Edison
Veiga
O filme Maria Madalena, que chega aos cinemas nesta quinta (15),
lança olhar sobre uma das versões da trajetória desta figura fundamental à
história do cristianismo. Na obra dirigida por Garth Davis, ela aparece como
uma fiel seguidora de Cristo. Mais do que isso, uma mulher à frente de seu
tempo, que desafia a sociedade patriarcal da época, contrariando seu pai ao
decidir se tornar uma discípula.
Citada nominalmente 17 vezes na Bíblia, Maria Madalena, ao que tudo
indica, era uma entre tantas pessoas que se encantaram com as pregações de
Jesus e passaram a segui-lo. A principal pista sobre sua origem está no nome:
originalmente, Maria de Magdala, ou seja, nascida em Magdala, uma vila de
pescadores próxima ao Mar da Galileia, localizada a 10 km de Cafarnaum, a
cidade que foi a base de Jesus na vida adulta.
O primeiro contato entre eles está narrado no capítulo 8 do Evangelho
de Lucas. Cristo encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios.
Sete é um número simbólico e, na Bíblia, significa a totalidade. A
partir de então, ela se torna uma seguidora do pregador. Madalena é citada como
uma das mulheres que testemunharam a crucificação de Jesus e, de acordo com o
evangelista Marcos, ela teria visto onde o seu corpo foi sepultado. A Bíblia
relata ainda que ela acabou sendo a primeira a encontrar o sepulcro de Cristo
aberto e, portanto, se tornou a anunciadora, aos outros discípulos, da
ressurreição de Jesus.
A seguir, todavia, seu nome desaparece do livro sagrado. Nos relatos -
presentes em Atos dos Apóstolos e nas epístolas - dos primeiros anos da Igreja,
é como se Madalena não tivesse existido.
"O silêncio dos apóstolos trouxe aos exegetas diferentes interpretações
e, para o imaginário coletivo, muitas histórias que ainda hoje pairam sobre a
imaginação de homens e mulheres do mundo cristão ocidental", pontua a
pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso, professora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo e membro da
Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião.
"Crentes ou ateus, todos conhecem alguma história sobre Maria
Madalena".
Relacionamento
amoroso
Isto porque as histórias são muitas. Um exemplo bastante difundido: a
mulher era uma prostituta que, resgatada por Jesus, acabou virando sua amante.
Os dois teriam se casado e, quando ele foi crucificado, Madalena esperava um
filho dele. Então, ela fugiria para a França, onde daria à luz. Os descendentes
dessa linhagem seriam os membros da dinastia Merovíngia, que governou os
francos de 478 a 751.
Este enredo aparece na literatura em O Santo Graal e a Linhagem
Sagrada, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln - publicado em 1982.
Um relacionamento amoroso entre Cristo e Madalena também é narrado
tanto no livro O Segredo dos Templários, escrito por Lynn Picknett e Clive
Prince e lançado em 1997, quanto no best-seller O Código Da Vinci, de Dan
Brown. Nestes, a conspiração envolve o gênio renascentista Leonardo Da Vinci
(1452-1519), que teria retratado Maria Madalena, de forma cifrada, ao lado
direito de Jesus em sua representação da Última Ceia.
No tratado hagiográfico Legenda Áurea, publicado em 1293, o frade
dominicano Jacopo de Varazze (1230-1298) conta que 14 anos depois da morte de
Jesus, Madalena e um grupo de cristãos acabaram expulsos da Judeia. Embarcados
à força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria
Madalena teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou
à gruta de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência
e à contemplação.
Verdade ou não, o local celebra esta história.
"Nos anos 1950, morei quatro anos no sul da França, onde se
encontram a gruta em que se recolheu Maria Madalena e seu túmulo, na cripta da
grande basílica, hoje museu. Havia uma grande festa provençal em sua honra, no
dia 22 de julho", recorda-se o teólogo Francisco Catão, autor do livro Catecismo
e Catequese, entre outros.
Lendas
As versões populares sobre quem teria sido Madalena são muitas. Há
quem acredite que ela tenha sido uma mulher que decidiu fugir com um soldado
romano. Depois de um tempo, ele a abandonou e ela virou uma prostituta. Foi
quando se encontrou com Cristo e passou a ser sua seguidora. Também há a lenda
de que ela tenha sido uma aristocrata, herdeira de um castelo na região de
Magdala. Vivia numa vida de luxúria até conhecer Jesus e passar a segui-lo.
Segundo a Bíblia, o primeiro milagre realizado por Cristo teria sido,
em uma festa de casamento, transformar água em vinho. A identidade dos noivos
não é revelada. Há quem diga que o matrimônio era entre Maria Madalena e João
Evangelista. Por essa versão, entretanto, o noivo acabaria se encantando com o
gesto de Jesus - e abandonado o casamento para se tornar discípulo. Deixada só,
Madalena acabaria vivendo como prostituta e, muito tempo depois, encontrado
Jesus conforme está nos evangelhos.
Força da
mulher
Uma das teorias atribui ao machismo a desconstrução moral de Maria
Madalena. Isto porque ela teria tido um papel muito importante nos primeiros
anos do cristianismo, algo semelhante ao de Pedro - considerado como o primeiro
papa da Igreja Católica, o fundador do catolicismo.
Mas quando a Igreja se tornou religião oficial de Roma, teve de dar
uma atenuada nesses aspectos, por conta do machismo do império.
"Maria Madalena é uma figura forte desde o início do
cristianismo. Mas, em uma sociedade patriarcal, em que o Jesus ressuscitado
apareceu a uma mulher em primeiro lugar, confiando a ela a missão de anunciar
aos apóstolos a sua ressurreição - a mais alta missão possível! - foi um
problema para os homens de seu tempo", disse a historiadora Lucetta
Scaraffia, que há décadas estuda a importância da mulher na tradição cristã, em
entrevista publicada semana passada no L'Osservatore Romano.
Mais do que os quatro evangelhos canônicos - de João, Marcos, Lucas e
Mateus -, muitos evangelhos ditos apócrifos, não reconhecidos pela Igreja
Católica, tratam da vida de Maria Madalena - e são fonte de muitas das teorias
sobre ela que sobreviveram ao tempo.
Se nos evangelhos oficiais seu papel é restrito a apenas uma entre
tantos seguidores de Cristo, nos apócrifos Maria Madalena é retratada como
alguém próxima do mestre, uma sábia que gozava de posição especial entre os
primeiros cristãos.
"A liderança de Madalena era incômoda em muitos setores do
cristianismo dos primórdios. A escolha dos livros que formam o Novo Testamento
se deu num cenário em que se procurava sufocar as lideranças femininas
existentes nas comunidades cristãs", afirma o teólogo Pedro Lima
Vasconcellos, professor da Universidade Federal de Alagoas e autor do livro O
Código da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos, para explicar por que
ela é retratada nos apócrifos de uma maneira diferente dos evangelhos
canônicos.
No Evangelho de Tomé, ela aparece em um diálogo com Pedro no último
dos 114 ditos que essa obra atribui a Jesus. E mostra que havia uma Igreja
dividida entre essas duas lideranças.
"Simão Pedro disse a eles: 'Maria tem de nos deixar, pois as
mulheres não são dignas de viver'", diz o trecho. Na sequência, Jesus
responde: "Eis que eu a guiarei para torná-la masculina, para que também
ela se torne um espírito vivente, como vós, que sois homens. Pois toda mulher
que se fizer homem entrará no Reino dos Céus".
Uma das intepretações aceitas para esse diálogo que hoje soa esquisito
vem do pesquisador Dale Martin, especialista em Religião da Universidade de
Yale. Para ele, o texto se refere a uma crença da época de que a capacidade de
procriar, inerente às mulheres, era algo ruim.
Já no Evangelho de Maria, ela é quem anima e encoraja os apóstolos
temerosos das perseguições daqueles primeiros tempos do cristianismo. E Pedro
reconhece sua importância. "Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do
que às outras mulheres. Dize-nos as palavras do Salvador que recordas, aquelas
que conheces e nós não conhecemos, já que não as ouvimos", afirma ele.
Entre 2015 e 2016, a pesquisadora Eleonora Graziani utilizou este
evangelho para demonstrar "a autoridade da voz feminina na Igreja
primitiva", quando ela realizava seu doutoramento em Estudos Femininos
pela Universidade de Coimbra.
Mas o texto apócrifo que mais suscita discussões sobre Madalena ter
tido ou não um relacionamento amoroso com Jesus é o Evangelho de Filipe.
Primeiro porque o evangelista diz que uma das Marias que "sempre
caminhavam com o Senhor" era "sua companheira".
Entretanto, pode ser tudo uma questão de tradução. A palavra original
do manuscrito, o grego koinonôs, apesar de poder se referir a uma esposa, é
mais comumente empregada para designar duas pessoas que compartilham alguma
missão ou um trabalho, como dois parceiros comerciais. Outra passagem do mesmo
evangelho, apesar de repleto de lacunas, diz que Jesus "a beijava com
frequência na sua boca".
Papas
No início, a Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era
chamada de "apóstola dos apóstolos", justamente por ter sido a
primeira a atestar a ressurreição de Cristo - o primeiro registro desta
definição é atribuído ao teólogo Hipólito de Roma (170-236).
Deixada meio de lado quando a Igreja Católica se tornou oficial do
Império Romano - o que aconteceu no ano 380 -, Maria Madalena acabou relembrada
de um jeito meio torto. Em uma tentativa de tentar convencer os fiéis de que o
arrependimento sincero bastaria para um perdão de Deus, o papa Gregório Magno
(540-604) começou a propagar, em sermões, que algumas passagens da Bíblia se
referindo a mulheres pecadoras - anônimas - estavam, na verdade, tratando de
Madalena.
Ou seja: várias pessoas foram juntadas em um só nome Maria Madalena.
Em seu artigo Olhares de Clérigos - que integra do livro História
das Mulheres no Ocidente-, o historiador francês Jacques Dalerun é categórico
ao dizer que "tal como o Ocidente a venera a santa não existe, enquanto
indivíduo, nos evangelhos".
"A identidade de Maria Madalena, — de quem Jesus expulsou sete
demônios e que foi testemunha da paixão e da Ressurreição, — fundiu-se com a da
pecadora anônima,— mulher que lavou, ungiu e secou com os cabelos os pés de
Jesus na casa de Simão, o fariseu — e também é identificada com a Maria de
Betânia, irmã de Marta e de Lázaro", resume a pesquisadora Wilma.
"Maria de Betânia, no Evangelho de João, unge também Jesus com um valioso
perfume de nardo. A pecadora anônima que aparece no Evangelho de Lucas; Maria
de Betânia e Maria Madalena passaram a ser consideradas a mesma pessoa."
Pronto, estava aberta a brecha para que Madalena fosse tachada como
prostituta arrependida.
Nas últimas décadas, esta imagem foi revisada pela Igreja. Em 1969, os
predicados "penitente" e "pecadora" foram excluídos da
seção dedicada a ela no 'Breviário Romano'.
"Isto eliminou um estigma que havia sido acentuado principalmente
por ocasião da Contrarreforma, quando Maria Madalena teve a importante função
de ser o exemplum. Completamente contra o protestantismo e sua doutrina da
graça e da predestinação, a Contrarreforma enfatizou a doutrina da penitência e
do mérito. Nessa época, séculos XVI e XVII, Maria Madalena exerceu um
importante papel como a pecadora-penitente e como a pessoa que foi favorecida
por excelência", contextualiza Wilma, que está finalizando um livro sobre
a personagem cristã.
Em 2016, papa Francisco transformou a data de Maria Madalena, 22 de
julho, em festa litúrgica. De acordo com o Vaticano, a decisão foi tomada
porque Francisco gostaria de "assinalar a relevância desta mulher que
mostrou um grande amor por Cristo". Ele voltou a enfatizar seu título de
"apóstola dos apóstolos". O gesto, carregado de simbolismo,
repercutiu entre religiosos e estudiosos.
Professor de Novo Testamento da Universidade Católica de Louvain, na
Bélgica, o filósofo Régis Burnet afirmou que o ato do papa reconhece "o
lugar surpreendente, para a época, que as mulheres ocupavam junto de
Jesus", ao mesmo tempo que funciona como um "apelo a um maior
reconhecimento delas na Igreja de hoje".
Cultura
Relacionamento íntimo com Jesus, mas apenas do ponto de vista
espiritual. O historiador britânico Michael Haag procura trazer esta Maria
Madalena como a verdadeira, em seu recém lançado Maria Madalena - Da
Bíblia ao Código da Vinci: companheira de Jesus, deusa, prostituta, ícone
feminista.
O livro, portanto, vai na mesma linha do filme de Garth Davis que
chega aos cinemas - com Rooney Mara no papel principal. Mas, assim como a
Igreja, o mundo da arte e do entretenimento também já apresentou várias facetas
dessa santa.
Madalena já apareceu em mais de 30 filmes - quase sempre como uma
linda mulher, sedutora. Em A Última Tentação de Cristo, obra de Martin
Scorsese lançada em 1988, ela é vivida pela atriz Barbara Hershey. Que encarna
a figura da prostituta - e, num devaneio épico quando Jesus está na cruz, é
vista como esposa dele e grávida de seu filho. Em A Paixão de Cristo, de
2004, Mel Gibson traz uma Madalena, vivida por Monica Bellucci, coberta de
lama. Em entrevista da época, Gibson afirmou: "eu joguei lama nela; e
quanto mais lama eu jogava, mais bonita ela ficava".
"Em dois mil anos de cristianismo, não há outro personagem que
tenha estimulado tanto a imaginação de artistas, escritores e outros estudiosos
como Maria Madalena", acredita Wilma. "Sabemos pouco a respeito dela,
no entanto, a cada período da era cristã criou-se uma Madalena que satisfizesse
suas necessidades e anseios e assim Maria Madalena vem sendo submetida até
nossos dias a uma plástica cultural."
Assim, obras do Renascimento apresentam uma Madalena símbolo de
penitência, humildade e amor. No Iluminismo, a figura é de uma rameira de
coração puro. No fim do século 19, começa a ser representada de forma muito
sexualizada, uma femme fatale.
Alguns quadros que a retratam são indispensáveis para qualquer
percurso da História da Arte. Ticiano Vecellio (1490-1576) pintou Madalena
Penitente e Noli Me Tangere. Seu contemporâneo Giampetrino (de quem
não se sabe nem sequer o período exato de vida) concebeu uma Madalena sedutora,
mundana. Já a Madalena de Pietro Perugino (1448-1523) é a imagem de uma santa.
BBC Brasil
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