Max Fisher e Amanda
Taub
Pelos números, a Venezuela parece um país atingido
por uma guerra civil. Sua economia, que já foi a mais rica da América Latina,
teria encolhido 10% em 2016, mais que a da Síria, segundo estimativas. Sua
inflação nesse ano chegaria a 720%, quase o dobro do segundo pior lugar no
mundo, o Sudão do Sul, o que torna sua moeda quase sem valor.
Em um país com as maiores reservas mundiais
comprovadas de petróleo, o alimento tornou-se tão raro que três em cada quatro
cidadãos relataram perda de peso involuntária, chegando a 9,5 kg por ano em
média.
As ruas das cidades estão marcadas por mercados
paralelos e pela violência. O último índice de assassinatos registrado, em
2014, foi equivalente, em 2014, foi equivalente ao número de baixas na guerra
civil no Iraque em 2004.
Sua democracia, que há muito tempo era motivo de
orgulho, tornou-se a mais antiga a despencar no autoritarismo desde a Segunda
Guerra Mundial. Disputas por poder, mais recentemente para substituir a
Constituição, levaram a protestos e repressão que mataram dezenas de pessoas só
neste mês.
As democracias estabelecidas não deveriam implodir
dessa maneira. Steven Levitsky, um cientista político da Universidade Harvard,
disse que a Venezuela foi uma de "quatro ou cinco, em todos os
tempos". Entre estas, nenhuma era tão rica ou caiu tanto. "Na maioria
dos casos, o regime sai antes que a coisa piore de ta antes que a coisa piore
de tal forma", disse ele.
A crise da Venezuela passou por uma série de etapas
cujo progresso é claro em retrospectiva, e algumas das quais inicialmente se
mostraram populares.
Um
establishment bipartidário pronto para quebrar
Na fundação da democracia, em 1958, os três
principais partidos do país, mais tarde reduzidos a dois, concordaram em
compartilhar o poder entre si e a receita do petróleo entre seus eleitores.
Seu pacto, destinado a preservar a democracia,
passou a dominá-la. As elites partidárias escolhiam os candidatos e bloqueavam
os de fora, tornando a política menos administrável. O acordo para dividir a
riqueza promoveu a corrupção.
Choques econômicos nos anos 1980 levaram muitos
venezuelanos a concluir que o sistema estava preparado contra eles. Em 1992,
militares de esquerda liderados pelo tenente-coronel Hugo Chávez tentaram um
golpe de Estado. Fracassaram e foram presos, mas sua mensagem
anti-establishment teve reflexos e projetou Chávez ao estrelato.
O governo instituiu uma série de reformas que se
destinavam a salvar o sistema bipartidário, mas que pode tê-lo condenado. Um afrouxamento das regras eleitorais permitiu
a entrada de partidos de fora. O presidente libertou Chávez, esperando
demonstrar tolerância.
Mas a economia piorou. Chávez
disputou a Presidência em 1998. Sua mensagem populista de devolver o poder ao
povo lhe deu a vitória. Apesar disso, os dois partidos ainda dominavam as
instituições do governo, que Chávez considerava antagonistas ou potenciais
ameaças.
Chávez aprovou uma nova Constituição
e expurgou o funcionalismo público. Algumas medidas foram muito populares, como
a reforma judicial que reduziu a corrupção. Outras, como abolir o Senado,
pareciam ter um objetivo mais amplo.
"Ele estava reduzindo os
potenciais obstáculos à sua autoridade", disse John Carey, um cientista
político do Dartmouth College. Por baixo da linguagem revolucionária, disse
Carey, havia "uma engenharia institucional muito perspicaz”.
A desconfiança das instituições
muitas vezes leva os populistas, que se consideram os verdadeiros defensores do
povo, a se consolidar no poder. Mas as instituições às vezes resistem, levando
a conflitos pequenos que podem enfraquecer os dois lados.
"Mesmo antes da crise econômica,
você tem duas coisas que os cientistas políticos concordam que são as bases
menos sustentáveis de poder, o personalismo e o petróleo", disse Levitsky,
referindo-se ao estilo de governo que consolida o poder sob um único líder.
Quando membros do establishment
empresarial e político objetaram a uma série de decretos executivos de Chávez
em 2001, o presidente os declarou inimigos da revolução popular.
Como o populismo descreve um mundo
dividido entre a população honesta e a elite corrupta, cada rodada de
confronto, ao traçar linhas rígidas entre pontos de vista legítimos e
ilegítimos, pode polarizar a sociedade. Os defensores e adversários de um líder
como Chávez passam a ver uns aos outros como presos em uma luta de apostas
elevadas, que justificam atos extremos.
Golpe agrava conflito além da ideologia
Em 2002, em meio à recessão econômica, a indignação contra as políticas de Chávez cresceu, levando a protestos que ameaçaram tomar o palácio presidencial.
Em 2002, em meio à recessão econômica, a indignação contra as políticas de Chávez cresceu, levando a protestos que ameaçaram tomar o palácio presidencial.
Quando ele ordenou que os militares
restaurassem a ordem, estes o prenderam e instalaram um líder provisório.
As mudanças de política externa de
Chávez, aliando-se com Cuba e armando os insurgentes colombianos, tinham
irritado alguns líderes militares. Sua guerra às elites passou a acarretar
riscos.
Os líderes do golpe exageraram,
dissolvendo a Constituição e o Legislativo, o que provocou protestos que
rapidamente devolveram Chávez ao poder.
Mas sua mensagem de uma luta
revolucionária contra inimigos internos não parecia mais uma metáfora sobre a
redução da pobreza.
Carey chamou de "um momento
muito polarizador" quando Chávez retratou a oposição como "tentando
vender barato os interesses venezuelanos".
Ele e seus seguidores viam a política
como uma batalha sem vencedor pela sobrevivência. As instituições independentes
passaram a ser vistas como fonte de perigo intolerável. As licenças dos canais
de mídia críticos foram suspensas. Quando os sindicatos protestaram, foram
enfraquecidos por boicotes ou simplesmente substituídos. Quando os tribunais
contestaram Chávez, ele os expurgou, suspendendo juízes inamistosos e enchendo
a Suprema Corte com seus seguidores.
O resultado foi uma intensa
polarização entre dois segmentos da sociedade, que agora se viam como ameaças
existenciais, destruindo qualquer possibilidade de compromisso.
Transformando petróleo em lealdade
Pouco depois do golpe, Chávez
enfrentou outra batalha que se mostraria igualmente crítica. Trabalhadores
entraram em greve na empresa de petróleo estatal, Petróleos de Venezuela S.A.,
ou PDVSA, que há muito tempo ele denunciava por sua associação com as elites
empresariais e os EUA. A greve ameaçou destruir a economia e a Presidência de
Chávez. Mas também apresentou uma oportunidade de evitar mais uma rebelião.
Após a dissolução da greve, Chávez
demitiu 18 mil funcionários da PDVSA, muitos deles técnicos capacitados e
diretores, e os substituiu por cerca de 100 mil de seus seguidores. Grande
parte do orçamento da companhia foi desviada para programas para a base
política de Chávez, pagamentos a amigos do governo e subsídios para cumprir sua
promessa de alimentos acessíveis.
Em 2011, US$ 500 milhões de um fundo
de pensão da PDVSA acabaram em um esquema de pirâmide dirigido por financistas
ligados ao governo, nenhum dos quais foi processado. Depois de se eleger com a
promessa de esmagar a elite corrupta, Chávez acabara criando a sua própria
elite.
Como companhia de petróleo, a PDVSA
estava arruinada. A produção caiu apesar da alta global dos preços do petróleo.
A taxa de gravidade, medida em horas-homens perdidas, mais que triplicou.
Em 2012 uma refinaria explodiu,
matando pelo menos 40 pessoas e causando prejuízos de US$ 1,7 bilhão, sugerindo
que até os orçamentos de manutenção tinham sido sifonados. Com suas reservas de
dinheiro esgotadas e os projetos de desenvolvimento estagnados, a PDVSA, e por
extensão a economia da Venezuela, ficou sem proteção quando os preços do
petróleo caíram, em 2014.
Chávez tinha levado a Venezuela não
apenas ao colapso econômico, mas também a uma crise política. Se seu apoio
dependia dos subsídios ao petróleo, o que aconteceria quando o dinheiro
acabasse?
Substituindo a inquietação urbana pelo caos urbano
O golpe de 2002 ensinou a Chávez que
uma aliança de conveniência com grupos armados conhecidos como colectivos o
ajudaria a controlar as ruas, onde os manifestantes quase o haviam derrubado.
Esses coletivos, com dinheiro e armas
canalizados do Estado, tornaram-se policiais políticos. Os manifestantes
aprenderam a temer esses homens que chegavam em motocicletas chinesas para
dispersá-los, muitas vezes de forma letal.
Os coletivos cresceram em poder,
desafiando a polícia pelo controle. Em 2005, expulsaram a polícia de uma região
de Caracas, a capital, que tinha dezenas de milhares de moradores.
Embora o governo nunca tenha aprovado
oficialmente essa violência, elogiava em público os coletivos, garantindo-lhes
uma impunidade tácita. Muitos exploraram essa liberdade para participar do
crime organizado.
Alejandro Velasco, um professor da
Universidade de Nova York que estuda os coletivos da Venezuela, disse que mais
tarde os grupos foram ampliados com criminosos "oportunistas" que
souberam que "adicionar um pouco de ideologia a suas operações"
poderia lhes garantir a impunidade.
A criminalidade e a ilegalidade
floresceram, inchando os índices de assassinatos.
Liquidando a economia
O presidente Nicolás Maduro, que
assumiu o poder quando Chávez morreu, em 2013, herdou uma economia em
frangalhos e um apoio frágil entre as elites e o público. Em desespero, Maduro
distribuiu os patrocínios. Os militares, com os quais ele tinha menos
influência que seu antecessor, ficaram com o controle dos lucrativos comércios
de drogas e alimentos, assim como a mineração de ouro.
Incapaz de pagar os subsídios e
programas assistenciais, ele imprimiu mais dinheiro. Quando isso estimulou a
inflação, tornando os produtos básicos inacessíveis, ele instituiu controles de
preços e congelou a taxa de câmbio.
Isso tornou as importações
proibitivamente caras. Empresas fecharam. Maduro imprimiu mais dinheiro e a
inflação cresceu novamente. Os alimentos escassearam. A inquietação se
aprofundou, e a sobrevivência de Maduro se tornou mais de a sobrevivência de
Maduro se tornou mais dependente de benesses que ele não podia pagar. Esse
ciclo destruiu a economia venezuelana.
Também agravou a violência na rua.
Com as lojas do governo vazias, os mercados paralelos brotaram. Os coletivos,
menos dependentes do apoio do governo, assumiram o comando da economia informal
em certas áreas e ficaram mais violentos e difíceis de conter.
Maduro tentou restabelecer a ordem em
2015, empregando unidades de polícia e militares fortemente armadas. Mas as
operações se tornaram "banhos de sangue", segundo Velasco. Muitos
oficiais se transformaram em criminosos.
Nem democracia nem ditadura
O sistema político, após anos de
erosão, tornou-se um híbrido de características democráticas e autoritárias
--uma mistura altamente instável, segundo estudiosos. Suas regras internas
podem mudar diariamente. Centros de poder rivais competem ferozmente pelo
controle. Tais sistemas se mostraram com muito maior probabilidade de
experimentar um golpe ou um colapso.
Maduro lutou para impor o controle,
como muitas vezes fazem os líderes desses sistemas híbridos.
Sem as conexões pessoais de Chávez,
ou seus bolsos fundos, Maduro tem pouca influência entre elementos autoritários
dominados pelas elites militares e políticas. Como ele é altamente impopular,
seu poder sobre as instituições democráticas pode ser ainda mais fraco. Depois
que grupos de oposição conquistaram o controle do Legislativo, em 2015, a
tensão entre os dois sistemas explodiu em um conflito total. A Suprema Corte,
cheia de legalistas, brevemente te tentou dissolver os poderes do Legislativo.
Neste mês, Maduro disse que poderá criar uma nova Constituição. O paradoxo da
Venezuela, segundo Levitsky, é que o governo é autoritário demais para
coexistir com instituições democráticas, mas fraco demais para aboli-las sem
correr o risco do colapso.
Os manifestantes desceram às ruas,
mas parecem num impasse com as forças de segurança e os coletivos. Francisco
Toro, um cientista político venezuelano, disse que não está claro que lado os
militares assumiriam se fossem chamados a intervir.
Com nenhum lado capaz de exercer o
controle, pouco no sentido de uma economia ou ordem pública para controlar e um
sistema político aparentemente incapaz de se romper ou dobrar, a Venezuela
levou a si própria da riqueza e democracia à beira do colapso.
The New York Times
UOL Notícias
Tradutor: Luiz Roberto Mendes
Gonçalves.
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