BRUNO
FONSECA / CAROLINE FERRARI
Parte dos
mais de 10 mil imóveis vazios em todo o país poderia ser destinada à habitação
popular
No centro do Rio de Janeiro, a dois
quarteirões da Igreja da Candelária, um edifício de 11 andares permanece vazio
há cerca de oito anos. Conhecido como Palácio dos Esportes, o prédio serviu de
sede para a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA),
extinta em 1998, e, depois, para diversas associações esportivas que o ocuparam
esporadicamente. O edifício chegou a ser cotado para servir de sede do Porto
Maravilha. A reforma do Palácio dos Esportes, contudo, foi descartada, pois
considerou-se inviável a obra: somente o custo inicial do projeto de
readequação das instalações era de R$ 4,2 milhões.
Abandonado, o prédio, propriedade da União, foi
ocupado por um grupo não identificado em agosto de 2015 e esvaziado,
no dia seguinte, pela Polícia Militar. Hoje,
segue com as portas fechadas e deve ser destinado à Marinha, que assumirá o
ônus da recuperação e manutenção das instalações.
O Palácio dos Esportes é apenas um entre os mais de 10 mil imóveis do
governo federal que estão vagos, segundo a Secretaria de Patrimônio (SPU),
ligada aoMinistério
do Planejamento. A partir de dados abertos da SPU, a Pública apurou
que, dos 10.304 imóveis que a secretaria afirma estarem desocupados, apenas
2.647 estão indicados nos dados disponíveis ao público.
Essa diferença de 7.657 imóveis desocupados que não constam na lista
não foi explicada pela SPU até o fechamento da matéria – a secretaria se
limitou a informar que o levantamento dos 10 mil imóveis vagos foi realizado em
dezembro de 2017.
Além disso, na mesma base, outras 16 mil propriedades não possuem
informação se estão ou não ocupadas. Procurada, a assessoria da SPU respondeu
que pode haver mais imóveis vagos entre esses 16 mil e que essas propriedades
“estão passando por um processo de recadastramento que teve início este mês
[junho] e deverá estar concluído no final do ano”.
Além dos comprovadamente vagos, podem existir muitos outros, já que
propriedades cedidas a outros órgãos, como governos e prefeituras, podem estar
sob a descrição de “em guarda provisória”, caso do edifício
Wilton Paes de Almeida, que desabou após um incêndio no centro de São Paulo no
início de maio.
O Wilton Paes de Almeida, por exemplo, não
era utilizado pelo governo havia mais de dez anos. Em outubro de 2017, a
União passou o imóvel para a prefeitura de São Paulo. A justificativa era que a
prefeitura deveria prevenir “invasões e depredações” e fazer limpeza periódica.
O cadastro atual da SPU lista 433 imóveis em guarda provisória em todo
o país. Segundo a secretaria, a responsabilidade pela gestão do imóvel passa
para quem o recebe.
Além disso, há ainda imóveis que estão desocupados e em reforma há
muitos anos, sem que isso conste na listagem da SPU. Em outro exemplo no centro
de São Paulo, um prédio cedido ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo
(TRE-SP) está desde 2014 em processo de readequação. A previsão de utilização
do espaço é apenas em 2020.
Imóveis sem uso podem ser transformados em moradia para sem-teto
A dois quarteirões dos escombros
do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, localiza-se o
condomínio Dandara. O antigo prédio da Justiça do Trabalho, vazio durante dez
anos, foi totalmente reformado e entregue a 120 famílias do movimento de
Unificação das Lutas de Cortiços e Moradia (ULCM).
O Dandara foi o primeiro edifício reformado pelo programa Minha
Casa Minha Vida Entidades em São Paulo. Em 2009, o prédio vazio foi
ocupado por integrantes da ULCM que pressionaram o Governo Federal para que
houvesse uma destinação ao imóvel. A resposta veio em 2010, quando o Dandara
foi cedido pela União através de uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU),
uma das formas existentes para destinar propriedades à habitação popular.
“A nossa organização não ocupa para morar [indefinidamente]. Se tem um
prédio vazio, sem função social, a gente ocupa para criar um fato para que o
governo olhe para aquilo que está abandonado”, explica a síndica do condomínio,
Marli Baffini. Com a cessão do uso, a ULCM deixou o espaço para que as reformas
ocorressem. A readequação, chamada de “retrofit”, levou cerca de quatro anos e
custou R$ 12 milhões.
No centro do Rio de Janeiro, a Ocupação Manuel Congo, que já existe há
cerca de dez anos, também foi reformada por meio do Minha Casa Minha Vida
Entidades. O prédio, antiga sede do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS),
é hoje lar de cerca de 40 famílias do Movimento Nacional de Luta por Moradia
(MNLM).
Atualmente, a SPU lista 1.684 terrenos cedidos através da CDRU em todo
o Brasil, a maior parte em Maceió (450), em Alagoas. Há, ainda, 939 imóveis de
uso especial concedidos para moradia (CUEM) – forma de cessão gratuita de
imóveis públicos em área urbana, mais da metade (499) em Belém, no Pará.”
Segundo Danielle Klintowitz, arquiteta do Instituto Pólis –
organização não governamental que desenvolve políticas públicas na área urbana
–, o déficit habitacional poderia ser atenuado se parte dos imóveis vagos da
União fosse reaproveitada para moradia, o que ela considera obrigação
constitucional do governo brasileiro. “A Constituição fala sobre a função
social da propriedade pública e privada. Quando a União deixa esses imóveis
vagos em áreas centrais, ela está fazendo uma medida inconstitucional porque
não dá função social para os imóveis”, afirma Danielle. Na avaliação da
arquiteta, disponibilizar imóveis da União para habitação pode evitar que tragédias
como a ocorrida no Largo do Paissandú se repitam. “A gente deveria ter
um sistema mais ágil de destinação desses imóveis. O que a gente tem hoje é que
a SPU tenta cobrir o passivo de décadas”, comenta.
Na experiência de Fernanda Accioly, que trabalhou na SPU de 2010 a
2013, a transferência de imóveis da União para moradia passa por uma série de
obstáculos que vão desde a resistência de funcionários públicos à falta deorganização
de movimentos de moradia em determinadas localidades, além da recusa
de prefeituras de conduzir projetos de habitação em terrenos valorizados. “Um
grande interlocutor para essa proposta se concretizar são as prefeituras, que
muitas vezes não aceitavam que determinadas áreas bem localizadas com serviço
de infraestrutura e transporte fossem disponibilizadas para fazer habitação de
interesse social. Às vezes era preciso mudar o zoneamento ou aprovar o projeto,
e eles não se dispunham”, relembra.
Margareth Uemura, coordenadora entre 2004 a 2006 do Programa de
Reabilitação de Áreas Centrais, da extinta Secretaria de Programas Urbanos,
critica o fato de que o Minha Casa Minha Vida tenha destinado mais recursos
para empreiteiras construírem novas habitações em vez de financiar a reforma de
imóveis abandonados. “O Minha Casa Minha Vida foi um programa declaratoriamente
feito para movimentar recursos da economia destinados à empreiteiras e aos
grandes conjuntos”, avalia.
No mesmo sentido, a professora da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) Maria
Lucia Refinetti afirma que a compra de terrenos para construção de moradia pode
sair mais caro para as políticas habitacionais. “Não adianta a União se
desfazer de um imóvel público para fazer dinheiro e depois adquirir [outro
imóvel] para fazer política de habitação se precisar fazer desapropriação e
acabar pagando mais por isso”, pondera. Na avaliação de Klintowitz, outro
problema do Minha Casa Minha Vida foi a construção de moradia em áreas mal
localizadas. “Se esse programa tivesse acontecido de verdade, a gente poderia
ter produzido unidades habitacionais mais bem localizadas”, analisa.
Em
Brasília, condomínio fechado disputa terra pública
Segundo os registros da SPU, a cidade brasileira que mais possui
imóveis da União vagos para uso é Brasília. Lá, a secretaria
aponta 173 terrenos ociosos, a maioria deles, 96, na região administrativa de
Santa Maria, antiga área de assentamento de famílias de baixa renda no sul do
Distrito Federal.
Nessa região está o Residencial Santos Dumont, loteamento privado de
casas envolvido em uma disputa com a Agência de Fiscalização do Governo do
Distrito Federal (Agefis). Construído inicialmente como moradia para militares
da aeronáutica, o condomínio passou a ser residência de civis – cerca de 14 mil
pessoas vivem no local.
Em 2015, o residencial foi notificado pela Agefis por ter cercado
irregularmente o seu entorno, isolando terrenos e serviços públicos, como uma
escola e um posto policial. A Agefis ordenou a derrubada de 2 quilômetros do
cercamento, mas, contestada pelos moradores, a decisão não foi levada adiante.
Segundo a Agefis, o residencial “não é um local de prioridade de fiscalização
neste momento”. Já a administração do condomínio afirma que a cerca sempre
existiu e negou ocupar terreno público.
Além dos imóveis ociosos em Santa Maria, Brasília possui terrenos
vagos em áreas nobres do Plano Piloto, como nas asas Norte e Sul. A Asa Norte é
a campeã, com 38 terrenos vagos para uso; já na Asa Sul são seis. Fora os
terrenos, as duas asas juntas possuem 49 apartamentos vagos. Há, ainda, dois
andares em edifícios, três salas e duas residências vagas.
O segundo município brasileiro com mais imóveis vagos para uso é outra
capital: Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Na cidade, a maior parte dos
imóveis vagos são terrenos, sobretudo os lotes do Jardim Imá, área ao redor do
aeroporto e da base aérea da Força
Aérea Brasileira (FAB).
A terceira cidade na lista também fica no Mato Grosso do Sul:
Ponta Porã, na divisa do estado com o Paraguai. O município possui 112 imóveis
vagos para uso, a maioria deles terrenos vagos na Vila Militar, bairro próximo
ao centro da cidade.
Campo Grande e as cidades fronteiriças do Mato Grosso do Sul fazem do
estado um dos com mais imóveis vagos para uso entre os estados brasileiros. O
topo da lista, contudo, é ocupado por São Paulo – o estado mais populoso do
país tem 622 imóveis da União ociosos, muitos deles ex-propriedades de estatais
extintas ou privatizadas.
Os terrenos
ociosos fruto das privatizações da década de 1990
A cidade paulista com mais imóveis vagos é Araraquara, onde há 103
terrenos da União sem uso. Boa parte são lotes das antigas Rede Ferroviária
Federal (RFFSA) e Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), estatais privatizadas no
final da década de 1990 pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Extintas, as estatais deixaram para trás terrenos não apenas em Araraquara, mas
em todo o interior paulista.
Em Leme, um terreno abandonado da Fepasa chegou a ser ocupado por 120
famílias sem-teto em agosto de 2017. As famílias foram expulsas pela PM em
outubro de 2017.
Em Campinas,
um edifício e dois terrenos da antiga malha ferroviária foram cedidos pela SPU
à prefeitura, um deles para projetos habitacionais para famílias de baixa
renda.
A prefeitura de Rincão chegou a ser incluída no Cadastro Informativo
de Créditos não Quitados do Governo Federal – que limita as verbas recebidas da
União – por dívidas na compra de terrenos da Fepasa na década de
1990.
EL
PAÍS
Nenhum comentário:
Postar um comentário