Fernanda
Odilla e Nathalia Passarinho
O principal
ponto de controvérsia em julgamentos importantes de corrupção, como do mensalão
e aquele que confirmou a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
na última quarta-feira, é a necessidade ou não de provas diretas sobre o
suposto recebimento de propina por um agente público e o uso do cargo para
beneficiar quem fez o pagamento.
Corrupção, por natureza, é um crime que se mantém nas sombras. E,
quanto mais alta a posição ocupada pela pessoa julgada, menores são as chances
de que deixe rastros óbvios dos crimes cometidos. Por isso, um conjunto de
provas, que incluem delações e relatos de testemunhas, acaba sendo usado para
juntar as peças do quebra-cabeça.
E essa dificuldade em comprovar casos de corrupção não é exclusividade
brasileira. Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, encontrar provas
diretas de propina, especialmente quando há políticos e empresários poderosos
envolvidos, é um "desafio global".
Os mais críticos, contudo, afirmam que interpretações baseadas em
evidências indiretas podem ferir a presunção de inocência e trazer riscos ao
devido processo legal.
"Parte da dificuldade de análise acadêmica e também jurídica é
justamente a coleta de dados. No caso da corrupção, o desafio é coletar
evidências de links causais do tipo A pagou B que passou para C que, por sua
vez, se beneficiou de algo", observa o pesquisador brasileiro Armando
Martins de Castro, da universidade britânica London School of Economics (LSE),
Enquanto pesquisadores normalmente usam medidas que se baseiam na
percepção da corrupção ou experimentos para medir níveis de tolerância ou como
as pessoas se comportam em determinadas situações, policiais, procuradores e
juízes têm se fiado cada vez mais no relato de colaboradores para tentar
coletar indícios.
Rede complexa
de corrupção
O professor Alamiro Velludo Salvador Netto, do Departamento de Direito
Penal da Universidade de São Paulo (USP), destaca que as práticas de corrupção
ganharam sofisticação ao longo do tempo.
Grandes corporações, com divisão de tarefas internas, passaram a
adotar práticas corruptas, inclusive com ramificações no exterior, aponta ele.
"Hoje o fenômeno da corrupção não é só aquele do particular com o
funcionário público, com uma repartição clara de benefícios. Temos grandes
empresas com divisão de tarefas. E, na medida em que essas empresas são
grandes, há também uma infiltração internacional", destaca.
"É muito diferente do pagamento ao guarda de trânsito. A
corrupção envolve, às vezes, compras internacionais, obras internacionais, e
tudo isso leva a uma dificuldade maior na identificação dos atores."
O pesquisador Martins Castro, da London School of Economics, destaca
que esquemas "mais sofisticados de corrupção têm intermediários, que usam
offshore (empresa ou conta aberta em um território com menor tributação) e
contas secretas para receber e fazer pagamentos", o que dificulta
identificar os reais beneficiários do dinheiro e os mandantes.
"Se não tiver um colaborador ou um denunciante, fica quase
impossível rastrear empresas de fachada usadas normalmente para fazer
transferências em poucas horas e em jurisdições onde não há obrigatoriedade de
se revelar quem são os titulares das contas ou o dono do dinheiro",
completa o pesquisador, que também leciona no departamento de administração da
LSE.
'Nenhum
político inteligente deixa rastro'
Para Matthew M. Taylor, professor de política da American University,
em Washington, em "lugar nenhum do mundo é fácil comprovar corrupção entre
autoridades graduadas".
"Nenhum político inteligente que pratique corrupção permitiria
deixar rastros claros do crime," diz Taylor, também pesquisador do Woodrow
Wilson Centre, na capital americana.
Por isso, alguns tribunais deixaram de exigir a existência comprovada
de um "ato de ofício" concreto por parte do agente público em troca
da vantagem indevida que recebeu.
Isso aconteceu no julgamento do mensalão, em 2012, quando o Supremo
Tribunal Federal (STF) fixou o entendimento de que a oferta da vantagem e o
aceite por parte do funcionário público já caracterizam o crime de corrupção.
Taylor defende que, na falta de uma prova que aponte um "link
direto", é possível justificar uma condenação a partir da existência de
uma "preponderância" de evidências que apontem para o crime de
corrupção.
"É importante compreender que os julgamentos de casos de
corrupção, muitas vezes, precisam se fiar numa preponderância de evidências.
Não há, normalmente, um quid pro co, uma clara troca de um benefício por
outro, mas sim evidências que, juntas, apontam para a ocorrência do
crime", diz.
Para o professor Alamiro Velludo Salvador Netto, da USP, no caso do
Brasil, seria necessária uma mudança no Código Penal brasileiro para permitir
condenações sem a comprovação de um ato concreto do agente público direcionado
a retribuir a propina.
"Esse tipo de construção demanda uma alteração legislativa. No
caso brasileiro, temos dificuldade em fazer isso, porque os dispositivos que
tratam de corrupção fazem referência direta aos atos de ofício", diz o
especialista em Direito Penal, que discorda da interpretação atual do Supremo.
"Outros países já superaram isso na legislação. Compete ao
Parlamento rever se, para tornar efetivo o combate da corrupção, é adequado ou
não suprimir o ato de ofício ao condenar", defende.
Ocultação
do dinheiro
Outro argumento usado pela defesa do ex-presidente Lula no processo em
que foi condenado é o de que o Ministério Público não foi capaz de identificar
o chamado "caminho do dinheiro", ou seja, a relação entre o dinheiro
usado pela OAS para as reformas do tríplex e recursos desviados de contratos da
Petrobras.
Essa dificuldade em especificar claramente o "trajeto" e
origem dos recursos usados em trocas de propina existe em grande parte das
investigações de esquemas de corrupção no Brasil e no mundo, apontam os
especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Sem citar o caso do ex-presidente, Martins de Castro, da London School
of Economics, explica que dificilmente dinheiro da corrupção aparece como tal
na contabilidade das empresas.
"O dinheiro da corrupção normalmente não é colocado em balanço de
empresa. Algumas empresas da Lava Jato, por exemplo, afirmaram que pagavam
propina por meio de consultorias", diz o pesquisador, que se dedica a
pesquisar corrupção, com foco nas empresas, mas sempre observando a interação
do mundo privado com o público.
Além disso, ressalta ele, assumir o envolvimento com casos de
corrupção compromete a imagem das empresas e assusta acionistas. Isso seria
mais um motivo para manter oculta ou tentar dar fachada legal a transações
ilícitas.
O uso de
delações como meio de prova
Na Lava Jato, a atuação do Ministério Publico e do Judiciário também
tem sido alvo de polêmicas pelo amplo uso de delações de investigados
interessados em reduzir as próprias penas.
O ex-procurador italiano Raffaele Cantone, que atuou na investigação
da máfia Camorra, destaca que, no crime de corrupção, normalmente não há
"conflito de interesses" entre os criminosos envolvidos. Portanto, as
provas costumam ser eficientemente ocultadas, o que torna o mecanismo da
delação essencial para a investigação, segundo ele.
"A descoberta da corrupção só surge através desses mecanismos (de
colaboração), porque, por sua natureza, não há conflito de interesses que possa
tornar esse crime público", diz Cantone, que é atualmente presidente da
Autoridade Nacional Anticorrupção da Itália, órgão administrativo responsável
pela supervisão das medidas de prevenção.
"A corrupção é baseada na omertà (o silêncio cúmplice
típico da máfia). Se não criarmos uma vantagem para quem optar por colaborar,
enviamos a mensagem ao corrupto de que vale à pena tentar. Como ganhamos da
máfia na Itália? Através do sistema de colaborações. Os criminosos passaram a
não se sentir mais invencíveis. É uma escolha utilitária, mas
fundamental."
É possível
confiar no delator?
O professor de Direito Penal da USP Alamiro Velludo Salvador Netto
também destaca o caráter "secreto" do crime de corrupção.
"Na medida em que eu não tenho uma vítima concreta, todas as
pessoas que participam do delito estabelecem uma lógica comum de
ocultá-lo."
As delações, portanto, servem como instrumento para estimular a quebra
desse "contrato de sigilo". Mas, para Netto, a colaboração de
suspeitos só serve como ponto de partida para as investigação e para facilitar
a obtenção de provas, não para embasar condenações.
"Não nego que é um meio de obtenção de prova útil. O problema é
saber até que ponto a palavra do delator tem força. Ele vai receber benefícios
na exata medida da informação que der. Então, no afã da obtenção de maiores
benefícios, ele vai tentar falar tudo o que sabe e talvez até o que não
sabe", argumenta.
Salvador Netto defende ainda que as delações sejam oferecidas de forma
estratégica, com a finalidade de penalizar os chefes das organizações
criminosas. Para ele, a possibilidade de firmar delações está sendo oferecida
de forma indiscriminada no âmbito da operação Lava Jato.
"Vejo que as colaborações são oferecidas para um número
indistinto de pessoas. Às vezes, as mesmas operações têm diversos
colaboradores. Não se sabe nem mais quem é réu e quem é colaborador. E os
benefícios oferecidos ultrapassam os previstos na lei."
Provas no
caso Lula
No caso do julgamento de Lula, a defesa do ex-presidente argumentou
que o Ministério Público baseou as acusações em delações de colaboradores,
principalmente de ex-executivos da construtora OAS.
O petista é acusado de receber, a título de propina, um apartamento
tríplex no Guarujá. Em troca, teria atuado para beneficiar a OAS em contratos
com a Petrobras.
Para o professor Taylor, da American University, os desembargadores do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que condenaram Lula a 12 anos e um mês
de prisão, se dedicaram em demonstrar que basearam a decisão em um conjunto
variado de evidências que se complementam e que incluem provas documentais,
relato de testemunhas e delações.
"Não há um quid pro quo, uma troca clara de um benefício
específico pelo apartamento. Mas o tribunal procurou responder a isso mostrando
que havia uma preponderância de evidências de diferentes fontes, incluindo
documentos relacionados ao apartamento e a nomeação de diretores da
Petrobras", diz o pesquisador, que é autor de três livros sobre corrupção,
sistema judicial e política brasileira.
O professor Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas
Gerais, salienta que a coleta de evidências relacionadas a crimes de corrupção
tende a ser mais complexa, justamente pela natureza oculta das transações.
"Em diversos casos você não tem a prova material, mas o conjunto
probatório aponta para uma mesma direção", avalia o professor, que pesquisa
e já organizou livros sobre corrupção.
Na avaliação de Avrizter, contudo, isso não aconteceu no caso do
ex-presidente. Ao contrário do que pensa Taylor, para o professor da UFMG
"não existe um conjunto probatório para uma direção" que aponte que o
tríplex foi entregue a Lula e reformado para atender a exigências dele como
pagamento de propina.
Novas
discussões
Na avaliação de Martins de Castro, a Lava Jato em alguns casos tem
adotado determinados posicionamentos similares ao chamado "direito
comum", ou "common law", que teve origem na Inglaterra.
No direito inglês, um juiz se baseia na jurisprudência, ou seja, em
interpretações de decisões anteriores, e em costumes comuns. As decisões são
tomadas por um juiz por meio da troca de argumentos e provas apresentados por
defesa e acusação, sem a necessidade de ter normas pré-definidas escritas.
O sistema jurídico adotado pelo Brasil é diferente. Chamado de
"civil law", segue leis e uma série de códigos e regras escritas.
Assim, o que não está especificado no texto não pode ser tido como ilegal.
No caso de corrupção, o Código Penal brasileiro tem, segundo
especialistas, uma descrição restrita. Pelo texto da lei, limita-se na forma
passiva a solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
vantagem ou promessa de vantagem indevida. E, na forma ativa, oferecer ou
prometer vantagem indevida a funcionário público.
"Julgamentos como o do Lula abrem caminho para novas discussões
tanto no Legislativo quanto no Supremo sobre a forma como se segue e interpreta
as leis no país", afirma Martins de Castro, dizendo que ao aplicar
elementos do "common law" em países como o Brasil pode gerar
insegurança jurídica.
Com colaboração de Alfredo Spalla, em Roma.
BBC Brasil em Londres
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