Bolívar Lamounier
Pensando o impensável: o futuro com
presidencialismo e patrimonialismo
Nossa
renda anual por habitante está estacionada em torno de US$ 11 mil e por
enquanto nada sugere que consigamos aumentá-la a um ritmo superior a 3% ao ano.
Nessa toada, levaremos 23 anos para duplicá-la, alcançando o padrão atualmente
vigente nos países mais pobres da Europa meridional. Não é preciso um grande
esforço de imaginação para compreender que isso será um desastre, acarretando
uma elevação intolerável do nível de conflito social, instabilidade política
crônica e, no limite, riscos para a própria unidade nacional.
O quadro
acima esboçado agravou-se terrivelmente nos últimos anos em decorrência de
fatores que ninguém desconhece. O Estado, em tese federativo, é altamente
centralizado, sujeito a constantes apertos fiscais e pateticamente ineficiente
na condução das políticas públicas. Apesar da centralização, a disputa que
lavra entre os grupos corporativos, quase todos incapazes de enxergar um palmo
além do nariz, debilita visivelmente a capacidade política do poder central.
Ensandecidos na defesa de suas prerrogativas e corroídos internamente pela
corrupção, os três Poderes não dão sinais de recuperação. Subjacente a esse
quadro lamentável, ou pairando sobre ele, impávido e colosso, temos o demônio
histórico do patrimonialismo - o governo orientado pelos e para os “amigos do
rei” -, como ficou evidente na facilidade com que o cartel da construção levou
todo o sistema à beira da desagregação. Duas questões se impõem, portanto, de
maneira inevitável. Como chegamos a tal situação? Que saídas têm sido ou podem
ser cogitadas?
A
primeira questão pode ser esquematicamente abordada através de um retrospecto
da relação entre liberalismo econômico (capitalismo) e político (democracia
representativa). Numa ponta, os casos clássicos da Inglaterra e dos Estados
Unidos, liberais em ambos os sentidos. Na outra, a URSS e os demais países
comunistas, antiliberais em ambos os aspectos, eis que baseados na planificação
central, no partido único, na ideologia totalitária e na onipresente polícia
secreta. China e Vietnã, para ficarmos nesses dois, inventaram um novo modelo:
totalitarismo político e desregulamentação econômica. E onde fica, nessa
história, a combinação de liberalismo político sem liberalismo econômico, ou
seja, com um mercado distorcido, atrofiado e sujeito a uma sucessão, ao que
parece, interminável de intervenções arbitrárias? Fica aqui mesmo, claro: no
Brasil.
A
diferença fundamental entre o Brasil e a China é que lá a concentração do poder
político ainda se dá por meio de um partido ferreamente organizado e orientado
por uma ideologia totalitária, enquanto aqui o que temos é um onipresente
patrimonialismo, operado por uma classe política e uma burocracia arcaicas.
Pelo “Estado cartorial”, como o designava Hélio Jaguaribe, ou o “sistemão”,
como concisamente o descrevia Oliveiros Ferreira. Ao contrário do que
singelamente pensam alguns, o patrimonialismo não é uma “sobrevivência”, um
resto moribundo do colonialismo português, fadado a desaparecer graças apenas à
passagem do tempo. A verdade é que ele foi relançado e fortalecido pela
ditadura Vargas (1937-1945) e, no pós-guerra, pela tentativa de
industrialização acelerada inspirada no nacional-desenvolvimentismo. Hoje,
confrontado com um poder central em perceptível debilitação e ao mesmo tempo
hostil a uma reforma efetivamente voltada para a descentralização federativa.
De um lado, o arcabouço de que se servem os “amigos do rei”; do outro, o poder
eunuco, o belo Antônio a que se convencionou chamar de “presidencialismo de
coalizão”. Um Frankenstein tributariamente escorchante que não sabe o que fazer
com a fatia do PIB que mantém sob seu controle. Considerado esse conjunto de
fatores, não é exagero avaliar que o sistema vigente é uma ameaça à própria
democracia.
Isso tem
conserto?
Descartemos,
por óbvio, o modelo chinês. Se não temos tutano para efetivar as raquíticas
reformas que estamos discutindo há anos, é óbvio que o verticalismo e a
onipresença do PC chinês não é uma alternativa que mereça ser considerada. E
que tal a “democracia direta”? Essa, como sabemos, é a nova mania das grandes
publicações internacionais. Vários jornais europeus e mesmo publicações de
grande prestígio como Foreign Affairs e The Economist não se cansam de flertar
com essa hipótese. Observam, corretamente, que as novas tecnologias permitem
aos cidadãos se comunicar maciçamente e em alta velocidade entre si e com os
governos. Ou seja, transportar a informação tornou-se um problema banal. Mas a
operação de governar vai muito além de tomar conhecimento das demandas sociais;
seu cerne é a tomada de decisões imperativas que de algum modo as equilibre ou
equacione. E quanto a isso a teoria da democracia direta tem muito pouco a
dizer.
Suponhamos,
porém, tendo em vista o caso brasileiro, que por via de tais teorias cheguemos
a formas concretas de “empoderar” (argh!) um grande número de grupos sociais.
Estes, evidentemente, não usariam seu poder apenas para tecer loas aos
governantes de plantão, mas para pressioná-los, confrontá-los com suas
demandas, multiplicando-as até o infinito. Se em sua forma atual, claramente
oligárquica, nosso Estado é cronicamente deficitário, como iria ele manejar
esse aumento exponencial de exigências e reivindicações?
Concluindo,
direi, pois, que a saída, se existe, começa por cortar a cabeça do
Estado-camarão, privatizando seus penduricalhos empresariais e concentrando
suas energias nas áreas sociais. Instaurar, efetivamente, a Federação. E
substituir o “presidencialismo de coalizão” por um parlamentarismo
racionalizado, como o adotado no segundo pós-guerra pela Alemanha, a fim de
impedir a petrificação de impasses que acabou por paralisar a economia
brasileira.
O Estado de São Paulo
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