Carlos Fernando dos
Santos Lima
(*)
No
início deste agosto, novamente a Câmara dos Deputados confirmou para a
população quanto nosso sistema político está dissociado do interesse público e
da real solução dos problemas brasileiros. A síntese desse momento deprimente
foi uma sessão em que parlamentares venderam seus votos em plenário, destruíram
pixulecos com os dentes, pediram nudes pela internet e, por sua maioria,
mantiveram no poder um presidente denunciado por corrupção no cargo.
Mas quem
são esses deputados? Muitas vezes ouço análises simplistas dizendo que eles são
apenas o reflexo do povo brasileiro. Representam o nosso povo e, portanto, agem
como ele. Esse raciocínio é divulgado por interessados em nos fazer absolver a
corrupção, a falta de interesse público, os conchavos e até mesmo a imoralidade
de nossa elite política, afirmando que somos todos culpados.
Muitos
dos que seguem essa forma de pensar maldizem a esperteza da população,
difamam-na afirmando que ela quer “levar vantagem em tudo”, apontam o
brasileiro como um povo sem caráter. E esse mesmo brasileiro repete
ingenuamente nas redes sociais esse mantra, colocando essa pecha no “outro”,
naqueles que não sabem votar, naqueles que não se manifestam contra esse estado
de coisas, esquecendo que não há outros, mas apenas nós mesmos, passageiros do
mesmo barco. Passageiros, mas nunca comandantes.
Creio
firmemente que essa relação de causa – dissolução moral de nosso povo – e
efeito – dissolução moral de nossas elites – está incorreta. Confundem-se
causas e efeitos, como se os vícios do pai pudessem ser imputados ao filho.
Além disso, nossa história é muito mais pródiga em mostrar a “grande” esperteza
de nossa elite econômica e política, esta, sim, sempre levando vantagem em
todas as circunstâncias, que a “pequena” esperteza do povo.
A
história e a literatura mundiais estão cheias de exemplos de pobres que tentam
escapar da miséria por meio de pequenas espertezas, contra os nobres, os
bem-nascidos, os padres, os lordes, os burgueses etc., sem nunca realmente
conseguirem mais que, ao final, sobreviver. Vemos isso nos servos de
Shakespeare, nos vilões de Boccaccio, num João Grilo de Suassuna e nas figuras
populares como Pedro Malasartes do folclore português. Assim, o que
chamamos de esperteza é historicamente apenas a forma de sobreviver à exclusão
a que eram submetidos. Em um mundo onde somente lhes destinava sobras, a única
virtude possível para sobreviver era ser esperto, pois nem mesmo as sobras eram
para todos.
Isso é
especialmente verdadeiro no Brasil. O Brasil colonial é a transposição de um
sistema de privilégios em favor dos nobres em detrimento do povo, em favor dos
portugueses em detrimento dos brasileiros, em favor dos abastados em detrimento
dos sem-posses. E esse sistema de exclusão sobreviveu às mudanças de regime
político e ao próprio tempo, mudando as classes sociais que se tornavam
privilegiadas, mas mantendo sempre a maioria fora das benesses do poder
político e econômico.
E esse
sistema sempre teve ainda uma característica ainda mais perversa. Tão logo
pessoas excluídas conseguiam por alguma circunstância excepcional ascender para
as elites, passavam a agir exatamente como elas. Assumiam como seu o direito à
perpetuação do sistema, como se, por terem sofrido sob ele, fossem agora
titulares do direito de usufruir os privilégios. É como se o filho, pelo
exemplo dos vícios do pai, se tornasse ele ao crescer.
Esse
fenômeno está hoje exacerbado pelo novo paradigma do sucesso em nossa
sociedade. Faltam-nos exemplos do bom, do moral ou do correto, e sobram
histórias de sucesso fácil ou, pior, histórias que justificam até o crime para
vencer na vida. Isso vem ainda exacerbado em uma cultura que valoriza a
celebridade a qualquer preço, e não o mérito, o trabalho árduo e o esforço
próprio. Como podemos ser diferentes quando a experiência mostra que vale a
pena transgredir as regras se você for poderoso? Reforça-se assim a expectativa
de que a lei somente vale para quem não tem condições financeiras de afastá-la.
Pode-se roubar a República, mas não um xampu.
Mas
agora as investigações da Operação Lava Jato colocaram todos nus. O que era
antes intuído, hoje, está exposto. As negociatas em pleno palácio oficial, o
balcão de negócios no plenário da Câmara dos Deputados, a troca de favores,
cargos públicos e verbas por apoio para afastar uma denúncia de corrupção, não
há mais nada “por debaixo do pano”. Levantamos o véu que cobria nossa política
e vemos não uma vestal, mas um ser amorfo, apodrecido por seus vícios e conduta
degenerada.
Salvam-se
poucos dessa triste história. Nenhum nome na política que nos inspire
confiança, liderança ética e conduta exemplar nos vem à mente quando olhamos o
atual estado das coisas. Se em determinados momentos da história acreditávamos,
certo ou errado, em um Ulysses Guimarães, em um Tancredo Neves, em um Teotônio
Vilela, ou mesmo em um Leonel Brizola, hoje nem sombras de estadistas podemos
vislumbrar.
Isso
aconteceu porque a política afastou os homens de bem. Os partidos tornaram-se
máquinas dominadas por interessados em poder, e não em bem governar. As
eleições tornaram-se espetáculos em que o marketing e a mentira têm o papel
principal, e o dono do dinheiro determina quem será eleito ou não. Não restou
espaço para discutir qualquer interesse público, mas apenas interesses
particulares de poderosos, que, como hienas, disputam a carcaça de um moribundo
país.
O que
resta a fazer é não deixar que nos usem como culpados. É preciso exemplos de
homens públicos, verdadeiros republicanos e democratas, tolerantes com as
divergências, mas não com o crime, a venalidade e a falta de ética. E para isso
é preciso erradicar da prática política o abuso do poder econômico e o uso da
corrupção como forma de governar.
Precisamos
de uma reforma na política que permita novos nomes e novas ideias. Sempre é
tempo para mudar. É preciso quebrar esse círculo vicioso e permitir que uma
política limpa e ética floresça. Assim nossa população terá os exemplos de que
precisa. Essa é a esperança, e ela ainda não morreu, apesar deste infeliz
início de agosto.
Carlos Fernando dos
Santos Lima
Procurador
Regional da República, é Membro da força-tarefa da Lava Jato.
(*) Comentário do editor do
blog-MBF: com todo respeito ao Procurador,
faço apenas uma ressalva: não foi a política que afastou os homens de bem,
foram os donos das organizações criminosas também conhecidas como partidos
políticos. Extinga TODOS partidos políticos do nosso sistema eleitoral, e os
homens de bem terão chances claras na política.
Enquanto houver partidos políticos, as
gerações futuras continuarão reclamando e solução que é bom, nada.
O país continuará sua marcha de injustiça
social e de endividamento público.
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