segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Estupra mas não mente

Guilherme Fiuza

Janot, o homem bom, não teve flechas para negociatas obscenas como a de Pasadena, repleta de digitais de Dilma

A política brasileira não produziu uma cena tão sublime, nas últimas décadas, quanto o abraço de Lula e Renan Calheiros num comício pela democracia. Sublime, no caso, menos pela transcendência que pela invisibilidade: esse Brasil que acordou para a ética e grita contra a tirania vampiresca do PMDB velho, branco e podre devia estar de costas para o palanque. Ou então cochilou de novo. Essa lenda do país sequestrado pelos capangas do Eduardo Cunha dá sono mesmo.

As obras completas de Lula não sensibilizam esse novo Brasil ético, que perde de vista o maestro da pilhagem ao espernear contra os governantes corruptos — em perfeita sintonia com Joesley Batista, o caubói biônico que denunciou os inimigos do PT (gratidão é tudo). Essa comovente artilharia cívica, por sua vez, acompanha em proverbial coincidência a direção das flechas de Rodrigo Janot — o justiceiro que deu fuga segura a Joesley e vida mansa a Renan (o investigado mais feliz da República, porque flechada de amor não dói). Renan que vem a ser o mesmíssimo personagem do parágrafo acima, portanto a raposa do PMDB (tapa o nariz e vai, companheiro) que acaba de tirar do armário sua imorredoura lealdade a Lula. Não se perca na cadeia de amizades.

Corta para mais uma cena sublime que o novo Brasil ético não viu: ao lado da procuradora-geral da Venezuela, escorraçada pela ditadura amiga do Lula, Janot declara que Maduro estuprou as instituições democráticas. Uma frase sonora, especialmente quando dita por um personagem que se encontra há cem dias tentando derrubar um presidente no grito. A diferença para a sangria venezuelana poderia ser demarcada por Maluf: estupra, mas não mata.

Como o Brasil faz questão de fingir que não sabe ou não viu, pau  que dá em Chico, dá em Francisco, mas não dá em Joesley, nem em Dilma. Janot, o homem bom, não teve flechas para negociatas obscenas como a da refinaria de Pasadena, repleta de digitais da ex-presidenta mulher — dentre diversos crimes cometidos sob sua influência como ministra e como chefe de governo, com os comparsas que ela, seu partido e seu tutor escolheram. Janot, o homem justo, ídolo dos que deploram a corrupção, aliviou essa quadrilha o quanto pôde, em suas triangulações mágicas com os supremos companheiros e o fiel despachante José Eduardo Cardozo.

No que o impeachment tirou o poder das mãos da quadrilha do bem, o amortecedor-geral virou franco-atirador. Combinou uma virada de mesa com o açougueiro enriquecido pelo PT, numa denúncia imprestável que, se o Brasil tiver algum juízo, ainda será caso de polícia. Deu tudo errado — e agora esse diletante do tiro ao alvo está posando de defensor ultrajado da democracia venezuelana, estuprada pelos amigos dos seus amigos. Mas isso tudo é segredo e deve ser falado em voz baixa, para não atrapalhar os sonhos dourados do novo Brasil ético que venera Janot.

Se Renan Calheiros ainda está circulando leve e fagueiro por aí, vai ver ele é do PMDB do bem. O mal está nos golpistas que tiraram a Petrobras dos afilhados de José Dirceu e sanearam em um ano a companhia devastada pelo PT. Essa gente perversa agora quer sanear a Eletrobrás, possivelmente privatizando-a, e Dilma Rousseff (que está solta) já gritou que isso é um crime. De fato, depois de tudo que a Lava-Jato revelou, se a elite branca e do lar sair blindando estatais em série vai ficar difícil, para os guerreiros do povo, continuar roubando honestamente.

As reformas dessa gente ruim que acaba de tirar o país da recessão estão turbinando o mercado, com a Bovespa próxima da pontuação recorde na década. Isso é muito preocupante: ameaça desempregar um enorme contingente de pais de família que vivem de caçar voto fácil contando história triste — e necessitam que o país se arrebente agora, para que possam voltar a vender a bondade transgênica dos últimos 13 anos. Flechas para que te quero!
 
Neste momento crucial da conjuntura, em que o grito por depuração política traz nova chance de ouro para o heroísmo tarja preta, talvez ninguém tenha se destacado tanto no ramo da alta prostituição intelectual quanto os tucanos. Assumiram a obrigação de apoiar os agentes sérios que entraram no governo para desfazer a lambança, mas resolveram manter uma expressão de virgem ultrajada da porta para fora — e assim conseguirão perder dobrado: o respeito e a clientela.

Vão acabar abraçados a Lula e Renan, rezando por flecha de bambu e mesada de açougueiro, nessa cadeia da bondade que terá a bondade de terminar na cadeia.

Revista ÉPOCA

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