sábado, 27 de maio de 2017

No Brasil, só o crime é organizado

Flávio Saliba

Estranho país este onde só o crime é organizado. O resto que se dane. Há quem diga que já perdemos todas as oportunidades de superar a mediocridade econômica e conquistar avanços sociais significativos. Estamos perdendo o bonde da história com uma crise econômica que nos remete a 2010 e a uma crise política, marcada pela combinação explosiva de antigas práticas patrimonialistas com a expansão das ações criminosas no setor público, que nos leva ao final do século XX e início do XXI. As duas crises apontam, até o momento, para o mesmo rumo: atraso, estagnação, retrocesso.

Explico-me. Diz a teoria que a nova ordem econômica mundial promoveu a reestruturação da divisão internacional do trabalho, na qual economias altamente dependentes da exportação de uma ou duas matérias-primas estarão definitivamente subordinadas às economias baseadas no pleno domínio das novas tecnologias e na inovação. Apesar de haver interconectado as economias nacionais e promovido o crescimento de muitas delas, a globalização aprofundou a concentração da renda e as desigualdades entre nações e entre segmentos sociais de um mesmo país.

M. Castells argumenta que aquelas nações que não conseguiram articular-se vantajosamente com a nova economia global procurariam fazê-lo por meio de uma multiplicidade de atividades criminosas, como o tráfico de armas, drogas, jovens para a prostituição, órgãos para transplante, entre outras. Este seria o pano de fundo da rápida expansão do crime organizado, cujas atividades não dispensam conexões políticas, suborno de agentes públicos e mesmo conquista de altos postos na administração pública.

O resultado disso seria a proliferação da violência individual e coletiva, com a intensificação de atos terroristas, não raro associados ao tráfico e a lutas de caráter semirreligioso. Com raras exceções, as nações latino-americanas apresentam, em maior ou menor grau, tais predisposições, que, na visão de Castells, nos remetem ao “quarto mundo”.

Como diria Nelson Rodrigues, “o subdesenvolvimento é obra de séculos”. Isso equivale a dizer que o subdesenvolvimento resulta da persistência de práticas políticas e econômicas pouco favoráveis ao crescimento econômico, ao avanço dos direitos civis, em outras palavras, à democracia política e social substantiva. É no bojo de tais circunstâncias históricas que se forma uma cultura, uma mentalidade coletiva que, no Brasil, manifesta-se na não diferenciação entre o público e o privado, na percepção do Estado como provedor, na prática generalizada de pequenos delitos como estratégia de sobrevivência e na tolerância com a corrupção.

Recentemente, foi parar no STF um processo em que um cidadão é acusado de furtar uma barra de chocolate. Esse episódio revela tanto a insanidade da burocracia brasileira quanto a generosidade da Justiça, que, ao inocentá-lo, admite que pequenos furtos não merecem punição. Não estou dizendo que aquele senhor merecia punição severa, e sim que a certeza da impunidade nos pequenos delitos é um claro estímulo para que o sujeito se lance a vôos mais altos.

Jornal O Tempo

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