DAVID FERNÁNDEZ
Um nível de endividamento jamais
visto desde a Segunda Guerra Mundial ameaça inocular o veneno da próxima crise
Você e
eu estamos sentados em uma montanha
de dívida pública e privada. A cota para cada habitante do planeta é de
21.866 euros, ou 95.554 reais. Uma bola de neve gigantesca e voraz. A fatura
total chega a 164 trilhões de dólares (608 trilhões de reais), quantia
equivalente a 225% do PIB
mundial. Viver a crédito foi a saída natural da crise financeira. Os
empréstimos permitiram cobrir os desequilíbrios das contas públicas e reanimar
o crescimento. Mas convém não ultrapassar determinadas linhas vermelhas. Um
nível de endividamento jamais visto desde a Segunda Guerra
Mundial é uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento.
Argentina e Itália são dois exemplos recentes de como ressuscitam facilmente os
fantasmas mal enterrados.
“Os
altos níveis de dívida e os elevados déficits públicos são um motivo de
preocupação”, adverte o Fundo
Monetário Internacional (FMI) em seu último Monitor Fiscal. As nações
com um grande endividamento, lembra esse organismo, são mais vulneráveis a um
endurecimento das condições globais de financiamento, que poderiam dificultar o
acesso aos mercados e colocar pressão sobre a economia. “A experiência
demonstra que os países podem sofrer notáveis e inesperados choques em sua
proporção entre dívida e PIB, o que aumenta a possibilidade de haver problemas
em cadeia”, concluem esses especialistas.
A China é o país que mais
contribuiu para o aumento do volume total na última década. Mas não é o único.
As economias desenvolvidas devem o equivalente a 105% de seu PIB em média. Para
as nações emergentes, a proporção já é de 50%, uma fronteira ultrapassada pela
última vez nos anos oitenta, o que causou uma grave crise em muitas delas. “Por
enquanto, o crescimento global é robusto, o desemprego está
diminuindo e as taxas de juros continuam baixas. Todo isso faz com que o
aumento da dívida seja manejável, mas se houvesse uma desaceleração inesperada
ou um rápido aumento do preço do dinheiro, esta situação agradável se apagaria
instantaneamente”, afirma Pierre Bose, estrategista do Credit Suisse.
O
crédito cria um vício extremo. Por isso, o maior risco é a grande velocidade
com a qual se chegou ao nível atual. Mais de um terço das economias avançadas,
por exemplo, devem no mínimo o equivalente a 85% do tamanho de sua economia,
três vezes mais do que no ano 2000. Os Governos, ao pisar no acelerador do
crédito, resistiram à recessão, mas poderiam estar hipotecando o futuro
econômico de seus países. “Com o tempo, a dívida deixa de estimular a
atividade. Cada vez se necessita de mais acúmulo de empréstimos para gerar um
ponto percentual adicional no PIB. O crescimento impulsionado pela dívida pode
ser divertido no início, mas simplesmente traz para o presente o consumo
futuro, do qual sentiremos falta depois”, diz Alfredo Álvarez-Pickman,
economista-chefe do Key
Capital Investment.
Momento delicado
A bolha
chega, além disso, em um momento muito delicado. A Reserva Federal dos EUA começou
a reduzir seu saldo − já não compra títulos públicos e amortiza os que tem no
vencimento −, medida que vem acompanhada por aumentos das taxas de juros. O
Banco Central Europeu (BCE) continua comprando dívida soberana, mas planeja
fechar a torneira em setembro e seguir o caminho de seu homólogo americano. O
plano traçado pelos dois organismos prevê um endurecimento monetário
progressivo e moderado. Para que se materialize, é preciso que se cumpra a
outra parte da equação: que os preços continuem sob controle.
“A inflação tem sido
modesta, mas se voltasse de forma súbita colocaria os bancos centrais em uma
encruzilhada. Teriam de decidir entre deixar que os preços continuassem
subindo, algo que vai contra sua natureza, ou elevar os juros para combatê-la,
o que encareceria a carga de juros de Estados, empresas e famílias”, ressalta
Bart Hordijk, analista do Money Europe.
Este ano
marca o décimo aniversário da quebra do Lehman
Brothers, tiro de largada da crise financeira que foi o prelúdio
da Grande Recessão. No mercado, começa a se espalhar a teoria de que já não
há ciclos econômicos, e sim ciclos de crédito, e que por isso convém não perder
de vista o contador da dívida. Alguns especialistas, entretanto, recomendam
prudência, pondo os dados em perspectiva. “Os níveis atuais de endividamento
são autofinanciados e baratos. Essa é uma diferença importante em relação à
situação da dívida global e da economia uma década atrás”, aponta Stéphane
Monier, diretor de investimentos do banco Lombard Odier.
A
economia mundial já vive um longo período de crescimento. Embora ninguém
preveja uma mudança de tendência por enquanto, a ideia de que poderíamos estar
nas últimas fases do ciclo ganha força. Quando chegasse a temida desaceleração
econômica, o melhor que poderia acontecer a um governo seria ter margem para
aumentar os gastos públicos, reduzir impostos e baixar os juros. Essas
ferramentas contracíclicas, no entanto, são agora uma quimera. Por isso,
instituições como o FMI estão pedindo aos países que construam, por meio da
redução do déficit, um colchão para quando os maus tempos chegarem. “Os
governos têm pouca margem fiscal devido à situação atual da dívida. Além disso,
do ponto de vista monetário, os bancos centrais iniciaram o caminho do
endurecimento. Devido à ausência desses estabilizadores tradicionais, a próxima
recessão será mais pronunciada do que em ocasiões anteriores”, alertam os
especialistas da Carmignac.
Como os
problemas nunca vêm sozinhos, à elevada dívida pública é preciso somar a também
delicada situação do endividamento privado, que dobrou em uma década e já
alcança 120% do PIB mundial. “O endividamento das famílias é um problema
principalmente quando é o resultado de um boom no mercado imobiliário”,
explica Stefan Hofrichter, economista-chefe da Allianz GI. “Chama a atenção o
fato de que o aumento da dívida privada se deva em grande medida à evolução
dessa dívida em países pouco afetados pela crise financeira, como Canadá,
Suécia, Noruega,
Austrália, China, Brasil, Turquia e Índia. Muitos deles são precisamente os que
tiveram o maior aumento nos preços da moradia dos últimos dois anos”,
acrescenta Hofrichter.
Os
riscos de uma dívida alta têm tradicionalmente pairado sobre as economias mais
fracas. Essa tendência não mudou, mas foi reforçada pelo maior endividamento
atual e pelas mudanças em sua composição durante os últimos anos. O primeiro
perigo para o bloco emergente é de refinanciamento, já que ganharam peso os
empréstimos não vinculados a concessões, cujos prazos de vencimento são mais
curtos. Esses países também são mais sensíveis à retirada de fluxos de
financiamento porque os investidores estrangeiros são os principais
compradores. Além disso, são nações muito mais expostas à variação das taxas de
câmbio: um terço da dívida dos países em desenvolvimento é denominado em moeda
estrangeira, peso que aumenta para dois terços no caso daqueles de menor renda.
“A natureza do problema da dívida não mudou. É um problema que afeta mais o
mundo emergente do que o desenvolvido, porque a confiança do mercado em sua
capacidade de pagamento é menor e, além disso, a situação pode mudar
bruscamente, como vimos recentemente com o título argentino com prazo de 100
anos”, explica Agnieszka Gehringer, analista do Instituto Flossbach von Storch.
Mas a
dívida dos países emergentes não é a única que causa preocupação. As atenções
começam a se voltar para a maior economia do mundo. O aumento dos gastos em 150
bilhões de dólares (156 bilhões de reais) − 0,7% do PIB − por ano durante os
próximos dois anos e a redução de impostos aprovada pelo Governo Trump levarão
o déficit orçamentário dos EUA para mais de 1 trilhão de dólares (3,7 trilhões
de reais), mais de 5% do PIB. Essa situação e também as maiores necessidades de
financiamento farão com que a proporção da dívida em relação ao PIB seja de
117% em 2023, segundo cálculos do FMI. “No curto prazo, essas medidas serão
positivas para os investidores, já que permitirão que o mercado continue em
alta enquanto os EUA continuarem puxando a economia mundial. No entanto, a
dívida pode se transformar em um assunto a ser acompanhado de perto quando a
atividade do país se desacelerar e a proporção de endividamento subir mais do
que o previsto”, indica Susan Joho, economista do Julius Baer.
Velhos fantasmas
A crise
da dívida europeia colocou o euro contra as cordas há seis anos. Desde então,
os esforços orçamentários dos governos e a atitude decidida do BCE baixaram a
tensão e provocaram certa convergência dos títulos públicos, que pouco a pouco
recuperaram seu status de ativos quase livres de risco, permitindo aos países
financiar a recuperação com dívida barata. No entanto, os riscos não
desapareceram, como se pôde comprovar nas últimas semanas com a disparada do
prêmio de risco italiano devido à encruzilhada
política em que se encontra o país. “Se a economia se desacelerar antes que
se consiga melhorar as contas públicas, não está descartada a possibilidade de
aumento dos custos de financiamento para as nações europeias mais endividadas.
Reviver uma situação parecida com a de 2012 é possível se o mercado puser
ênfase na sustentabilidade fiscal”, ressalta Chris Iggo, responsável por renda
fixa na Axa Investment Managers.
A
maioria dos especialistas consultados aponta as políticas monetárias muito
frouxas como o principal motor do aumento da dívida pública no mundo. “Quando
os bancos centrais reduzem as taxas de juros a níveis extremos, seu único
objetivo é incentivar o mundo a pedir emprestado”, recorda Álvarez-Pickman. Ao
mesmo tempo, a promoção dessas medidas heterodoxas causou uma mudança na
percepção que se tem sobre o crédito. “Houve mudanças estruturais e de conduta
na dinâmica do endividamento. Tomar emprestado passou a ser algo mais aceito
culturalmente devido às políticas governamentais orientadas a injetar mais
dinheiro na economia”, assinala um especialista da Brandywine Global, filial da
gestora de ativos Legg Mason.
Outro
fator-chave na hora de explicar o maior endividamento é a demografia. “Os
países desenvolvidos enfrentam o envelhecimento de suas populações. Cada vez há
mais aposentados do que pessoas ativas, e isso significa menores receitas
fiscais. Quando um governo arrecada menos, mas seus compromissos de gastos são
maiores, uma solução fácil para o problema é a emissão de mais dívida”, afirma
Christopher Gannatti, diretor de análise da WisdomTree. Nesse sentido, a
proporção da dívida em relação ao PIB é consideravelmente mais alta quando se
incluem os compromissos de gastos com aposentadorias e saúde. Nesse caso, o
endividamento médio nos países avançados quase dobra, chegando a 204% do PIB, e
nos emergentes ele dispara para 120%.
Soluções
O que se
pode fazer para reduzir os níveis de dívida? A geração de um crescimento maior
e sustentado é uma das possíveis soluções, já que ao aumentar o tamanho da
economia se dilui em parte o peso dos empréstimos sobre ela. “O crescimento é o
principal assassino da dívida. A melhora da atividade, isto sim, deveria vir
pelo lado da oferta. Este tipo de crescimento se obtém com reformas, reformas e
mais reformas. Um exemplo concreto é a melhora no acesso à educação e em sua
qualidade. Ter pessoas mais bem formadas significa aumentar a produtividade no
futuro”, sustenta Witold Bahrke, responsável por estratégia macroeconômica da
Nordea AM.
Outra receita básica, mas difícil de
levar a cabo, é não gastar mais do que se arrecada. O controle do déficit público é
fundamental para livrar as economias de seu vício em dívida. “Os governos, as
famílias e as empresas simplesmente têm de deixar de gastar além de suas
possibilidades.
Nesse sentido, temos o exemplo de Austrália e Suécia, que adotaram medidas
prudenciais para evitar o superaquecimento de seus mercados imobiliários”,
comenta o especialista da Brandywine. O equilíbrio orçamentário também é
considerado crucial por Pierre Bose, do Credit Suisse: “No curto prazo, é
improvável que haja quedas nos gastos públicos e impostos mais altos, já que o
crescimento em muitas economias ainda é fraco. No entanto, há muito poucos
países que estejam gerando superávit”.
Tanto as
reformas estruturais como as decisões que acarretam mudanças nas políticas de
gastos exigem vontade política. Esse é o maior obstáculo que os especialistas
veem para apostar nelas como uma receita factível para reduzir o alto
endividamento. “Se os governos reduzissem seus gastos, haveria uma necessidade
menor de emitir nova dívida. Levando em conta alguns resultados eleitorais
recentes e o atual clima político, é cada vez mais evidente que é muito difícil
pôr em prática essa abordagem do problema”, reconhece Christopher Gannatti, da
WisdomTree.
Outra
medida tradicional para reduzir o montante da dívida é gerando inflação. A
maioria dos empréstimos é feita em termos nominais. Portanto, um aumento dos
preços ajudaria a reduzir o endividamento. Neste caso, porém, há vários
problemas. O primeiro é que, como se viu depois de anos de injeções
multimilionárias na economia, gerar inflação já não é tão simples. Além disso,
com o Índice de Preços ao Consumidor ocorre o mesmo que com o jogo do sete e
meio (em que os jogadores tentam somar esse total com as cartas ou chegar o
mais perto possível, mas não podem ultrapassá-lo): convém não ficar aquém nem
passar da meta. Uma escalada desenfreada pode forçar aumentos das taxas de
juros mais rápidos que o desejável. E, finalmente, não serve qualquer aumento
de preços. “Uma inflação maior só é útil se resulta de um aumento dos salários.
Se for assim, haverá maior demanda e crescerão tanto o PIB nominal como a
arrecadação fiscal. Por outro lado, se essa inflação for produto apenas de
fatores externos, como a energia, não ajudará muito se o que se pretende é
reduzir o peso da dívida”, explica Azad Zangana, economista da Schroders.
EL PAÍS
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