CLAUDI PÉREZ
Diante de tendências nacionalistas,
como o Brexit, bloco quer "colocar rédeas" no livre comércio
A nova
cara do capitalismo tem três traços fundamentais: globalização,
hiperfinanceirzação e desigualdade. A Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, publica
nesta quarta-feira um documento em que defende os benefícios da globalização
diante das tendências nacional-populistas, do Brexit e
das tentações protecionistas de Trump. A novidade é que Bruxelas tem
consciência de que os excessos dos últimos anos devem ser corrigidos: defende
“dar forma” à globalização,
colocar-lhe rédeas, fixando “um conjunto de regras globais, que atualmente
estão incompletas”. Reverter esse processo seria um desastre, aponta a
Comissão, mas não fazer nada tampouco é a solução: em 10 anos, a globalização
(combinada com a mudança tecnológica) “deixará tantos ganhadores quanto
perdedores”.
A
Comissão Europeia há semanas lança sinais políticos de primeira grandeza depois
de uma década em crise, coroada pela primeira
deserção em seis décadas, a do Reino Unido. Na comemoração de seu 60º
aniversário, publicou um suculento dossiê que servirá de base para que os 27
Estados membros restantes decidam que UE desejam. Há 15 dias, lançou um relatório
sobre a Europa social, diante da constatação de que a UE está perdendo o
apoio da opinião pública por causa da deterioração do Estado do bem-estar.
Nesta quarta, foi a vez da globalização entrar na berlinda. Diante de
tendências nacionalistas, como o Brexite as tentações protecionistas de Donald Trump nos EUA, a
Europa confirma um "segredo de polichinelo": é um continente
favorável ao livre comércio e à globalização, ainda mais depois de ter barrado
a xenofobia de Wilders, Le Pen e companhia. Mas o documento propõe uma mudança
de ritmo interessante: frente às críticas cada vez mais duras contra o viés
neoliberal da UE, Bruxelas pretende “dar forma” à globalização, com “regras
multilaterais” que permitam conter os excessos dos últimos anos.
O
relatório não contém medidas concretas de grande calado; a novidade é o seu
enfoque. Bruxelas admite, talvez pela primeira vez, que a globalização alcançou
e ultrapassou suas últimas fronteiras. E que a partir daí há duas opções: estender
ordenadamente o domínio sobre ela, com um conjunto de regras fixadas nos
organismos internacionais para suavizar seus aspectos mais temerários e
nocivos, ou deixar aberta a possibilidade de que a reação chegue de forma
descontrolada. A Comissão é partidária da primeira opção, na esteira do triunfo de Emmanuel Macron na
França, fazendo frente à ascensão de figuras políticas controvertidas, de
Donald Trump – que deixou claras as suas preferências protecionistas, com
uma retórica de confrontação contra o México, a China e a Alemanha – atéMarine Le Pen, que
conseguiu mais de 11 milhões de votos com sua proposta de fechar fronteiras.
“Os fatos
demonstram que a economia, as empresas e os cidadãos europeus continuam se
beneficiando enormemente da globalização”, resume o documento ao qual o EL PAÍS
teve acesso. “Mas esses benefícios não são automáticos nem se distribuem
equitativamente entre nossos cidadãos”, admite o relatório, de 21 páginas.
O item benefícios é
vastíssimo, com 1,75 trilhão de euros (seis trilhões de reais) em exportações
europeias – sendo 80% procedentes de pequenas e médias empresas – e a geração
de 14.000 empregos a cada bilhão de euros adicional em vendas ao exterior. As
importações contribuem para reduzir os preços aos consumidores, e a
globalização, enfim, “permitiu tirar milhões de pessoas da pobreza”. Mas o mais
suculento é o capítulo de desafios, que explica em parte fenômenos como o Brexit e
a ascensão dos radicais dentro e fora da Europa. “Muitos europeus estão
inquietos: veem a globalização como sinônimo de perda de empregos, injustiças
sociais ou baixos padrões ambientais, sanitários ou de privacidade. Consideram
que esse processo erodiu tradições e identidades” e “beneficia mais as multinacionais
que repatriam lucros a países onde não pagam impostos” ou “países que abraçam
práticas comerciais injustas”. Por isso se impõe, segundo o documento, “a
percepção de que os Governos já não têm a globalização sob controle, ou não são
capazes de controlar o impacto da globalização; esse é um desafio político que
a Europa deve enfrentar”.
A
receita de Bruxelas é clara: rejeitar
“as tentações isolacionistas”. Resistir “à volta ao protecionismo”,
embora a Organização Mundial do Comércio tenha identificado 1.500 novas
barreiras comerciais desde que começou a Grande Recessão, em 2008. “Se
fecharmos fronteiras, outros fecharão também: todos sairemos perdendo”, diz a
Comissão, valendo-se do habitual credo liberaloide. Entretanto, as receitas de
Bruxelas são claras: “Para evitar essa espiral, são imprescindíveis as
instituições multilaterais e regras em assuntos como a mudança climática e a
evasão tributária. “Estamos longe de ter completado as regras globais
necessárias”, afirma a Comissão, que ainda deixa uma frase de efeito final. “A
Europa não será ingênua. Quando as regras não forem respeitadas, necessitaremos
de instrumentos de defesa comercial”, como os que foram aplicados contra o aço
da China. “A UE é a maior potência comercial e investidora do mundo, mas, longe
de ficarmos sentados e deixarmos que a globalização dê forma ao nosso destino,
temos a oportunidade de modelar a globalização de acordo com nossos valores e
interesses”, conclui o documento.
EL PAÍS
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