Rosiska Darcy de
Oliveira
Não são as Forças Armadas que podem
devolver a paz ao Rio. Nem se deve esperar delas o que não é sua função
Achegada
das Forças Armadas ao Rio de Janeiro fez desfilarem na minha memória três
décadas de tentativas de conter a violência que assombra o estado. Como um
choro cada vez com menos força, como uma faca que perde seu fio, a indignação e
a angústia dos cariocas parecem deslizar perigosamente para o desalento.
É bom
que as ruas estejam patrulhadas, que uma operação militar planejada se decida a
enfrentar o crime organizado, um monstro que cresceu em todo o país e se
estende aos países vizinhos, que domina e mantém sob o seu “governo” despótico
a população mais pobre das grandes cidades confinada em territórios ocupados. E
que lhe cobra “impostos” de todo tipo, dinheiro, fidelidade e submissão às suas
leis e tribunais. Em troca, ganha balas perdidas que acham crianças e
adolescentes. Esse monstro tem um comando, um projeto de poder político, as
armas que o Exército tem, soldados treinados nos becos e muito dinheiro. É um
inimigo de porte e nada garante o desfecho desse confronto.
Para a
população do asfalto, o inimigo é o crime desorganizado, a violência que vem de
qualquer lugar, que não se serve de fuzis de alta potencia — basta uma faca de
cozinha bem afiada — e que vai matar quem passeie montado em uma bicicleta,
falando no celular ou usando um cordão com santinhos no pescoço. Sabemos de
onde vêm esses free-lancers do crime desorganizado que, há décadas, assaltam
casas e apartamentos em quadrilhas improvisadas. A guerra contra eles é
trabalho de Sísifo porque uma fábrica silenciosa produz em permanência a
matéria-prima de que são feitos, em que se misturam ignorância, ódio,
frustração e não pertencimento.
Uma
sociedade sem espessura, sem promessa, sem projeto gera um imenso vácuo
psicológico em que boiam fantasmas agressivos, o ódio do outro transformado em
uma não pessoa, passível de ser assassinada pelo simples gosto de uma desforra
contra um inimigo sem rosto que, por não ter rosto, está em toda parte e pode
ser qualquer um.
Ambos, o
crime organizado e o desorganizado, são o avesso do Estado ausente, de governos
eficientes apenas na organização de seus próprios crimes. Suas quadrilhas
assaltaram o Estado com uma ousadia maior do que a dos assaltantes de rua. Se o
abandono e o desprezo que esses governos votaram sempre aos mais pobres, negando-lhes
as mínimas oportunidades, é o chão de onde brota a violência, o exemplo da
criminalidade dos próprios governantes é o que a faz crescer. Não é um acaso se
a violência explode, demencial, quando se revelam criminosos o ex-governador,
vários secretários e juízes do Tribunal de Contas, deixando atrás de si terra
arrasada e uma polícia mal paga, sem formação, sequer gasolina nos carros.
Quem
consegue medir o efeito psicossocial de descobrir um estado de cima a baixo
minado pela corrupção, governantes bilionários e funcionários sem salários? Eis
porque a corrupção é, sim, um gravíssimo problema de segurança.
Não são
as Forças Armadas que podem devolver a paz ao Rio. Nem se deve esperar delas o
que não é sua função. Podem dar maior segurança às ruas e, com serviços de
inteligência, destruir arsenais e enfraquecer o tráfico de drogas, o que não é
pouco. Mas não estarão aqui para sempre. Nós, sim, continuaremos a conviver com
uma crescente população jovem que nem estuda nem trabalha, escolhendo entre políticos
cínicos que vão passando de pai para filho as tetas do Estado.
A menos
que, acordando para a nossa trágica realidade onde nem os que ainda vão nascer
são poupados, encaremos a verdade: tudo depende de nós. Temos a
responsabilidade de eleger um governante decente e competente que reconstrua a
confiança no Estado, condição sine qua non para restabelecer a segurança no Rio
de Janeiro. Não existe um candidato feito sob medida, esperando por nós. Há um
perfil necessário, e há o processo, que exige energia, pelo qual iremos ao
encontro de quem mais se aproximar dele.
Até
agora, os mesmos de sempre se apresentam para encenar um baile de fantasmas.
Que venham a se eleger com votações pífias sob o olhar indiferente de quem se
recusa a votar em candidatos desprezíveis escolhidos por partidos desprezados,
esse desastre não pode se repetir.
Só um
fato novo, gestado na sociedade, pode refundar a cidadania: uma candidatura que
mobilize as pessoas e quebre esse silêncio ensurdecedor que grita a intensidade
da nossa decepção com a política. Que impeça que na eleição tenhamos que
escolher entre as palavras de ordem de uma velha esquerda ou as ordens sem
palavras de uma nova direita.
Rosiska
Darcy de Oliveira
Escritora
O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário