Maria Cristina
Fernandes
Maior qualidade é a de se colocar no
lugar do eleitor
"Menos
Estado? Além de escola, creche, posto de saúde ou ônibus, vai faltar mais o
quê?". O autor da pergunta tem 32 anos e mora nas franjas de São Paulo.
Participou de uma pesquisa que colheu depoimentos ainda na periferia do Rio,
Porto Alegre e Recife. Dez grupos de oito pessoas cada e 40 líderes
comunitários, ouvidos a partir de um roteiro com duração de até três horas,
compõem a mostra. Todos são egressos da classe C, origem de 80 milhões de
brasileiros.
Os
resultados desestimularam o grupo de empresários que pretendia montar um
movimento para influenciar nas próximas eleições e encomendara a pesquisa a
André Torreta. Publicitário especializado em classe C com incursões no
marketing político (Roseana Sarney e Geraldo Alckmin), Torreta hoje está associado
à Cambridge Analytica, empresa que participou da campanha do presidente
americano, Donald Trump. Ao expor sua colheita a um banqueiro ouviu a seguinte
proposta: "Quanto você quer para não divulgar isso?".
Os
depoimentos assustam porque mostram a dramaticidade de uma sucessão que
escancara inadiável enfrentamento de suas desigualdades. Se há um Brasil em que
o Estado não cabe mais no PIB, há um outro que está dele excluído. O acerto de
contas comporta riscos e incertezas que cabem na democracia mas custam a se
ajustar às planilhas.
A
retomada da economia de que fala a propaganda não existe. A sensação
generalizada é de vulnerabilidade e de que a terra prometida no país de 13
milhões de desempregados ficou ainda mais longe. Um jovem de 23 anos, do
Recife, constata que a distância entre ricos e pobres aumentou. Junto com o
consumo despencou também a autoestima. "Disseram que sou classe C, mas a
classe C foi para o brejo", disse outra entrevistada, de 35 anos, de Porto
Alegre.
Os
entrevistados são indiferentes às reformas previdenciária e trabalhista pela
simples razão de que não as compreendem. Talvez por isso não tenham engrossado
os protestos de maio. A ficha pode cair para aqueles que estiverem empregados
e, com a vigência das novas leis trabalhistas, já não receberem,
compulsoriamente, o dissídio de suas categorias no próximo ano.
Em 20
anos de mapeamento das apreensões da classe C, a viu migrar do funk ostentação
para a sofrência, como no sertanejo de Wesley Safadão ("Porque homem não
chora"). Mas nada o surpreendeu tanto quanto a ênfase no valor da
educação. Muitos atribuem seu status de desempregado ao grau de escolaridade. O
jogador de futebol não é mais o símbolo de ascensão social, mas não lhe venham
dizer que o esforço pessoal resolve tudo. "Meritocracia? Nasce lá em Vila
Nova Cachoeirinha e vê se a escola em que estudei tem a mesma qualidade da
escola de gente rica", pergunta uma moradora da periferia de São Paulo, de
23 anos.
Cinquenta
anos depois da pedagogia do oprimido, a percepção, finalmente, é de que a
educação liberta. Um entrevistado diz que para os políticos não interessa haver
eleitores inteligentes. Outro relata o dia em que, ao contar ao pai quanto
custaria, de fato, a geladeira comprada no crediário, se emocionou ao vê-lo
chorar. O azedume com a política de juros num país que tem 60 milhões de
inadimplentes confirma a manchete do Valor de ontem ("Juros de cartão
caem, mas inadimplência segue alta") e abre novas fronteiras - de embate
ou mistificação - ao discurso político.
A vulnerabilidade
cresce com a percepção de vazio político para o encaminhamento de uma solução.
Uma moradora do Recife, de 36 anos, diz que esse vácuo é um problema maior que
desemprego, saúde, educação e segurança. A percepção não é de uma política
dominada pela corrupção, mas de um país inteiro, a começar dos próprios
entrevistados, que não se reconhecem como santos de pau oco.
A
autocrítica não os impede de desejar a continuidade da Lava-Jato, mesmo que o
combate à corrupção imponha uma extensão do purgatório. "Tropa de
Elite" substitui "Cidade de Deus" como narrativa da conjuntura.
Sai Buscapé, o menino que sobrevive ao descaso e à violência, e entra o capitão
Nascimento, policial que enfrenta a aliança entre o crime organizado e a política.
A
percepção é de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva era honesto quando
presidente e se corrompeu depois. Do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso as
lembranças são raras e esparsas, relacionadas ao seu partido e ao processo de
privatização. Ambos, na memória dos entrevistados, estão associados a
corrupção. A ex-presidente Dilma Rousseff virou pó. E o atual ocupante do cargo
simplesmente não existe.
De tudo
que viu e ouviu, Torreta concluiu que, de tão disseminada a percepção de
corrupção na política, o eleitor se mostra mais sensível ao argumento da
eficiência. Desde que seja administrada a favor do eleitor e sem a estampa de
gestor que, na sua cabeça, é sinônimo de patrão. Contra o governador de São
Paulo, Geraldo Alckmin, por exemplo, pesa a cobrança extra pela integração
entre ônibus e metrô. O azedume é indiscriminado mas a percepção não é
embotada. "Os partidos são iguais, os interesses é que são
diferentes", disse um morador do Recife, de 43 anos.
Qual é a
maior qualidade de um político? Honestidade não vale. É condição. Quando ouviu
a palavra empatia se repetir nos comentários de um grupo do qual participava
como audiência, Torreta decidiu intervir. Achou o conceito sofisticado demais
para ter sido trazido à tona naquele grupo. Mas a definição era cristalina.
"Eles não sabem o que é ter um filho com asma e ter que pegar ônibus,
metrô, trem pra ficar na fila de um hospital", disse uma moradora de 46
anos, do Recife.
Descobriu
que as formulações sobre empatia vinham da interação dos entrevistados nas
redes sociais, espaço em que muitos haviam, de fato, aprendido a ler e escrever
e em que a maioria tem mais amigos do que jamais imaginariam na vida real. O
eleitor que se politiza na intolerância das redes sociais se prepara para
mandar um recado ao político incapaz de se colocar no seu lugar. Vai muito além
do que jamais curtiu.
Valor
Econômico
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