domingo, 3 de dezembro de 2017

Os cachorros selvagens que votam em assembleia

Javier Salas

Desde que sabemos que o homem é o lobo do homem, as metáforas animais para descrever a política humana tiveram grandes marcos, como os líderes machos alfa, os enfrentamentos entre falcões e pombos ou os porcos daRevolução dos bichos. E os especialistas emcomportamento de animais não deixam de oferecer oportunidades para popularizar novas. Por exemplo, ficaria bem dizer que “na Europa votam como os mabecos”? E que tal dizer que “esse conselho de acionistas funciona como uma reunião de cachorros selvagens”?

Os mabecos, uma espécie selvagem da família doscachorros que vive na África, são animais muito sociáveis que saem em grupo para caçar. Como em bandos de outras espécies, os mabecos contam com líderes que, depois de capturarem a presa, conquistam a hierarquia que lhes permite alimentar-se antes dos demais. Mas os mabecos, considerados os canídeos mais sociáveis e os de maior êxito nas caçadas, desenvolveram um sistema muito peculiar para impedir que o poder absoluto dos membros dominantes do grupo se imponha.

Os cientistas que os estudam em Botsuana se perguntaram durante muito tempo quais seriam os mecanismos ativados nas vibrantes reuniões que congregam os mabecos antes de começarem a se movimentar em grupo ou saírem para caçar. Essas reuniões, qualificadas por eles de “energéticas” e “altamente ritualizadas”, têm uma importância social enorme, porque servem para representar a unidade como bando desses cachorros selvagens africanos. Mas havia um mistério que intrigava os pesquisadores que acompanham seu comportamento: apenas um terço das reuniões terminam com o grupo saindo, e não se sabia explicar por que isso acontecia.

Os cientistas da Botswana Predator Conservation Trust monitoraram exaustivamente 68 desses encontros, em cinco bandos diferentes, para chegar a esses sinais ocultos. E depois de revisar as gravações e cruzar dados com o resultado das reuniões, surgiu uma conclusão que, dizem, lhes pareceu inacreditável. Os mabecos se reúnem em forma de assembleia: votam se estão de acordo com partir ou se preferem ficar mais tempo ali.
O sistema de votação usado é o que os humanos chamam de voto aberto (não respeitam as garantias que oferece o voto secreto), mas um tanto peculiar: com uma forte exalação pelo nariz, um tipo de espirro sonoro, que serve para manifestar sua posição. De todos os gestos e circunstâncias que acontecem nessas reuniões rituais na quais se cumprimentam, correm juntos, grunhem e levantam nuvens de pó, só o número de espirros ouvidos em uma reunião era indicativo de seu resultado. Já se tinha notícia de que outros canídeos, como coiotes, cães domésticos e chacais, arfam, roncam e bufam para se comunicar.

Votam, sim, mas não é um sistema de sufrágio universal no qual a cédula espirrada por um valha igual para todos. Essas assembleias começam quando um membro da manada a convoca, com gestos ritualizados (cabeça baixa, boca aberta e orelhas dobradas para trás) que podem ser traduzidas como “proponho que comecemos a andar”. E não é a mesma coisa se quem sugere é alguém com alta patente na hierarquia social ou um dos mabecos que não tem direito a comer como os primeiros.

“Descobrimos que a probabilidade de sucesso de uma reunião aumenta conforme a hierarquia de quem a inicia, e exige-se mais espirros dos iniciadores de menor patente para que tenham sucesso”, afirmam os autores do estudo publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society B. Como dizem os cientistas políticos, os mabecos dominantes do bando têm mais poder de barganha, mas esse sistema de votação oferece um contrapeso político para que nem sempre imponham seu critério (falham um quarto das vezes) e para que a classe baixa mabeca possa ter sucesso em suas convocatórias.

Democracia animal e ciências sociais
“Quando o macho e a fêmea dominantes estavam envolvidos na reunião, o bando só teve de espirar algumas vezes para que se movessem”, explica a primeira autora do estudo, Reena Walker, da Brown University, em uma nota. “No entanto, se o casal dominante não estava envolvido, eram necessários mais espirros para que a manada caminhasse”, explica Walker. Na verdade, um mabeco qualquer precisava do triplo de votos favoráveis do casal alfa. Algo assim como o voto ponderado dos países da União Europeia, que exige uma maioria qualificada no Conselho para tomar as decisões. Se Alemanha e França agem como casal dominante, têm grandes possibilidades de prevalecer, mas a aritmética permite que os países menores vençam pelo número.

“Em conjunto, esses dados sugerem que os cachorros selvagens usam uma vocalização específica (o espirro) junto com um mecanismo de quórum variável no processo de tomada de decisões”, concluem os pesquisadores. Os mabecos não são os únicos animais que votam. Os gorilas de montanha se valem de um sistema parecido, usando grunhidos, para optar por deixar o ninho. Os suricatas também precisam que haja quórum para que todo o grupo decida se mover em busca de comida, do mesmo modo que os sinais das abelhas melíferas e os trinados dos macacos-prego são necessários para que haja saídas coletivas.

A mesma revista científica que publica esses resultados dedicou uma monografia há alguns anos para comparar o sistema de tomada de decisões de um grupo de humanos e do resto dos animais. Em suas conclusões, afirmava que a observação que mais chama a atenção é que nessa área das ciências naturais estavam “reinventando a roda” que os cientistas sociais já conheciam há tempos. “Muitos conceitos e ferramentas matemáticas que estiveram disponíveis de forma avançada e sofisticada nas ciências sociais durante um tempo estão sendo redescobertos, às vezes de forma ligeiramente diferente, pelos naturalistas”, afirma na publicação da Royal Society, propondo que os especialistas em animais se deixem ajudar por sociólogos, porque as semelhanças são importantes.

EL PAÍS

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