Editorial
Os constituintes de 1988 decidiram colocar um limite à
irresponsabilidade fiscal dos governantes: escreveram no texto constitucional
que os governos estaduais, municipais e federal estavam proibidos de realizar
operações de crédito que excedessem o montante das despesas de capital, que são
os investimentos, as inversões financeiras e as amortizações da dívida. Não era
mais possível, portanto, contrair dívidas para pagar gastos correntes, como,
por exemplo, salários de servidores, benefícios assistenciais e previdenciários,
conta de luz e água, entre outros.
A esse dispositivo foi dado o nome de "regra de ouro"
das finanças públicas. Os constituintes repetiram na Constituição uma regra
que, então, era adotada por boa parte dos países desenvolvidos. A ideia era que
o endividamento público só se justificava se fosse para fazer investimentos,
pois eles aumentariam a capacidade produtiva do país e gerariam fluxos
financeiros futuros. Fazer dívida para aumentar gastos correntes presentes era
transferir a conta para as gerações futuras, o que não podia ser admitido.
A regra pressupõe que o Orçamento do governo seja
permanentemente equilibrado. O endividamento público só aumentaria para
financiar os investimentos realizados e não para cobrir despesa corrente. Quando
não existe equilíbrio do orçamento, não há como cumprir a "regra de
ouro", pois o gasto corrente excedente será financiado, necessariamente,
pelo endividamento.
O setor público brasileiro vive uma situação de desequilíbrio
fiscal estrutural desde 2014. Há quatro anos, a União registra déficits
primários elevados em suas contas e não é possível saber com exatidão quando
registrará o primeiro superávit. O governo espera que em 2021 ocorra um pequeno
superávit. O mercado considera, no entanto, que o resultado positivo só virá em
prazo mais dilatado.
Os déficits primários continuados não estão sendo provocados
pelo aumento das inversões financeiras e dos investimentos, que foram
reduzidos, em 2017, para os patamares de 2009. São as despesas obrigatórias que
crescem sem parar, acima da expansão da economia. Desde o início de 2016, as
despesas obrigatórias correntes superam a receita líquida da União, de acordo
com o Tesouro Nacional. Em 2017, elas chegaram a 104,2% da receita líquida. Ou
seja, as despesas obrigatórias correntes consomem mais do que tudo o que é
arrecadado. Como explicar que, mesmo em uma situação como essa, o governo tenha
cumprido a chamada regra de ouro?
Na verdade, embora o conceito seja de fácil compreensão, a sua
apuração é tortuosa, no Brasil. Nem mesmo a área técnica do governo entende
como calcular o cumprimento da regra. Não há uma metodologia única. O
Ministério do Planejamento tem um método e o Ministério da Fazenda outro.
Pela metodologia utilizada pela Fazenda, os recursos de emissão
de títulos arrecadados em exercícios anteriores e que não foram aplicados em
despesas no exercício atual são considerados na apuração da regra de ouro. O
resultado contábil positivo obtido pelo Banco Central, principalmente com a
desvalorização o real, é transferido ao Tesouro e usado no cumprimento da regra
de ouro.
As disponibilidades do Tesouro em sua conta única são
remuneradas pelo BC. Os recursos decorrentes dessa remuneração são usados para
pagar gastos correntes e, assim, auxiliam o cumprimento da regra de ouro, pois
reduzem a necessidade de emissões de títulos. A receita do retorno das
operações de créditos do Tesouro a bancos públicos, como o BNDES, por exemplo,
também ajuda, pois evitam novas dívidas.
Nos últimos anos, o governo só cumpriu a regra de ouro por causa
do lucro fictício do BC transferido ao Tesouro, da remuneração das
disponibilidades da conta única e da devolução antecipada dos empréstimos do
BNDES à União. Essas operações camuflaram a verdadeira realidade das contas públicas,
ou seja, que os déficits estão sendo financiados com o aumento da dívida
pública.
O debate sobre a proposta de emenda constitucional (PEC) que vai
suspender temporariamente a regra de ouro não pode tirar o foco do que é
essencial: a sociedade e os seus representantes no Congresso precisam enfrentar
o problema do controle do crescimento da despesa pública, começando por aprovar
a reforma da Previdência. Só assim será possível reequilibrar o orçamento e, de
fato, cumprir a regra de ouro.
Valor Econômico
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