Editorial
Não se pode tolerar que o Estado ou
maiorias políticas ocasionais imponham às pessoas um modo único de pensar,
sentir e viver
Pode o
Estado obrigar um confeiteiro a fazer um bolo que celebra algo profundamente
contrário a suas crenças? Tentando responder a essa pergunta, nesta terça-feira
(5), a Suprema Corte dos Estados Unidos ouvirá os argumentos das partes de Masterpiece
Cakeshop vs. Colorado Civil Rights Commission, um caso que pode ter impactos
diretos sobre as liberdades individuais no país e, por extensão, em todo o
Ocidente. Nada menos do que 94 instituições se apresentaram ao tribunal como amici
curiae. O caso ganha especial relevância porque cada vez mais juízes e
estudiosos, no Brasil inclusive, têm se voltado para as decisões da Suprema
Corte em busca de inspiração e argumentos.
A
disputa começou em 2012, quando dois homens pediram a Jack Philips um bolo de
casamento. Philips, que é católico, rejeitou o pedido educadamente, como já
havia rejeitado pedidos para o Halloween e até de um bolo celebrando um
divórcio, e indicou outra loja que pudesse atender o casal, que preferiu, no
entanto, registrar uma queixa na Comissão de Direitos Civis do Colorado. Embora
a Comissão já tenha garantido o direito de confeiteiros ateus se negarem a
fazer bolos criticando as uniões homossexuais e de um confeiteiro muçulmano a
se abster de fazer um bolo criticando o Corão, neste caso o órgão estatal
entendeu que a atitude de Philips violava uma lei estadual que proíbe a
discriminação por “orientação sexual e identidade de gênero”.
Os direitos constitucionais
funcionam como uma barreira contra eventuais pretensões totalitárias
O caso
do confeiteiro está sendo analisado, do ponto de vista jurídico, pela ótica da
liberdade de expressão, por uma série de razões, entre as quais a robusta
proteção que o Judiciário americano oferece a esse direito. Duas questões
organizam a discussão. Produzir um bolo extremamente elaborado equivale a uma
“expressão” protegida pelo direito? Os precedentes da Suprema Corte indicam que
sim. Se equivale, pode o Estado obrigar alguém a expressar algo que contrarie
suas crenças mais arraigadas? Os mesmos precedentes dizem que não. Philips não
negou um bem fundamental ao casal, uma expertise imprescindível que só ele
pudesse oferecer, nem lhes negou nada com base em características pessoais como
a cor da pele. Ele se nega, na verdade, a colocar sua arte, o fruto mais íntimo
de seu trabalho, a serviço de uma prática que considera imoral. Pode-se tentar
convencer Philips de que ele está errado, mas jamais forçá-lo a escolher trair
sua consciência ou abandonar sua fonte de subsistência.
O caso
de Philips também envolve a proteção da liberdade religiosa e da objeção de
consciência. Quando, em 2015, no caso Obergefell vs. Hodges, a Suprema
Corte decidiu que os legisladores estaduais não poderiam definir o casamento
como a união de um homem com uma mulher (por 5 votos a 4), ela endossou uma
concepção de casamento que contraria a compreensão tradicional do direito, do
senso comum e da tradição de várias religiões, colocando as pretensões estatais
em curso de colisão com as crenças mais profundas de inúmeros indivíduos. Por
isso, a própria corte tomou o cuidado de enfatizar que “as religiões, e aqueles
que aderem a doutrinas religiosas, devem poder continuar a defender com a mais
sincera convicção que, por preceitos divinos, o casamento entre pessoas do
mesmo sexo não deve ser aceito”.
Decorre
disso, portanto, que Philips não pode ser obrigado a colocar sua arte à serviço
de uma prática que condene. Os direitos constitucionais funcionam, e devem
continuar funcionando, como uma barreira contra eventuais pretensões
totalitárias – eles não são, e não podem ser, beneplácitos que o governo
concede e retira a seu bel prazer: do contrário, perderiam toda sua substância
e sua razão de ser. A preservação da liberdade religiosa e da objeção de
consciência tampouco serve apenas a uma ou outra religião, mas a todas elas e,
inclusive, a quem não professa nenhuma fé. Sem limites claros, o mesmo Estado
que hoje quer avançar sobre a consciência de um católico amanhã poderá avançar
sobre qualquer ateu que tenha convicções contrárias à cartilha da moda.
Há outro
aspecto importante em jogo neste caso. Se o Estado puder avançar assim sobre os
indivíduos, poderá interferir na formação de associações que professem tais ou
quais valores, dissolvendo a distinção mesma entre sociedade civil e Estado,
sonho inconfesso de todo filo-totalitário. Nesse caso, o passo é curto entre
obrigar Philips a fazer bolos e, por exemplo, forçar igrejas a realizar
casamentos contra sua vontade. Não se trata de alarmismo, mas de delimitar com
clareza os limites para as ações de Estado, a fim de preservar a liberdade
humana e garantir uma sociedade civil vibrante em suas discordâncias
respeitosas.
A defesa
dessas liberdades tampouco se confunde com o relativismo moral. Trata-se,
antes, de reconhecer o pluralismo de modos de vida e de pensamento nas
sociedades contemporâneas, em que todos são livres, dentro de parâmetros legais
razoáveis, para discordar e tentar convencer uns aos outros. Isso tem como
pressuposto justamente a ideia de que o exercício da razão é capaz de nos
conduzir em direção à verdade – o ponto de chegada de um caminho que só pode
ser percorrido com liberdade.
Assim, o
que não se pode tolerar, e é contra isso que a objeção de consciência e a
liberdade religiosa nos protegem, é que o Estado ou maiorias políticas
ocasionais imponham às pessoas (ao fim e ao cabo pela força) um modo único de
pensar, sentir e viver. Eis um caso em que a derrota de um indivíduo implicaria
a derrota de todos.
Gazeta do Povo
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