Daniel Verdú
Atentado contra o juiz Giovanni
Falcone completa 25 anos
Algumas
experiências coletivas ativam recordações muito pessoais. Na Itália ninguém
esquecerá o que fazia depois das cinco da tarde de 23 de maio de 1992. Marco
hoje dirige um táxi e dá golpes em turistas incautos, mas à época tinha 16 anos
e jogava pingue pongue com seus amigos em Capaci, a cidade ao lado de Palermo
onde passava as férias. Ouviram a explosão, subiram nas motos e aceleraram pela
estrada de terra perseguindo a cortina de fumaça. Ao chegar ao entroncamento da
rodovia, encontraram três carros destroçados. Centenas de metros de asfalto
arrancado, a terra do campo parecia lavrada com sangue. A polícia ainda não
havia chegado. Aconteceu às 17 horas, 56 minutos e 48 segundos (horário local).
Ele e seus amigos souberam depois porque o tremor foi registrado pelo Instituto
de Geofísica e Vulcanologia do monte Erice. Um minúsculo movimento para as
agulhas do sismógrafo. Um abalo histórico para a Itália, que já via a
fragmentação do Estado.
Naquele
dia o juiz Giovanni Falcone quis dirigir ao chegar ao
aeroporto de Palermo. Sua esposa, a também magistrada Francesca Morvillo, ia ao
seu lado. Nenhum usava o cinto de segurança e com a explosão foram arremessados
para fora do carro. Três escoltas também morreram. Do lugar onde o Fiat Croma
branco saltou pelos ares, a poucos metros do desvio em direção a Capaci,
pode-se ver a pequena colina de onde Giovanni Brusca, por ordem de Salvatore
Totò Riína, ativou o detonador dos mais de 400 quilos de trinitrotolueno (TNT)
escondidos sob a estrada de Trapani a Palermo. Na torre branca, onde se
escondeu para ver quando os carros passavam, alguém escreveu em letras negras
bem grandes: Não à máfia.
Na
segunda-feira completam-se 25 anos do assassinato de Falcone, a inspiração do juiz brasileiro Sergio Moro, que comanda a
força tarefa da Operação Lava Jato. Somente 57 dias depois, foi a vez do
assassinato do adjunto de Falcone, Paolo Borsellino. E sua cidade se prepara
para homenageá-los. Mas Palermo já não é como era, e a Itália não se parece em
nada com o que foi. Aquelas bombas dinamitaram também os equilíbrios de poder
entre a máfia e um Estado que afundava com o enorme caso de corrupção Mani
Pulite. A guerra desatada devastou o país, mas também a Cosa
Nostra, cuja repressão permitiu a organizações como a 'Ndrangheta
aumentarem sua influência e tecerem uma extensa rede internacional.
Além de
descobrir a Pedra Rosetta da máfia, a legendária confissão de 329 páginas que
Falcone obteve de Tommaso Buscetta, o primeiro arrependido – na realidade
Leonardo Vitale veio antes, mas ao escutá-lo pensaram que estava louco e o
internaram em um hospital psiquiátrico –, o magistrado revolucionou o sistema
de investigação de dentro de seu famoso bunker. O segredo era o dinheiro,
lembra Luca Rossi, escritor e excelente cronista daquele período, autor de
obras como I Disarmatti (Os desarmados, em tradução livre), amigo do
juiz e de seu adjunto. “Desse modo era possível chegar à organização. Ele fazia
muito trabalho de escritório com as contas bancárias. Mas, além disso, tomou a
decisão de criar uma equipe de magistrados em que cada um sabia tudo sobre o
processo. Se um morresse, os outros seguiam adiante”.
A macabra filosofia do pool antimáfia adquiriu caráter
de profecia autocumprida. Falcone era o escudo e, uma vez eliminado, o resto
soube que cedo ou tarde se reuniriam com ele, lembra o prefeito de Palermo,
Leoluca Orlando. Ele tinha tanta certeza disso que escreveu um livro chamado Eu
Deveria Ser o Próximo. O político, figura fundamental da luta antimáfia da
sociedade, está em plena campanha para ser eleito pela terceira vez. E como nos
anos de chumbo, acusa novamente um de seus rivais de ser apoiado pelos capos da
Cosa Nostra. Sentado na mesma cadeira onde se acomodaram políticos da Cosa
Nostra como Vito Ciancimino, fala de como seu mentor, o democrata cristão
Piersanti Mattarella – irmão do atual presidente da República – foi traído de
dentro de seu próprio partido e assassinado em 1980. Sua lápide está na estrada
no gabinete. Não tem dúvidas da conivência da máfia e o Estado. Da sacada,
pendura um cartaz em apoio ao juiz Nino Di Matteo, que investiga a obscura
contemporização da trattativa (negociação). A morte de Falcone trouxe
o 41 BIS – o regime prisional que deixa os presos incomunicáveis para acabar
com sua capacidade de comando e sob o qual ainda permanecem 728 detidos – e
reduziu a Cosa Nostra (4.000 mortos desde sua origem) à mínima expressão de uma
organização mais antiga que a própria Itália.
Um
espaço de poder que, de acordo com todos os relatórios da Promotoria Nacional
Antimáfia, foi ocupado pela 'Ndrangheta, a organização criminosa mais poderosa
da Europa. Mas ninguém na Sicília acredita nisso. Ainda que, além do foragido
Matteo Denaro, já não restem grandes capos. Um dos policiais que participou da
captura daqueles homens, lembra assim sua austeridade. “Prendíamos pessoas que
viviam como pastores, sem luz e água. Só se interessavam pelo controle do
território, o poder os cegava. A prisão? Para eles era um luxo tomar banho
todos os dias”. Dessa forma em 2006 caiu Bernardo Provenzano, que estava
foragido há 43 anos e dirigia a organização de seu refúgio em Corleone, através
de notinhas escritas à máquina que mandava ao exterior. Foi caçado por Renato
Cortese, à época chefe da legendária esquadra móvel e hoje superintendente da
polícia em Palermo. São oito da noite (15h de Brasília) e chega com a escolta,
atravessa a porta do gabinete, acende uma ponta de charuto e tira o paletó.
Aqui é um herói. Trabalha dia e noite. “Aquela captura teve um duplo
significado. Militarmente, prender ocapo dei capi significava
desestruturar a organização. Mas o mais importante foi o impacto que teve sobre
as pessoas da Sicília. Ele era o que não podia ser preso, o invisível, estava
há 43 anos foragido. Para as pessoas era o mito da invencibilidade. Quando o
prendemos, foi uma libertação coletiva”.
O
assassinato de Falcone e os anos posteriores proporcionaram várias lições aos
investigadores. A primeira: quando a máfia não mata, faz negócios. A segunda: o
ruído e as bombas assustam o dinheiro. Provenzano colocou isso em prática com a
tática da imersão. Era preciso esconder-se e infiltrar-se nas instituições. E a
'Ndrangheta, uma organização ainda baseada em laços de sangue e muito mais
implantada internacionalmente, aprendeu. “Hoje é potencialmente mais perigosa.
Está mais espalhada pela Itália e pelo mundo. Mas a questão é: a Cosa Nostra
está silenciosa porque está debilitada, ou por que, analisando sua história, se
vê que alternou fases silentes para fazer negócios? Há que estar atentos,
porque é uma organização à qual só falta encontrar um cérebro para voltar a se
colocar de pé. Não se pode baixar a guarda”.O risco agora na Sicília, afirma um
alto comandante da polícia em Palermo, tomando um café na avenida Maqueda, vem
das libertações ocorridas nos últimos meses. Passaram-se 25 anos, para o bem e
para o mal. E muitos cumpriram suas penas. Outros estão quase. “Estamos em uma
situação de transição. Sairão da prisão mais capos que acabam de cumprir sua
condenação nos próximos meses e é preciso monitorar a situação. Isso é como um
câncer, se perder um exame pode voltar a brotar”, afirma. Refere-se a homens
como Tommaso Di Giovanni, Giulio Caporrimo e Giuseppe Scaduto e a incógnita
sobre o poder que conservam. A parte boa, no entanto, é que na Itália ainda
ninguém esqueceu o que faziam naquele 23 de maio.
O AVANÇO DA 'NDRANGHETA E DA MÁFIA
CAPITALE
Em
escutas recentes aos dois capos da ‘Ndrangheta, um dizia ao outro: “Lembre que
o mundo se divide em duas partes: a que já é Calábria e a que será Calábria”.
Na
Promotoria Nacional Antimáfia, dirigida por Franco Roberti em Roma, a
‘Ndrangheta preocupa. Em seu relatório anual a descreve como uma organização
que administra “centenas de milhares de milhões de euros, que governa todo tipo
de dinâmicas econômicas, lícitas e ilícitas na Itália, mas também em lugares
como Austrália, América do Sul, Europa e América do Norte, passando por todos
os paraísos fiscais possíveis”. Uma estrutura com uma espécie de conselho de
administração de uma holding que “escolhe seu presidente” e que organiza de
forma ordenada e obediente suas sucursais internacionais.
Enquanto
isso, nos últimos anos a Itália descobriu outro fenômeno criminoso conhecido
como Mafia Capitale. Uma organização nascida do rescaldo de várias organizações
criminosas que confluíram a Roma (Camorra, ‘Ndrangheta, ultradireita) e
comandada por vários expoentes. Especialmente por Massimo Carminati, que foi
membro do lendário bando da Magliana nos anos oitenta, fascista e militante de
um grupo terrorista de extrema-direita. Um dos primeiros a alertar sobre o
assunto foi o jornalista do L’Espresso especialista em máfia, Lirio Abbate.
Quando ainda estavam em liberdade, publicou uma capa com 4 de seus expoentes
máximos intitulada: ‘Os quatro reis de Roma’.
Abbate
já andava com escolta por suas investigações na Sicília, mas aquela capa
complicou tudo. “Me seguiram, me procuraram embaixo de casa. Tentaram me
empurrar com outro carro... Tinha reduzido minha escolta porque pensei que aqui
seria mais leve, mas ficou muito mais perigoso. Carminati queria me eliminar,
nunca pensou que chegaríamos àquilo. Dediquei nove meses àquela capa. Em
dezembro de 2014 foi preso, dois anos depois de publicarmos a página”, afirma
de seu escritório no semanário.
A Mafia
Capitale se fez com um grande número de contratos da Prefeitura de Roma. E,
para isso, afirma Abbate, recorreu ao método mafioso. Já é famosa a frase de
Carminati explicando seu modus operandi: “É a teoria da Terra Média, os vivos
por cima, os mortos por baixo, e nós no meio. Há um mundo intermediário no qual
todos se encontram e você diz: ‘Caraca, como é possível que eu um dia possa
estar jantando com Berlusconi?’. A pessoa que está no mundo superior tem
interesse que alguém do submundo lhe faça coisas que ninguém pode fazer, e tudo
se mistura”.
EL PAÍS
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