Patrícia Campos Mello
Em entrevista, cientista político
afirma que causa precisa de menos manifestantes e mais prefeitos
RESUMO. Em
entrevista à Folha, autor do artigo político mais lido do New York Times em
2016 defende que a esquerda precisa de menos manifestantes e mais vitórias
eleitorais. Ele critica a política identitária abraçada pelos democratas e a
falha do partido em conceber visão de país na qual diferentes grupos se
reconheçam.
Mark
Lilla se tornou o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda ao criticar, em
artigo no New York Times, em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, a
política identitária abraçada pelo Partido Democrata.
Para o
cientista político e professor da Universidade Columbia, o discurso que
enfatiza identidades e isola os eleitores de grupos minoritários é responsável
pelas seguidas derrotas dos democratas nos Estados Unidos.
Ao
segmentar o eleitorado e customizar a mensagem para hispânicos, negros,
mulheres e cidadãos LGBT, os liberais americanos —no sentido que a palavra tem
nos EUA, de pessoas de centro-esquerda que defendem atuação do Estado para
reduzir desigualdade— teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país
que atraísse toda a população.
O texto
"O fim do liberalismo identitário" foi o artigo político mais lido do
jornal naquele ano, e acabou se transformando em um livro, "The Once and
Future Liberal: After Identity Politics" (O liberal de então e o do
futuro: depois da política identitária), lançado nos EUA em agosto do ano
passado pela HarperCollins. Novamente, seu argumento foi recebido com críticas
viscerais.
Lilla,
que virá ao Brasil para participar de uma das conferências do ciclo Fronteiras
do Pensamento, em novembro, diz que se transformou em um elemento
"tóxico" para a esquerda, mas dobra a aposta. "Não se trata de
parar de lutar pelos direitos das minorias, mas sim de começar a ganhar essas lutas",
disse, em entrevista à Folha.
Para
ele, uma outra prova de que as políticas identitárias são equivocadas é que
líderes autoritários populistas de direita, como Vladimir Putin, o húngaro
Viktor Orbán e até o grupo racista americano Ku Klux Klan fazem da identidade sua
razão de ser.
• Folha
- O senhor afirma que os liberais deveriam abandonar o discurso focado nas
minorias para voltar a ganhar eleições. Mas ao fazer isso, os liberais não se
arriscam a abandonar a luta pelos direitos das minorias, das pessoas que ainda
não têm direitos assegurados?
Mark
Lilla - As pessoas interpretaram meu livro da forma errada. Eu não defendo
que se abandone a luta pelos direitos das minorias. O sentido de se lutar pelos
direitos das minorias é conseguir governar de forma que seja realmente possível
proteger esses direitos. Para isso, é preciso ganhar as eleições. Você não vai
conseguir proteger ninguém se não vencer, você estará apenas envolvido em um
teatro simbólico.
No
governo americano, os estados têm muito poder. Por exemplo: no país, existe um
direito constitucional ao aborto. Mas, em muitas partes do país, principalmente
no Sul e no Sudoeste, uma mulher não consegue fazer um aborto porque os estados
impõem muitos obstáculos para os médicos que fazem o procedimento, exigem que as
mulheres passem por um período de espera ou se submetam a exames e testes
humilhantes.
• Mas as
legislaturas estaduais podem fazer isso, mesmo o aborto sendo um direito
constitucional?
Sim,
porque a Suprema Corte não diz exatamente o que é necessário fazer para
garantir que uma mulher tenha direito ao aborto. Então, para proteger os
direitos de uma jovem negra no Texas, você precisa ganhar um cargo eletivo
naquele estado.
O único
jeito de vencer eleições é persuadir texanos, que vivem em um estado religioso,
de maioria branca, e para isso é preciso achar uma mensagem que ressoe com
eles.
Ou seja,
não estou dizendo que nós devemos deixar de lutar pelos direitos das pessoas ou
nos voltar para outros grupos. Meu ponto é que os democratas perderam a capacidade
de conceber e comunicar uma visão de país na qual pessoas de vários grupos
diferentes se reconheçam, e sintam que o programa político é para elas também.
Se você
falar em princípios gerais democráticos, como solidariedade e proteção de
direitos, isso atinge igualmente o trabalhador branco e a jovem negra que
acabei de mencionar.
Mas o
problema da política identitária é que ela mudou o foco. Priorizaram a política
simbólica de querer reconhecimento, em vez de ganhar eleições. E essa política
enxerga o país apenas como uma série de tribos... Então como eles vão conseguir
chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo?
• O
senhor acredita que existe o risco de as minorias, que estão acostumadas a
serem o foco da mensagem, sentirem-se excluídas se a esquerda passar a ter um
discurso mais abrangente?
Eu acho
que não. Não estou dizendo que não devemos falar em direitos das minorias,
estou dizendo que não devemos falar nesses direitos em termos de identidade.
Tudo o
que preciso fazer para ajudar a jovem negra é convencer o eleitor branco de que
os princípios de solidariedade e proteção igualitária se aplicam aos dois. O
eleitor branco não precisa reconhecer a concepção da jovem negra sobre ela
mesma, sobre sua experiência como negra, sobre a história dos negros. Eu só
preciso que os dois concordem em relação a um programa político, para que eles
consigam nos eleger.
• O
senhor é a favor de políticas que tentam mitigar as desvantagens e injustiças
sofridas pelas minorias, como ações afirmativas e cotas?
Sim,
acho que são um programa de reparações que funciona. Mas eu gostaria que
conseguíssemos justificar esses programas para os eleitores brancos.
Hoje em
dia, ao darmos a vaga a um estudante negro que não tem nota suficiente para ser
admitido, ficará de fora um estudante branco. Mas não vai ser um branco da
burguesia, vai ser um branco da classe trabalhadora. E a realidade é que ambos,
o negro e o branco de classe baixa, precisam de ajuda para entrar na
universidade.
Gostaria
que pensássemos em formas de abordar essa questão. Porque hoje, isso ajuda a
direita, ao voltar segmentos de baixa renda uns contra os outros.
• O
senhor acredita que o fenômeno Donald Trump seja, em certa medida, uma reação à
exacerbação da política identitária no país?
Há duas
coisas acontecendo neste país. Uma é política eleitoral, a outra é uma espécie
de revolução esperançosa na sociedade americana, ligada a minorias, a mulheres,
à sexualidade.
Esse
movimento é liderado pelas elites do país —nas universidades, em Hollywood, no
mundo corporativo. Então Trump atrai as pessoas que sentem que a cultura delas
está sendo modificada por pessoas de outra classe social, e elas não têm nenhum
poder sobre isso.
Essas
pessoas acham que não se trata de uma revolução democrática. E isso abre
caminho para que os democratas sejam retratados como esnobes culturais, que
desprezam essas pessoas e não estão nem aí para os interesses delas. O maior
erro é que a política identitária impediu ativistas de pensar em termos de como
se ganha uma eleição, impediu que desenvolvessem uma visão unificadora de país,
que também incluiria as pessoas com as quais eles se importam.
Hillary
Clinton não conseguiu articular esses temas e ficava constantemente mencionando
esses grupos identitários. Ela não conseguiu unir o eleitorado.
• É
possível comparar a popularidade de Trump e a ascensão de líderes autoritários
populistas, como Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria, como
uma reação à exacerbação da política identitária e do politicamente correto?
Pelo
contrário. Na realidade, esses líderes também usam a política identitária, por
meio da identidade nacionalista. Historicamente, a política identitária era um
reduto da direita, seja na Europa na primeira metade do século 20 ou agora, com
esses líderes. E Trump também explora isso.
Nesses
lugares, não existe a política identitária de esquerda de que estamos falando.
Esse é um dos motivos pelos quais estou muito interessado em minha ida ao
Brasil, um país multiétnico e multicultural. Quero ver que tipo de tensões
políticas isso produz.
• No
artigo, o senhor afirma que a Ku Klux Klan foi o primeiro grupo identitário.
Mas será que a comparação é válida? A KKK estava tentando eliminar uma minoria,
os negros, enquanto grupos identitários de hoje querem apenas conquistar mais
direitos, não eliminar o dos outros...
Eu
obviamente não estava comparando moralmente a KKK com os grupos atuais. Estava
simplesmente apontando que a política identitária branca tem uma longa história
nos EUA. E é por isso que os liberais precisam se afastar de políticas
identitárias, já que elas representam um risco de reação negativa séria e
perigosa. Como estamos vendo hoje.
•
Entendo que o senhor enfatize que não está falando em abandono da luta pelos
direitos das minorias...
As aspas
corretas são: eu quero vencer essa luta. Não se trata de parar de lutar, mas
precisamos começar a ganhar essas lutas.
• Neste
momento, os Estados Unidos têm um presidente famoso por suas posições ou
opiniões misóginas e até racistas. O senhor acha que é um bom momento para
abandonar o discurso de defesa dos direitos das minorias?
É
exatamente por isso que agora é o momento ideal, porque nós precisamos ganhar.
Precisamos vencer, mais do que nunca, porque temos um presidente que se opõe a
esses direitos. É o momento exato para começar a vencer eleições, em vez de
ficar apenas levantando nossas espadas no ar e nos expressando. É hora de
realmente destronar o Partido Republicano.
• O
senhor esperava reações tão viscerais ao seu artigo publicado no New York
Times?
Não, na
verdade, não esperava. Eu escrevi aquilo em duas tardes, estava só desabafando,
porque estava frustrado. Não esperava transformar aquilo em livro.
Mas a
intensidade da reação na esquerda —uma crítica histérica que não abordava o meu
argumento— apenas confirmou minha visão de que a política dos democratas foi
simplesmente substituída por uma pseudopolítica de reconhecimento cultural.
• O
senhor enxerga um tipo de censura que o impede de questionar se a abordagem da
esquerda está sendo eficiente? Katherine Franke, que também é professora na
Universidade Columbia, o acusou de tornar a defesa da "supremacia
branca" respeitável de novo...
Se eu
estivesse diante de um juiz, diria: meritíssimo, "I rest my case"
[expressão usada em tribunais, quando se acredita que algo que foi dito prova
que a pessoa estava certa]. Essas pessoas apenas corroboram minha tese.
Em
relação a Katherine Franke: de todos os professores de Columbia, eu escrevi o
livro mais polêmico do ano, e ninguém, nem um único professor da universidade,
convidou-me para debater, ou falar para a classe deles, fazer uma palestra.
Nada, silêncio completo.
• Na sua
opinião, eles estão censurando o debate ou simplesmente não estão interessados?
Eles não
querem debater, porque não querem legitimar uma discussão sobre isso.
Independentemente
da enxurrada de críticas, o texto foi o artigo político mais lido do ano, tocou
em algum ponto nevrálgico.
Houve
uma reação histérica de gente que passa o tempo todo no Twitter e acha que
apertar o botão "enviar" é um ato político. Mas fiquei muito feliz de
também receber retorno de liberais que são muito comprometidos com reformas,
mas estão cansados de perder eleições. Eles querem que os democratas ganhem,
mas simplesmente não podem criticar a orientação do partido.
Uma
líder de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão me escreveu dizendo
que tinha orgulho do país, orgulho de ser lésbica, e que estava esperando que
alguém escrevesse um artigo como o meu.
Não
apenas essas pessoas não podiam falar sobre esse direcionamento do partido,
elas estavam sofrendo bullying. E não conseguiam articular sua crítica, pôr em
contexto histórico, que foi o que tentei fazer no livro.
• O
senhor mencionou que coleciona os tuítes mais engraçados ou cruéis sobre seu
trabalho...
Sim,
guardei alguns, os que eram engraçados —intencionalmente ou não. Mandei como
cartão de Natal aos amigos, em vez da foto da minha família [há uma tradição
nos EUA de mandar uma foto de família com mensagem natalina].
• Qual
foi o papel das redes sociais no acirramento da polarização política e da
controvérsia em relação ao seu livro?
Eu nunca
tinha usado o Twitter. Foi a minha introdução ao pântano. E ficou claro algo
que todos já sabem, que as pessoas tuítam um boato sobre um boato de um boato
do que diz um livro. Passo muito tempo nas entrevistas corrigindo as pessoas
porque elas não leram o livro.
• Como
você responde à crítica relacionada ao seu lugar de fala, de que, como homem,
branco e heterossexual, o senhor não estaria autorizado ou qualificado para
falar sobre direitos das minorias?
Uma
argumentação é uma argumentação, não importa quem faça essa argumentação. Quem
diz isso está tentando evitar uma discussão.
• O
senhor critica o movimento Black Lives Matter, dizendo que é o principal
exemplo de como não lidar com a solidariedade, por causa das táticas agressivas
de ativismo. Em que sentido o movimento é um desserviço à causa?
A rede
Fox News é a única maneira de se comunicar com o eleitor republicano, e ela
funciona como um filtro reverso: só deixa passar as coisas negativas sobre os
democratas e deixa todo o resto de fora.
Então,
se você faz maluquices como os ativistas do Black Lives Matter, que
interromperam e acabaram com comícios de Hillary e Bernie Sanders, eles adoram.
Aquilo
foi uma insanidade. E ficou passando sem parar na Fox News. Não à toa, Steve
Bannon [ex-estrategista-chefe de Trump] disse torcer para que a esquerda
continuasse falando em políticas identitárias, porque isso significa que os
conservadores vão ganhar, e ele vai poder implementar sua agenda de
nacionalismo econômico.
Todas as
vezes que ativistas fazem algo desse tipo, eles estão servindo café da manhã na
cama para Bannon.
• Os
liberais continuam surdos às suas críticas ou há alguns que entendem o que o
senhor quer dizer?
Alguns
entendem, outros não. Um senador me pediu que conversasse com ele sobre o tema,
e alguns arrecadadores de campanha democratas me disseram que estão cansados de
perder e querem conversar. Eu tenho várias ideias para a próxima eleição, não
sei se serão artigos acadêmicos ou algum outro tipo de contribuição. Mas quero
fazer alguma coisa.
• O
senhor acredita que, então, houve algum tipo de eco em relação a sua mensagem?
Ela não foi em vão?
Com
certeza. O argumento agora está presente, a questão é discutida com frequência.
Eu também vejo pessoas que se denominam liberais ou de esquerda fazendo o mesmo
tipo de argumentação que eu fiz, mas sem mencionar meu nome, claro, porque isso
seria tóxico. Mas por mim tudo bem, o importante é a argumentação vencer.
• O
senhor se tornou tóxico na esquerda?
Ah,
certamente. Ainda bem que tenho "tenure" [estabilidade na carreira
acadêmica; é um professor que não pode ser demitido].
• O que
o senhor acha do movimento em que estudantes proíbem certas pessoas de fazer
palestras nas universidades por questões ideológicas? Trata-se de uma forma
válida de combater o chamado discurso de ódio, ou é simplesmente censura
prévia?
Nós
poderíamos falar sobre combater discurso de ódio, se as pessoas realmente se
concentrassem no que é genuinamente discurso de ódio. Mas a definição foi
ampliada e hoje inclui qualquer coisa com a qual eu não concorde e que eu não
queira ouvir.
• O
senhor diz que não precisamos de mais manifestantes, precisamos de mais
prefeitos. Não dá para ter os dois?
Eu quis
dizer que já temos manifestantes suficientes, e precisamos de mais prefeitos. A
única maneira de você subir na hierarquia e virar governador é começar como
prefeito ou legislador. É preciso começar a fazer a longa marcha pelas
instituições.
Folha de São Paulo