domingo, 19 de novembro de 2017

Retomando o Passo Errado: os desafios de hoje e o equívoco neoliberal

Rafael R. Ioris

A evolução histórica do capitalismo foi marcada por profundas diferenças socio-econômicas entre os países. A revolução industrial aprofundou esse processo de maneira significativa e, desde meados do século XIX, governos de vários estados, inicialmente na periferia da Europa Ocidental, e, posteriormente, ao redor do globo, tem buscado formas de acelerar seu próprio de crescimento econômico, em geral, por meio de um industrialização alavancada pelo Estado.

De fato, embora o credo liberal tenha sido propagado fortemente pela Inglaterra ao longo do século XIX e, em especial, pelos Estados Unidos, ao longo do século XX, ambos países sempre se valeram de políticas protecionistas na promoção de suas indústrias e na regulação de seu mercado interno. Da mesma forma, todos países envolvidos na chamada industrialização tardia, em especial a Alemanha, França e Rússia na virada do século passado, implementaram políticas de subvenção de setores chave de suas economias, assim como tarifas protecionistas, para garantir o sucesso de seus projetos.

Tais medidas se apronfudaram e complexificaram ao longo do século XX por meio do que ficou conhecido como políticas anti-cíclicas, tanto nas economias centrais, assim como, de modo gradual, em países da América Latina. Após ter adotado de modo excessivo e injustificado a lógica das chamadas vantagens comparativas ao longo das décadas iniciais do século, na medida em que estas se mostravam cada vez mais insuficientes para garantir a estabilidade de suas economias, grande parte da nossa região passou a adotar medidas regulatórias intervencionistas na promocão do crescimento e diversificação econômica.

Dentro dessa nova lógica ampliada em prol da atuação governamental, o pós-guerra presenciou ganhos sem precedentes, tanto no que se refere ao crescimento econômico assim como, de modo especial, na promoção de melhores ganhos de vida e redução das desigualdades sociais, ao redor do mundo.

Na America Latina, em especial no Brasil, uma combinação doméstica de Keynesianismo com projetos de industrialização substitutiva, sob a égide do desenvolvimentismo, gerou benefícios históricos para crescentes grupos sociais, apesar da continuação da graves desigualdades estruturais históricas que sempre caracterizaram o perfil do nosso país. Mas não obstante todos esses ganhos, nas duas últimas décadas do século a região foi varrida pelos destrutivos ventos neo-liberais que forçaram uma abertura econômica oligopolizante e incrementadora das desigualdades sociais.
Se, ao fim e ao cabo, alguns setores conseguiram sobreviver, isto se deu, em geral, pela proteção estatal, em contradição clara com o ideário tão propagado no período. Do mesmo modo, seria somente por meio de novas políticas públicas, promovidas dentro de um contexto de maior democracia e participação popular ao redor da região, que o aprofundamento das desigualdades sociais e perda da competividade das economias locais das década de 90 seria finalmente debelado no início século XXI.

Vivemos hoje um cenário mundial cada vez mais complexo e arriscado. A China vem se colocando, cada vez de maneira mais clara e assertiva, como um modelo alternativo de desenvolvimento frente ao novamente propalado modelo de livre mercado que vinha pautando a globalização liberal dos últimos anos, forcando os países ocidentais a responder à altura. E embora retoricamente, o presidente chinês tenha se colocado, de maneira certamente inusitada, como defensor da ordem liberal, é certo que seu país, apesar dos ganhos que teve com a participação nessa mesma ordem, vem aprofundando políticas neo-mercantilistas, seja no contexto doméstico, regional e mesmo global.

Se, por várias razões, a resposta que vem sendo propagada, ainda que de maneira errática, por Trump não é viável, mesmo para seu país, que respostas poderiam dar aos atuais desafios os países latino-americanos, em especial o Brasil?

Em primeiro lugar, cabe lembrar que vivemos, desde os anos 2005 e até os três últimos anos, um processo sem precedentes de internacionalização competitva da economia nacional, fortalecimento da presença do país em nível global, e redução histórica das desigualdades sociais, em grande parte graças à coordenação e presença ativa do Estado na economia interna, regional e global. Se um injustificado grau de clientelismo atávico continuava presente ao longo desse processo, isso não diminui em nada os ganhos obtidos.

Ao invés de descontruir essa atuação ativa e altiva, como vem sendo feito ao longo dos últimos dois anos – tanto no ambiente doméstico, por meio de um neo-liberal redivivo de viés cultural reacionário, como na nossa atual medíocre e submissa atuação internacional – o que precisamos hoje é retomar, certamente em níveis mais transparentes e democráticos, os avanços de então.

As dificuldades de hoje são crescentes e temos que atendê-las de modo rápído e criativo. O modelo chinês tem que ser entendido de maneira profunda já que parece mais adapatado para responder aos desafios de hoje, dada sua maior capacidade de ativar a economia interna e projetá-la para fora do que o tradicional modelo liberal. Não se trata aqui, de modo algum, de uma defesa do caráter autoritário do regime chinês, mas sim da capacidade do seu governo em atuar na promoção dos interesses do seu país.

Felizmente, temos experiências históricas, especialmente as recentes, que podem nos ajudar nesse processo. Se continuarmos, porém, na equivocada tentativa de retomar a lógica liberal, seja dos anos 90 do século passado, ou mesmo de um século atrás, não conseguiremos responder tais questões de modo eficaz. Os desafios atuais só aumentam. Precisamos, pois, entender de modo rapido e eficaz as lições históricas para podermos formular respostas mais adequadas do que as que estamos presenciando nos dias de hoje.

Rafael R. Ioris, Professor de História Latino-americana e Política Comparada da Universidade de Denver, autor do livro Qual Desenvolvimento? Os Debates, Sentidos e Lições da Era Desenvolvimentista (Paco, 2017)

Estadão

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