SANDRO POZZI
Dia 8 de
agosto marca o início do colapso dos mercados financeiros devido às hipotecas
podres que levaram à falência o Lehman Brothers
Faz dez
anos que explodiu a crise das
hipotecas subprime, ou hipotecas podres, assim chamadas porque haviam
sido concedidas, com juros altos, a pessoas físicas com elevado risco de
créditos. O colapso dos mercados foi tão drástico que obrigou o Federal Reserve (Fed,
o Banco Central dos EUA) — e o Banco Central
Europeu (BCE) — a injetar centenas de bilhões de dólares e a baixar as
taxas de juros. Os bancos centrais entraram em águas nunca antes navegadas de política
monetária e fiscal. Foram medidas de choque que não chegaram à raiz do
problema: os bancos estavam infectados por produtos, criados por matemáticos
financeiros, que se baseavam em créditos oferecidos a pessoas que apresentavam
renda incompatível com as prestações, passado recente de inadimplência, falta
de documentação adequada, ou mesmo a devedores sem patrimônio, trabalho ou
renda.
Eram hipotecas podres porque eram concedidas a
pessoas que tinham trabalhos 'podres': más condições sanitárias, falta de
seguro médico e violações à legislação, como pagamento abaixo do mínimo legal.
Enquanto o mercado habitacional crescia irracionalmente, parecia um negócio
rentável. Só que há dez anos explodiu a crise de liquidez e de confiança na
solvência das entidades, provocando a maior depressão desde a Segunda Guerra
Mundial.
Os investidores mergulhavam então em um curso
intensivo de finanças para se familiarizar com novos termos, como hipotecas
subprime, Títulos Garantidos por Dívidas (CDOs sintéticos),
veículos especiais de investimento (SIV) e
veículos estruturados. O experimento do Fed continua, porque a crise se mantém
viva, embora atenuada. Entrou em nova fase, a de desmontagem de todo o andaime
que foi necessário armar para evitar o colapso da economia.
Ninguém em Wall Street comemora
esse aniversário, apesar de ter marcado a consciência dos reguladores e dos
investidores. O índice Dow
Jones fechou aquele 8 de agosto de 2007 com a maior queda em quatro
anos por medo da crise hipotecária, diante da qual as autoridades não agiram
com firmeza, e que acabou se tornando o pior pesadelo. O Dow Jones caiu a
13.270 pontos, mas se recuperou do tombo e está em 22.000 pontos, um recorde
histórico. Um bom exemplo da volatilidade dos mercados para uns, mas para
outros, o caso típico de que se atingiu um nível irracional antes de outro
colapso.
A crise do mercado de
crédito foi marcada pelo desaparecimento do banco de investimentos
Bear Stearns, dos fundos do BNP Paribas, de bancos hipotecários dos EUA e pelos
problemas da maior seguradora do mundo, a AIG.
Foi a pior calamidade financeira desde 1930.
Durante seus 19 meses de duração mais de 8,7 milhões de empregos foram
perdidos, mais de metade dos adultos passaram pela perda do empregou ou por
corte no salário ou tiveram que trabalhar em tempo parcial. O consumo e o PIB
encolheram devido à escassez de crédito e ao aumento do custo dos empréstimos.
O S&P 500,
índice das ações mais valorizadas dos EUA, perdeu metade de seu valor.
O Brasil não ficou imune aos reflexos da crise. A
solidez dos bancos nacionais — historicamente mais concentrados que em
outros mercados — foi, num primeiro momento, um diferencial para barrar o
terremoto que balançava o sistema financeiro internacional. Mas o país inicia
um período de desaceleração na economia, puxado pela redução na demanda externa
por commodities — muito dependentes de financiamento. A Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa)
encerrou 2008 com baixa de 41,22%, em 37.550 pontos — a segunda maior
queda histórica, atrás apenas da ocorrida em 1972. Esse resultado interrompeu
um ciclo de cinco anos de alta expressiva na bolsa.
O movimento sísmico foi de tal envergadura que
deixou exposto vários países a eventos como a quebra do euro, a crise da dívida
soberana da Grécia e
outras consequências políticas como o Brexit e
o surgimento do populismo em diversos países. Uma década depois, as taxas de
juros permanecem historicamente baixas, e os bancos centrais continuam
comprando dívida para segurar a economia.
“Os
bancos emprestavam para qualquer coisa”
Janet Yellen lembra como foi gestada a crise. “Os bancos punham dinheiro
em qualquer coisa”, comentou há algumas semanas. A presidente do Fed estava na
época à frente do banco regional de San Francisco. “Ninguém parava para
analisar o que aconteceria caso se deixasse de pagar a dívida”, explicou. Na
verdade, o que se fazia era empacotá-la para oferecê-la a investidores em busca
de rendimentos elevados.
Todas as crises financeiras têm características
comuns. Os bancos investem em ativos de alto risco devido a sua rentabilidade
elevada, o que funciona até que alguém diga que são tóxicos, e aí perdem seu
valor e sua liquidez. O gatilho surge quando as pessoas tentam em massa
recuperar o dinheiro, diante da perda de confiança, e o contágio se acelera. A
de 2007 não foi diferente. Começou com as hipotecas subprime, estendeu-se a
outros produtos, e os bancos ficaram sem capital para absorver as perdas.
O primeiro aviso da recessão que chegava foi dado
pelo maior banco da Europa, oHSBC,
um dos mais agressivos no mercado imobiliário norte-americano. Em fevereiro de
2007 anunciou que as perdas nas carteiras de dívida hipotecária seriam maiores
que o esperado. Os despejos estavam disparando, e a entidade não conseguia
prever quantos proprietários ficariam incapacitados de pagar suas dívidas.
As taxas de juros estavam então em 5,25%. As
hipotecas subprime eram oferecidas a clientes que não atingiam os requisitos
mais estritos. O HSBC misturou essa dívida com outra entre 2005 e 2006, em
pleno auge imobiliário. Um mês depois de reconhecer os problemas a empresa New
Century Financial, especializada nesse mercado, foi à falência.
As coisas ficaram feias quando os primeiros fundos
estruturados com hipotecassubprime explodiram no Bear Stearns, em junho do
mesmo ano. Os problemas se propagaram para grandes firmas financeiras como
Merrill Lynch, JPMorgan Chase, Citigroup e Goldman
Sachs. Pouco depois era o banco francês BNP Paribas que anunciava o fim das
atividades em três fundos especializados em dívida hipotecária porque ficaram
insolventes.
Ben Bernanke,
presidente na época do Fed, demorou a agir. No começo achou que a crescente
inadimplência nas hipotecas não representasse risco para a economia. “Achava-se
que o sistema se ajustaria sozinho”, admitiu depois. Em seguida ficou com medo
que se desencadeasse uma segunda Grande Depressão e recorreu a tudo que estava
a seu alcance para estabilizar a economia.
A resposta à crise financeira se deu de duas
maneiras. Houve primeiramente a intervenção para socorrer as instituições
sistêmicas, incluindo empresas não supervisionadas pelo Fed, como a AIG e o
Bear Stearns. Depois foram estabelecidos mecanismos para aumentar a liquidez de
que os operadores financeiros precisavam para manter suas atividades e fazer o
dinheiro chegar à economia.
Em dois dias o Fed injetou US$ 87,5 bilhões (R$
275 bilhões), e o BCE, outros US$ 156 bilhões. Na semana a taxa de juros foi
cortada em meio ponto, e pela primeira vez foi reconhecido que o risco era
real. Esse pessimismo repentino levou o banco central a reduzir o preço do
dinheiro em mais meio ponto, o que levou a taxa a 4,75% em 18 de setembro.
Pode
acontecer novamente?
As medidas não frearam o colapso. Na segunda-feira
17 de setembro de 2007, milhares de clientes do Northern Rock, banco
inglês especializado em hipotecas, fizeram fila para sacar seu dinheiro. O
banco não suportou as retiradas, e o Governo decidiu nacionalizá-lo em
fevereiro de 2008. O Bear Stearns acabou absorvido pelo JPMorgan em março de
2008 para evitar sua quebra, como antessala do desastre de 15 de setembro de
2008, a queda do Lehman Brothers e a compra do Merrill Lynch por parte do Bank
of America.
A crise pode se repetir? Yellen admite que isso
não pode ser descartado, mas afirma que não será como a de 2008, porque o
sistema está muito mais seguro, graças aos colchões de capitalização exigidos
dos bancos. Christine
Lagarde, diretora gerente do Fundo Monetário Internacional, é menos
assertiva: “De onde virá, de que forma e com que alcance é algo a se ver,
porque chegam de onde menos se espera”. A normalização da política monetária
nos EUA está em curso: em dezembro de 2015 as taxas de juros começaram a subir
e estão entre 1% e 1,25%. Mas o Fed precisa se desfazer de US$ 4,5 trilhões que
comprou em bônus do Tesouro e títulos hipotecários. A economia dos EUA, apesar
de passar por pleno emprego, cresce abaixo do potencial anterior à crise, os
salários não aumentam como antes da recessão, e a desigualdade aumentou. São as
feridas abertas da crise que começou tudo.
MULTAS
DE US$ 325 BILHÕES
A crise financeira foi criada porque os grandes
bancos tinham um sistema inadequado de gestão de riscos e políticas de
compensação que incentivaram práticas como o empacotamento de dívida
insolvente, que era vendido como se fosse um produto rentável. A reprimenda dos
reguladores às firmas de investimento se traduziu em mais de US$ 325 bilhões em
multas. Paralelamente foram triplicadas as exigências de capital para que as
perdas possam ser assumidas.
Diferentemente da Europa, onde ainda há bancos com
problemas, nos EUA foram amealhados ganhos de mais de US$ 1 trilhão desde a
crise. No ano passado sozinho o lucro líquido atingiu US$ 171,3 bilhões,
segundo o fundo garantidor de depósitos dos EUA. O terceiro trimestre de 2016
foi o melhor da história, com US$ 45,6 bilhões em ganhos. E agora os principais
bancos são maiores que antes da crise.
Mas
continuam as fraudes, como as contas falsas do Wells Fargo. “Os grandes bancos enganam
seus clientes, e a responsabilidade não recai sobre ninguém”, lamenta a
senadora democrata Elizabeth Warren.
EL PAÍS
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