Cristina Esguerra
Inflação em quatro dígitos, senha
para ir ao supermercado, escassez de produtos básicos, onda de violência e
surtos de doenças como sarna: o cotidiano dos venezuelanos se tornou um
desafio.
A
Venezuela, país com 30 milhões de habitantes, tem as maiores reservas de
petróleo do mundo, mas vem sofrendo uma maciça e severa recessão econômica
desde que os preços globais da commoditty caíram drasticamente, há três anos.
O
governo não publica dados relativos à inflação há mais de um ano. Mas o Fundo
Monetário Internacional (FMI) previu uma taxa de 2.350% para 2018; e
a Assembleia Nacional estimou em mais de 2.500% a de 2017.
Numa
tentativa de amortecer o efeito da inflação, no fim de dezembro o governo
venezuelano implementou o sexto aumento de salários e aposentadorias em um ano,
elevando o salário mínimo em 40%.
"De
manhã, vê-se pessoas bem vestidas procurando restos no lixo antes de ir ao
trabalho", diz Miguel Ángel Hernandez, um estudante de mestrado de 24
anos.
"Com
um salário como o meu, as pessoas costumavam ser capazes de comprar carros e
pagar uma parcela do financiamento da casa. Eu não consigo nem comprar um par
novo de sapatos. Enfrentar essa realidade destrói as perspectivas de qualquer um",
continua.
"A
inflação está 'comendo' quase tudo", diz um advogado de 38 anos que
trabalha numa agência pública e pediu anonimato. "Hoje em dia, eu vou ao
supermercado para comprar xampu, e o preço de uma unidade é quase o que eu
ganho em duas semanas. Ultimamente, tem havido racionamento de açúcar. Achei um
saco, na semana passada, por 105 mil bolívares. Mas eu ganho só 650 mil
bolívares por mês."
Cristina
Carbonell é uma advogada que trabalha na ProVene, uma organização que oferece
conselhos legais de graça. Ela confirma que a vida cotidiana na capital se
tornou um desafio.
"O
número da nossa carteira de identidade determina em que dia da semana podemos
ir ao supermercado. Mas de produtos básicos como leite, você compra apenas dois
litros. Na semana passada, não tive água corrente por três dias. A escassez
contínua tem causado surtos de fungos e sarna – e eu estou falando de
Caracas", indigna-se.
Emergência médica
No final
de dezembro, houve protestos nas favelas de Caracas, desencadeados por entraves
em lojas financiadas pelo Estado, onde 20 alimentos básicos ficam disponíveis a
preços subsidiados. Manifestantes furiosos queimaram lixo e entoaram coros de
"Estamos famintos" enquanto protestavam contra a falta de comida.
A
Venezuela não tem as reservas em moeda estrangeira necessárias para importar
mantimentos e artigos de primeira necessidade. Várias agências de rating já
classificaram o país sul-americano como parcialmente falido.
Lorena
Surga, fundadora do movimento de ajuda humanitária Angeles Invisibles (Anjos
Invisíveis), trabalha com médicos na Colômbia que compram remédios de três
hospitais venezuelanos e também doam suas amostras de medicamentos.
"Aumentou
a taxa de natalidade. Não há pílulas anticoncepcionais. O número de pessoas
afetadas por doenças sexualmente transmitidas aumentou porque não há
preservativos. Pacientes de câncer estão morrendo porque não há remédios
suficientes para que eles completem os seus tratamentos. Alguns estão usando
medicamentos vencidos", afirma.
Violência policial
Em maio
de 2017, milhares de venezuelanos foram às ruas para protestar contra
a crise humanitária e as mudanças políticas depois que o presidente Nicolás
Maduro retirou poderes do Congresso dominado pela oposição.
"Marchei
várias vezes, e a cada dia as forças policiais eram mais repressivas",
lembra Cristina Carbonell. "Um policial atirou no meu cunhado à
queima-roupa com um projétil de borracha. Eu não podia deixar o escritório para
ir ajudá-lo porque a polícia estava atirando nos transeuntes", continua.
Em
novembro de 2017, as ONGs Human Rights Watch (HRW) e Fórum Penal publicaram umrelatório
conjunto sobre as violações de direitos humanos cometidas pelas Forças
Armadas venezuelanas durante os protestos de maio e os meses seguintes. Gás
lacrimogêneo, jatos d'água e armas de ar comprimido foram usadas
sistematicamente. As balas de borracha, em muitos casos, eram recheadas com
bolas de gude, estilhaços de vidro ou parafusos metálicos para causar
ferimentos e dor.
"Os
protestos foram reprimidos mais brutalmente que antes", diz Tamara
Taraciuk, pesquisadora sênior da HRW Americas. "Basta olhar os números: em
2014, 43 pessoas morreram em protestos e 800 ficaram feridas [na Venezuela]. Em
2017, 124 pessoas morreram e duas mil ficaram feridas", enumera.
O
relatório da HRW também menciona vários casos de tortura em centros de
detenção. Diz que homens mulheres e adolescentes foram submetidos a choques
elétricos, espancamentos cruéis, abusos sexuais, e asfixia e detidos junto com
dezenas de outras pessoas em minúsculas celas sem ventilação, tendo acesso a
apenas um mínimo de água e comida.
Êxodo e criminalidade
Alguns
sociólogos estimam que dois milhões de venezuelanos já deixaram o país desde
que Hugo Chávez, morto em 2013, assumiu o poder em 1999, embora sua figura seja
controversa no governo Maduro.
"As
pessoas estão trancando suas casas e saindo com o que podem carregar", diz
Lorena Surga.
A taxa
de criminalidade também está aumentando, de acordo com o Observatório
Venezuelano da Violência (OVV), uma organização criada pelo Laboratório
Venezuelano de Estudos Sociais em 2005.
O
Observatório diz que 28.479 pessoas foram mortas em 2016, o que se traduz num
aumento na taxa de homicídios de 91,8 por cem mil habitantes em todo o país. Em
Caracas, a taxa é ainda maior, com o OVV dizendo que houve 140 homicídios por
cem mil habitantes em 2016.
Até
mesmo o número oficial de homicídios de 2016, divulgado pela Procuradoria Geral
venezuelana, embora seja muito mais baixo que o do OVV, ainda está entre os
mais altos do mundo, com 70,1 por cem mil habitantes.
"Sinto
que estou vivendo numa prisão. Vou de casa para o trabalho para a faculdade e
preciso voltar antes das oito da noite porque é muito perigoso. Até agora, a
luta do governo contra gangues criminosas falhou", diz o estudante
Hernandez.
"Há
um ano, comecei um programa de mestrado com 36 colegas", conta.
"Agora, somos só 12. Alguns deixaram o país, e outros abandonaram o curso
porque o semestre passou a custar 497 mil bolívares (antes, eram 29 mil
bolívares)", continua.
A
conclusão de Hernandez é que, no ano que vem, talvez tenha que emigrar
("para o Peru ou para a Argentina"): a sensação é de que ele não tem
alternativa.
DW -
Deutsche Welle
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