
aquela em que a Rainha Vermelha, do livro “Alice no País das Maravilhas”,
bradava:
“Primeiro a sentença; depois o veredicto!!”
.
Carlos
I. S. Azambuja é Historiador.
Transcrito do www.alertatotal.net/