Luiz Carlos Azedo
Não houve ainda o grande debate
sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear
investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção
A
emblemática privatização da Casa da Moeda, anunciada ontem pelo governo, vai
muito além da desmobilização de seu patrimônio e concessão de serviços. É a
joia mais antiga da coroa do nosso velho patrimonialismo. Fundada em 1694, em
Salvador, por Dom Pedro II de Portugal, foi criada para cunhar moedas de ouro
de circulação exclusiva no Brasil. Desde então, é responsável pela produção do
meio circulante brasileiro e de outros produtos de segurança, como passaportes
com chips e selos fiscais. O complexo industrial, localizado em Santa Cruz, na
Zona Oeste do Rio, por exemplo, é um dos maiores do gênero no mundo, com três
fábricas da empresa (de cédulas, de moedas e gráfica); na antiga sede no Campo
de Santana, no Rio de Janeiro, inaugurada em 1868, hoje funciona o Arquivo
Nacional.
Dois
dias depois de anunciar a privatização da Eletrobras, uma gigante estatal com
receita de R$ 60,7 bilhões e 24 mil empregados — com 13 subsidiárias, 178 empresas
e 223 usinas hidrelétricas —, o governo anunciou um Programa de Parcerias de
Investimento (PPI) no qual 57 novos ativos foram disponibilizados, entre
aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Segundo o ministro da
secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco, o objetivo é “enfrentar a
questão do emprego e da renda”. O governo não sabe ainda quanto pretende
arrecadar com os novos leilões, mas estima que representarão R$ 44 bilhões em
investimentos. O objetivo é elevar as receitas num momento de arrecadação fraca
e deficit fiscal de R$ 159 bilhões.
Na
prática, foi anunciada ontem a decisão política de se desfazer do patrimônio,
sem que tenham ficado muito claras as regras do jogo. Não houve uma prévia
discussão no interior da equipe econômica da modelagem das privatizações. O
modelo será selvagem, como aconteceu com o programa do primeiro-ministro russo
Boris Yeltsin, ou cercado de garantias institucionais, como nas privatizações
do governo de Fernando Henrique Cardoso? As duas experiências ocorreram na
década de 1990 e servem de paradigma para investidores do mundo inteiro quando
se trata de lidar com os chamados países emergentes.
O
programa reabre a discussão sobre o patrimonialismo no Brasil. O conceito foi
criado por Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, e adotado por alguns dos
chamados intérpretes do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do
Brasil, 1936) e Victor Nunes Leal (Coronelismo: enxada e voto, 1948). Em 1978,
o tema foi retomado com a reedição da obra de Raymundo Faoro Os donos do poder,
a formação do patronato brasileiro (1958), que mostra as dificuldades em
separar o patrimônio público dos bens privados para a construção de um Estado
moderno, baseado no respeito aos preceitos legais.
Privatizações
A crise
do Estado de bem-estar social na Europa e o chamado “Thatcherismo” coincidiram,
no Brasil, com a crise do modelo nacional desenvolvimentista, que proporcionara
o chamado “milagre brasileiro” no auge do regime militar. Após a vitória
conservadora no Reino Unido, em 1979, a primeira-ministra Margaret Thatcher
privatizou a maior parte do setor público, contra a opinião dos trabalhistas e
a mobilização dos sindicatos, que acabaram derrotados depois de uma greve de
mineiros que durou mais de um ano. Nos meios intelectuais, o debate sobre as
privatizações emergiu como uma espécie de saída para a crise de financiamento
do setor público e superação do patrimonialismo em meio à luta pela
democratização do país. Mas morte de Tancredo Neves, em 1985, de certa forma,
frustrou uma reforma liberal.
Agora, a
Operação Lava-Jato repôs esse debate na ordem dia. A passagem do PT pelo poder,
economicamente intervencionista e estatizante, exacerbou o fisiologismo, o
clientelismo e o patrimonialismo. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder,
mas seus aliados permaneceram no controle das estruturas de governo, a começar
pelo PMDB, cujas práticas patrimonialistas dispensam apresentação.
Doutrinariamente, caberia ao PSDB liderar a retomada do debate sobre as
privatizações, mas o que está acontecendo é outra coisa. Foi o núcleo
peemedebista ligado ao presidente Michel Temer que resolveu desatar o nó das
privatizações.
Como se
dará esse processo? Essa é a grande indagação no mercado, porque as regras não
estão claras. Na Rússia, as privatizações selvagens de Yegor Gayder, ministro
de Boris Yeltsin, transformaram burocratas comunistas em magnatas capitalistas
da noite para o dia. Putin virou um novo czar da Rússia ao pôr ordem no
processo, com apoio da classe média generalizada que surgiu da restauração
capitalista. No Brasil, a recessão impediu a consolidação da chamada nova
classe média, lançada ao desemprego e à falência, mas a retomada do crescimento
pode viabilizar isso. É uma aposta para 2018 se a reforma do Estado avançar na
administração direta e na Previdência e os investimentos vierem. Muitos desses
investidores são africanos, árabes, russos e chineses, que gostam de jogo
bruto. Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para
reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura,
fortalecer a democracia e combater a corrupção e o mau uso do patrimônio do
Estado. Ele pode ser abortado por privatizações a toque de caixa.
Correio Braziliense
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