Maurício Brum
Crise recente venezuelana chama
atenção quando se considera evolução da economia latino-americana nos últimos
20 anos
Agravando-se
desde o início da recessão mundial, há quase uma década, a crise venezuelana
parece longe de seu fim. Uma mescla de erros econômicos e eternização do poder
político fez o país de Nicolás Maduro encerrar 2016 com uma inflação superior a
800%, enquanto o PIB despencou quase 19%. O salário mínimo precisou ser
aumentado cinco vezes em um ano, na tentativa de amenizar a subida dos preços,
mas a pobreza da população atingiu níveis recordes e beira a catástrofe
humanitária. Segundo dados da Encovi (Enquete sobre Condições de Vida),
pesquisa realizada por um consórcio de universidades venezuelanas em 2016, quase
75% da população perdeu uma média de 8,7 quilos no ano passado por conta da
desnutrição.
A crise
recente chama a atenção quando se considera a evolução da economia
latino-americana nos últimos 20 anos. Segundo dados do Fundo Monetário
Internacional (FMI), em 1997 (dois anos antes da chegada de Hugo Chávez ao
poder) a Venezuela ainda sustentava o maior PIB per capita do subcontinente,
cerca de 12,02 mil dólares anuais.
Gradativamente,
o país passou a ser alcançado pelos vizinhos: a estimativa para 2017, 20 anos
depois, é que o valor da Venezuela bata em apenas 12,86 mil dólares ao final do
ano – atual primeiro colocado na região, o Chile deverá registrar um PIB per
capita 93% maior (24,8 mil).
A
expectativa para 2017, ainda de acordo com dados do FMI, é que o Brasil ocupe a
7º posição na América Latina, com PIB per capita estimado em 15,49 mil dólares.
O país está atrás de Chile, Panamá, Uruguai, Argentina, México e Costa Rica. E
logo à frente da Colômbia.
No
ranking mundial, com dados de 2016, o Brasil ocupa a 80ª posição, enquanto o
Chile fica no 55º lugar e a Venezuela em 87ª. São 186 países considerados nessa
lista.
O que
aconteceu com o país de Maduro?
Riqueza enganosa
Desde
meados do século XX, a história da Venezuela tem sido marcada por esperanças e
erros na tentativa de aproveitar o petróleo para elevar o país a outros
patamares de qualidade de vida. A boa colocação do país nos rankings dos anos
1990 não era uma novidade: já em 1950, graças à exploração dos combustíveis
fósseis, os venezuelanos chegaram a ter o quarto maior PIB per capita do
mundo na época, atrás apenas de Estados Unidos, Suíça e Nova
Zelândia.
Essa
medida, porém, é enganosa: muitos países exportadores de hidrocarbonetos
costumam aparecer entre os mais ricos, mas aconcentração de riquezas e a má
distribuição de renda fazem com que os proveitos do petróleo não cheguem à
maioria da população. Embora a crise recente seja considerada a pior da
história, ela está longe de ser a primeira vivida pelos venezuelanos – as
dificuldades já apareciam mesmo quando o PIB ainda era proporcionalmente
elevado. Em 1995, mesma época em que tinha o PIB per capita mais alto da
América Latina, a Venezuela também contava com dois terços da sua população
vivendo em níveis de pobreza.
Atualmente,
outras nações exportadoras de hidrocarbonetos aparecem bem ranqueadas em termos
de PIB por habitante, mesmo sem que isso se reflita na qualidade de vida ou no
avanço de ideais democráticos: em 2016, segundo o FMI, o Catar possuía o maior
PIB per capita do mundo (127,6 mil dólares. Os EUA, atualmente 11º colocados,
tiveram seu valor estimado em 57,4 mil). Nações como Emirados Árabes, Arábia
Saudita e Bahrein também aparecem entre os quinze maiores.
O paradoxo da abundância
O
fenômeno pelo qual a riqueza proporcional de um país pode não se refletir em
qualidade de vida ou instituições democráticas modernas é conhecido como
“paradoxo da abundância”: uma teoria na economia segundo a qual uma grande
quantidade de algum recurso natural (no caso, o petróleo) pode levar o país a
uma excessiva dependência daquela riqueza, não conseguindo diversificar suas
indústrias e redundando em governos autoritários e ineficientes.
Um dos
primeiros a identificar essa questão foi justamente um venezuelano. Juan Pablo
Pérez Alfonzo, ministro de Minas e Hidrocarbonetos da Venezuela na década de
1960, e considerado um dos pais da OPEP (Organização dos Países Exportadores de
Petróleo), havia feito uma previsão sombria em 1976, pouco após o país
estatizar a exploração do ouro negro: “daqui a dez ou vinte anos, o
petróleo nos trará a ruína. É o excremento do diabo”, escreveu.
A ruína
prevista por Pérez Alfonzo chegou mais rápido do que o imaginado: já nos anos
1980, a Venezuela viveu uma grande crise econômica que trouxe pobreza
generalizada e ajudou a impulsionar, na década de 90, o discurso populista de
Hugo Chávez. Em seus primeiros tempos, o governo chavista gozou de um período
de fartura com o barril de petróleo atingindo valores recordes – apesar das
críticas da oposição e da comunidade internacional quanto aos aspectos
antidemocráticos de Chávez, a crise econômica só chegaria aos patamares atuais
quando o petróleo se desvalorizasse abruptamente e os erros econômicos ficassem
evidentes.
“Democracia
é uma coisa boa, mas os países podem obter uma boa performance econômica mesmo
sem democracia”, disse, em entrevista à Gazeta do Povo, o economista Jeffrey
Frankel, professor da Kennedy School of Government da Universidade de Harvard.
“Um bom exemplo disso é a Coreia do Sul, que alcançou seu milagre de
crescimento primeiro, e só depois decidiu adotar um sistema democrático”. É por
isso, interpreta, que a situação venezuelana precisou de mais do que um governo
questionado como ditatorial para atingir o drama atual: foi preciso que a
economia chegasse a um ponto de colapso. “Uma das propriedades mais
importantes que as instituições precisam oferecer é uma política fiscal
anticíclica: economizar quando os preços das commodities estão altos, o que
permite manter mais investimentos quando eles baixam”, entende Frankel.
Hoje, a
Venezuela não sofre apenas com os preços baixos do petróleo: a quebra do país,
que vê 96% da sua receita de exportações vir do óleo, impede a própria
indústria petrolífera de funcionar. A PDVSA, estatal venezuelana de
hidrocarbonetos, começou 2017 sem recursos sequer para transportar combustíveis
em águas internacionais.
Os erros do chavismo
Com uma plataforma
autoproclamada socialista, desde o início Hugo Chávez – e, mais tarde, Maduro –
investiu maciçamente em programas estatais, ao mesmo tempo em que não criava
condições para enfrentar uma crise futura. Esse é, segundo muitos analistas, o
principal aspecto que costuma levar os países dependentes de recursos naturais
a um estado de dificuldades: a riqueza natural não é uma maldição em si
mesma, mas pode se tornar devido aos erros estratégicos do governo. O caso
venezuelano não seria, assim, tão comparável ao do socialismo cubano, por
exemplo, mas ao de outros países com recursos naturais abundantes que não foram
capazes de fortalecer leis e instituições capazes de gerenciar essa
riqueza.
Com um
Estado inchado e sustentado quase que exclusivamente pelo petróleo, a Venezuela
caminhava para a quebra no momento em que os preços caíssem no mercado
internacional, como ocorreu a partir de 2008.
“A
questão não é tanto que países com a ‘maldição dos recursos’ tenham
instituições anormalmente fracas, mas principalmente que elesnão têm instituições
particularmente fortes. A riqueza advinda dos recursos traz fardos para o
governo que outros países não precisam enfrentar, como a necessidade de guardar
uma ‘herança’ para a estabilização futura”, argumentou em entrevista à Gazeta
do Povo o cientista político Michael Ross, professor da Universidade da
Califórnia (UCLA), e autor do livro The Oil Curse: how petroleum wealth shapes
the development of nations (“A Maldição do Óleo: como a riqueza do petróleo
molda o desenvolvimento das nações”, sem edição no Brasil).
Para
Ross, a receita é afastar a utilização dos recursos da vontade suprema do
governo – algo difícil em um país onde, na prática, o governo permanece o mesmo
há quase duas décadas. O pesquisador cita o caso da Noruega, rica em petróleo,
e do Chile, cuja economia foi historicamente dependente da mineração de cobre:
“os dois países fizeram um excelente trabalho em remover os recursos naturais
da política, em parte porque amarraram as mãos do governo e limitaram sua
possibilidade de usar esse lucro para ganhos políticos no curto prazo”,
entende.
De
acordo com Ross, “Chile e Noruega souberam criar instituições para proteger
suas economias – e os recursos governamentais – dos ciclos de boom e quebra, de
modo que a população não sofra quando os preços caiam”. Na Venezuela, o populismo
levou a um caminho diferente – e a conta, para o governo e para a
população, continua a ser cobrada.
Gazeta do Povo
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