Fernanda
Odilla
Com uma
base dispersa no Congresso, que dificulta a articulação e não garante certeza
de apoio em votações importantes, o presidente Jair Bolsonaro tem recorrido à
assinatura de decretos para tirar do papel promessas de campanha, mudando leis
e reorganizando a administração federal sem depender diretamente dos votos de
deputados e senadores.
Nos primeiros cinco meses de mandato, Bolsonaro editou 157 decretos
presidenciais, e chegou a dizer que tem mais poder que o presidente da Câmara
justamente por ter uma caneta à mão para assinar esse tipo de expediente.
Ele usou esse poder para editar, por exemplo, o decreto de armas, que
pode até ser derrubado pelo plenário do Senado em votação prevista para essa
semana se a maioria entender que a medida contraria a lei.
Para agradar a base aliada, o presidente tem tentado ainda tirar do
papel com sua caneta projetos de congressistas aliados via decreto, como fez
com o fim do horário de verão, proposta do deputado João Campos (PRB-GO) que
tramitava lentamente.
Bolsonaro, contudo, não é o presidente que mais editou decretos –
Collor, Itamar, FHC e Lula editaram mais na média mensal, por exemplo – e
tampouco o Brasil é o único que tem usado esse tipo de expediente que permite
mudar leis e tomar decisões administrativas sem autorização do Congresso.
É o que revela a pesquisa Presidência Institucional na América Latina,
feita no Centro para Estudos Latino Americanos na Universidade de Stanford, na
Califórnia (EUA) pela cientista política e professora da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) Magna Inácio.
MP x
Decreto
Diferente das medidas provisórias, que necessariamente precisam da
aprovação do Congresso para continuar em vigor, os decretos são, como diz
Inácio, decisões unilaterais do presidente. No Brasil, os decretos entram em
vigor imediatamente após a publicação no Diário Oficial, sem apreciação prévia
do Congresso.
"Os decretos (tendem a ser) pouco analisados, pois seus efeitos
são considerados discretos, residuais. Mas não são", afirma a professora
Inácio que analisa a edição desses decretos em países como os Estados Unidos,
Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Peru e Brasil desde a década de
1980.
Ela assinala que, ao contrário do que possa parecer à primeira vista,
na América Latina, quanto mais força o presidente tem no Congresso, maior é o
número de decretos assinados. A orientação ideológica, ela acrescenta, não é o
que mais influencia o número de decretos editados.
"Essas decisões unilaterais dependem dos poderes que o presidente
tem e do tamanho da maioria que o apoia. São utilizadas por presidentes com
diferentes orientações ideológicas", afirma, lembrando que decretos não
têm força de lei e podem ser questionados - e revistos – pelo próprio Congresso
ou pela Justiça.
Exagero
"Obviamente, presidentes com agendas de reformas mais ambiciosas
e divergentes dos governos anteriores podem recorrer mais a esse tipo de
decreto, seja para rever regulamentação de leis e decretos prévios ou
reorganizar os órgãos do Executivo de acordo com as suas prioridades", completa
a professora.
O estudo indica que presidentes dos EUA usam menos esse tipo de
expediente se comparados aos líderes de países sul-americanos.
Mas, nos Estados Unidos, Donald Trump tem recebido críticas por
exagerar no número de Ordens Executivas, medidas administrativas similares aos
decretos no Brasil que permitem que o presidente americano ponha em prática
decisões sem aprovação prévia do Congresso, como por exemplo, definir como as
agências federais devem usar seus recursos e até inverter decisões tomadas
anteriormente.
Nos primeiros 100 dias de governo, o presidente americano assinou 30
ordens executivas. Foram 11 ordens executivas a mais que o democrata Barack
Obama e 19 mais que republicano George W. Bush.
Para construir o muro na fronteira com o México e, assim, tirar do
papel uma promessa de campanha, Trump assinou uma ordem executiva. Também usou
o expediente para construir dois oleodutos descartados por Obama e ainda mudou
a lei para ficar mais fácil demitir funcionários do governo federal e restringir
a ação dos sindicatos que os representam.
Trump também assinou, em 2017, uma nova ordem que ficou conhecida como
"comprar (produtos) americanos e contratar americanos" ("Buy
American, Hire American") para o país aplicar "de forma
rigorosa" as leis migratórias e o controle de concessão de vistos de
trabalho a estrangeiros.
Picos
O estudo da professora revela que, nos países da América do Sul, o
número anual de decretos editados varia significativamente e tende a atingir
picos em momentos críticos.
O número de decretos disparou durante a implementação intensiva de
reformas estruturais, como os planos de estabilização da inflação e de
privatização realizados por Carlos Menem (1989-1999) e no início do período dos
Kirchner (2003-2015) na Argentina.
O Paraguai, por sua vez, experimentou dois picos, durante as
administrações minoritárias e politicamente instáveis de Juan Carlos María
Wasmosy Monti (1993-1998) e Fernado Lugo (2008-2012).
Já o Peru, onde o Congresso tem diversas ferramentas para controlar o
Executivo, apresenta um número crescente de decretos emitidos, especialmente
após o período autoritário de Alberto Fujimori (1990-2000).
Decretos no
Brasil
A professora Magna Inácio diz que, no Brasil, o presidente que mais
editou decretos foi José Sarney (com média mensal de 113,2 decretos). Em
seguida, aparece FHC com média de 104,7 decretos por mês. Jair Bolsonaro
assinou, até abril, uma média de 31,4 decretos por mês.
Nesses números estão incluídos os chamados decretos numerados e os não
numerados. O expediente de decretos não numerados foi criado pelo então
presidente Fernando Collor, em 1991, e perdurou até 2018, quando foi extinto
por Michel Temer.
O decreto não numerado era usado para decisões como abertura de
créditos, declaração de utilidade pública - como desapropriação para fins de
reforma agrária -, concessão de serviços públicos, criação de grupos de
trabalho e declaração de vacância de cargos. Os decretos numerados eram
restritos às decisões com efeitos normativos, ou seja, aqueles que especificam
os detalhes de como uma lei será aplicada.
Na prática, são dois os tipo de decretos: um que vale para
regulamentar uma lei, determinando a forma de aplicação da lei, e outro para
modificar a estrutura administrativa do Executivo.
"O decreto regulamentar permite ao presidente implementar ou
modificar seletivamente uma lei", diz Inácio, citando como exemplo o
decreto das armas, editado pelo presidente Bolsonaro em maio, que alterou a lei
existente, ampliando possibilidades de porte de armas.
O outro tipo é o decreto administrativo que permite, desde 2001,
modificar a microgestão de políticas e programas de governo. "Ou seja, ele
pode transferir órgãos e competências entre unidades da administração federal
por decreto, para fortalecer ou enfraquecer certas áreas de política ou para
premiar ou punir certos grupos de interesses", explica a professora.
"Os dois tipos de unilateralismo permitem ao presidente certa
flexibilidade para governar", justifica a professora.
Segundo ela, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva
usaram extensivamente o expediente para implementar políticas distributivas,
como desapropriação de terras para fins de reforma agrária.
Já os decretos de Michel Temer e Bolsonaro têm, segundo a professora,
foco principalmente na gestão das políticas públicas e a estrutura do
Executivo, por meio de decisões direcionadas aos servidores públicos e órgãos
do executivo.
'Articulação
é fundamental'
Bolsonaro pode não ser o presidente que mais editou decretos, mas é um
dos poucos que fala abertamente sobre o "poder da caneta" que tem nas
mãos.
No mesmo dia em que se reuniu com os chefes do Legislativo e do
Judiciário para discutir um "pacto pelo Brasil", o presidente
declarou ter mais poder que o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ).
"Hoje pela manhã tomando café com Dias Toffoli (do STF), (Davi)
Alcolumbre (presidente do Senado) e Maia eu disse para Maia: com a caneta eu
tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis,
eu tenho o poder de fazer decreto. Logicamente decretos com fundamento",
disse Bolsonaro, horas depois do encontro, durante discurso no lançamento da
Frente Parlamentar da Marinha Mercante, em Brasília, em 28 de maio de 2019.
O estudo de Magna Inácio indica ainda que não são os presidentes com
coalizões pequenas e bases fracas os que governam por meio de decretos
justamente pela dificuldade de conseguir os votos da maioria.
"Presidentes com apoio majoritário no Congresso utilizam mais
decretos porque também aprovam mais leis e as implementam rapidamente. Além
disso, aqueles que formam coalizões utilizam esses decretos para gerenciar os
seus aliados dentro do Executivo".
Mas, segundo a professora, decretos representam um risco maior para
presidentes com bases minoritárias, como as de Collor e Bolsonaro, ou para os
que lideram coalizões mais heterogêneas, como aconteceu com Dilma Rousseff.
"Para serem bem-sucedidos, os presidentes precisam antecipar os
humores do Congresso, as reações fora do Parlamento. Para isso, a articulação
com o Congresso é fundamental. Líderes e legisladores soam alarmes diante de
propostas sem suporte parlamentar, impopulares ou que serão vistas como ameaças
dentro do Congresso. Ou seja, o presidente pode evitar desastres se souber
ouvir o Congresso e decifrar seus sinais", avalia Inácio.
"E, uma vez diante de reações do Congresso, presidentes fracos
não têm votos. Esse roteiro nós aprendemos com Collor e Dilma no Brasil.
Bolsonaro, ao dizer que é mais poderoso do que o presidente da Câmara dos
Deputados porque pode fazer decretos com a sua Bic, parece ainda não ter
entendido essa lição. Ao contrário, o presidente vinculou claramente a
disposição em agir unilateralmente a uma disputa com o Congresso".
'Contraintuitivo'
O professor Cristóbal Rovira Kaltwasser, da escola de ciência política
da Universidade Diego Portales, no Chile, diz que o estudo de Magna Inácio, à
primeira vista, parece ser "contraintuitivo" por indicar que
presidentes com bases grandes e não os com menos apoio no Congresso são os que
tendem a editar mais medidas.
Mas, segundo Kaltwasser, a pesquisa revela um problema chave do
chamado presidencialismo de coalizão - não só no Brasil como na América Latina.
Para o professor, o estudo abre novas frentes de pesquisa como as dificuldades
de se governar com uma coalizão grande mas fragmentada e diversa e ainda sobre
as prioridades dos presidentes e de que forma eles executam suas políticas.
O professor observa que Venezuela e Colômbia, por exemplo, usam do
expediente. Conta ainda que no Chile uma medida administrativa está sendo usada
para mudar uma lei aprovada no governo anterior, de Michelle Bachelet, que
permite o aborto em casos de risco de vida da mulher, estupro e malformação
fetal fatal.
Cristóbal Rovira Kaltwasser pondera que decretos são importantes
porque dão agilidade a determinadas ações que requerem urgência. Cita, por
exemplo, medidas que precisam ser tomadas em caso de desastres naturais, como
terremotos.
"O problema é o uso sistemático para temas que não estão
relacionados a emergências", avalia, emendando que é uma medida usada por
líderes tanto de direita quanto de esquerda "com uma agenda mais
radical".
Magna Inácio cita como exemplo a agenda de governo de Bolsonaro, que
tem sido, em parte, implementada via decretos.
"É o teor dos decretos, mais do que o número, que parece
sinalizar um movimento mais radical de unilateralismo presidencial no governo
Bolsonaro", opina a professora, lembrando que algumas medidas do
presidente têm sido questionadas e correm o risco até de serem invalidadas.
Preço alto
A aparente agilidade assegurada pelos decretos não é garantia de que o
presidente vai poder impor sua agenda sem percalços ou questionamentos.
No caso de Temer, um dos decretos assinados por ele rendeu também um
processo criminal. Em abril de 2019, Temer virou réu por ter editado o decreto
dos portos. O inquérito foi aberto em 2017, a partir de delações premiadas de
executivos da empresa J&F. Para o Ministério Público Federal, o
ex-presidente cometeu os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e lavagem
de dinheiro para editar um decreto que beneficiaria uma empresa. Temer nega.
E o impeachment Dilma Rousseff também foi fundamentado nos decretos
assinados pela então presidente. Dilma perdeu o cargo após ter sido acusada de
editar créditos suplementares para atrasar pagamentos da União a bancos
públicos e, assim, manobrar o orçamento sem a aprovação do Congresso.
Em relação aos decretos editados por Bolsonaro, há questionamentos e
pedidos para invalidá-los. Só na Câmara, há 117 pedidos para sustar 20 dos
decretos assinados por Bolsonaro. Há ainda ações no Supremo questionam a
legalidade da "canetada" do presidente em relação à flexibilização do
porte de armas.
Essa semana, Bolsonaro viu a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)
do Senado aprovar relatório que pede a suspensão do decreto editado em maio
para alterar regras de uso de armas e de munições, facilitando o porte. Agora,
a suspensão vai ser discutida pelo plenário do Senado.
O presidente também viu o STF impor limites a um outro decreto que
extinguia conselhos. Por unanimidade, os ministros determinaram que o governo
federal não pode extinguir conselhos que tenham sido criados por lei - estudo
do Ipea de 2017 indica que 40% dos conselhos foram criados por lei.
Da
BBC News Brasil em Londres