Cristiano Romero
Em Brasília, ninguém representa os
pobres e os interesses difusos
Certa
feita, uma jornalista se aproximou do economista Luiz Guilherme Schymura,
presidente do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, e perguntou o que
ele achava da necessidade de corte dos gastos públicos e da implantação no
Brasil do "Estado mínimo". Sem pestanejar, Schymura respondeu: "Você
está fazendo a pergunta à pessoa errada. Eu tive condições de estudar e ter
hoje um doutorado. Meu escritório na FGV é grande, tem ar-condicionado e vista
para o Pão de Açúcar. Eu não uso quase nada dos serviços públicos. Você deve
fazer essa pergunta a quem precisa do Estado".
Há quem
veja na resposta de Schymura um viés antiliberal ou até mesmo um deboche - o
Estado brasileiro está quebrado e o gasto público precisa, sim, ser reduzido.
Não é ironia do economista: políticas públicas só dão certo se a torcida do
Flamengo for ouvida antes. Ademais, o presidente do Ibre teve irretocável
formação liberal - graduação na PUC do Rio, mestrado e doutorado na FGV, onde,
além de presidir o mais antigo "think tank" liberal do país, dá
aulas.
Especialista
em concorrência, ele assumiu o comando da Anatel em abril de 2002, último ano
do governo Fernando Henrique Cardoso, e foi demitido em 2004 pelo então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais de um ano antes do fim do mandato. A
saída foi ruidosa - o governo do PT não admitia a independência dos órgãos
reguladores, instituída por lei na gestão FHC, depois de o Congresso aprovar o
fim dos monopólios estatais. Talvez, ali, vendo de perto a operação de um
governo de esquerda, Schymura tenha começado a entender a complexidade brasileira.
Tom
Jobim dizia que "o Brasil não é para principiantes". Como economista,
Schymura diz - aí, sim, com uma boa dose de ironia - que a solução dos
problemas está na aritmética. Hoje, com exceção de setores do funcionalismo
público, todos sabemos que o país tem um sufocante déficit nas contas da
Previdência Social e das aposentadorias dos servidores públicos. Negar a
existência do buraco é equivalente a dizer que o aquecimento global é uma
ficção criada pelos países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres.
Os
gastos com aposentadorias e pensões já consomem 57% das receitas da União. Se
nada for feito, a conta chegará a 80% do Produto Interno Bruto (PIB) em dez
anos, justamente quando o bônus demográfico (a existência de mais trabalhadores
na ativa do que aposentados) estará se esgotando. Na entrevista
arrasa-quarteirão que concedeu ao Valor, publicada na última sexta-feira,
Schymura observou que, aplicando-se a solução aritmética, bastaria matar os
idosos para resolver o problema previdenciário. Depois disso, a economia
cresceria 10% ao ano.
"Isso
é aritmética, não é o mundo", adverte Schymura. A alusão, claro, é às
soluções técnicas que, mesmo formuladas de maneira brilhante, são forjadas por
economistas dentro de gabinetes em Brasília. Esta é uma boa pista para se
entender por que muitas leis e políticas públicas no Brasil não saem do papel.
É preciso ir além da aritmética: para darem certo, mudanças nas regras do jogo
precisam ser pactuadas na sociedade. Sem isso, tornam-se letras mortas.
O
problema fiscal brasileiro é gravíssimo. Desde 1991, os gastos da União
crescem, em média, 6% ao ano em termos reais, isto é, descontada a inflação. Em
algum momento, essa pirâmide ia desmoronar. A ex-presidente Dilma Rousseff
resolveu dar um empurrãozinho ladeira acima ou abaixo, a depender da
perspectiva de quem observa - entre 2008 e 2015, quando ela mandava no Planalto
Central, a despesa avançou 50% em termos reais. Como as políticas de Dilma
jogaram o país numa longa recessão, no mesmo período as receitas cresceram
apenas 15% e a diferença foi coberta com dívida.
Neste
momento, o governo não consegue baixar o déficit primário (que não considera o
gasto com juros) abaixo de 2,5% do PIB. Se nada for feito, a dívida, que vem
crescendo à ordem de dez pontos percentuais de PIB por ano, tornar-se-á
inadministrável. Já vimos esse filme em 1982, 1987, 1990, quando houve o
confisco das contas bancárias, um congelamento forçado da dívida pública. O
resultado foi hiperinflação, baixo investimento e crescimento, desemprego etc.
Diante
dessa tragédia, Schymura recusa-se a pensar apenas como um técnico que precisa
achar solução para um problema econômico. Sua preocupação é o teto de gastos
inscrito na Constituição pelo governo Temer. Por essa regra, a despesa da União
não poderá crescer em termos reais durante dez anos. O problema é que vinha
subindo 6% acima da inflação. Como alguns gastos, como o da Previdência, é
obrigatório e cresce de maneira vegetativa, fica ainda mais difícil ficar
dentro do teto.
Que setor
da sociedade vai ceder para que a União se ajuste ao teto? Há o consenso, diz
Schymura, da necessidade de um ajuste fiscal, "mas desde que o ônus seja
do outro". Como não há acordo, até porque geralmente esse tipo de medida
não é negociado antes com os segmentos afetados, o risco de crise institucional
nos próximos dois anos é considerável. Como as punições pelo não cumprimento do
teto recairão sobre o funcionalismo e os aposentados, a chance de o assunto
terminar na Justiça é grande.
Para
Schymura, o problema é institucional: Brasília, como Washington e outras
capitais de nações democráticas, é dominada por grupos de interesses
específicos. Uma olhadela no orçamento de isenções tributárias e nas políticas
públicas é suficiente para saber quem são os donos do poder. É bom que se diga
que esses estão representados por todos os extratos da pirâmide social, com
exceção dos pobres.
Durante
os oito anos em que comandou a Receita Federal, Everardo Maciel, desabafava,
depois de gastar muita energia tentando conter ataques à renda nacional:
"Pobre não tem representante em Brasília". É o que Schymura destaca
como "interesses difusos": ninguém os defende, a não ser, os
populistas de esquerda e direita, que costumam dar esmola aos desfavorecidos, em
vez de adotar políticas que os emancipem.
O teto é
uma medida radical e emergencial. O presidente do Ibre acha, apenas, que ele
não será cumprido e a solução do problema fiscal será dada, mais uma vez na
história do país, pela explosão da inflação. Sendo assim, novamente, o grosso
da conta será pago por quem não tem representantes no Planalto Central: eles,
os pobres.
Valor
Econômico
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