Pablo Esparza
Com o triunfo da Revolução Russa em
1917, há cem anos, poucos aspectos da história do século 20 escaparam da
influência da superpotência então nascida. O islã e as sociedades islâmicas não
foram uma exceção.
No
momento do colapso da União Soviética (URSS), no início dos anos 1990, cerca de
50 milhões de muçulmanos viviam ali - a quarta maior população islâmica do
mundo na época.
Seis das
quinze antigas repúblicas da URSS, concentradas na Ásia Central (Cazaquistão,
Quirguistão, Tajiquistão, Azerbaijão, Turcomenistão e Uzbequistão), eram de
maioria muçulmana. Além disso, o islã também contou
- e conta até hoje - com populações consideráveis de seguidores no Cáucaso,
nos Urais e em outras regiões do país.
- e conta até hoje - com populações consideráveis de seguidores no Cáucaso,
nos Urais e em outras regiões do país.
"Os
muçulmanos foram centrais - ou até mais centrais - na história russa do que na
Europa", afirmou à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Timothy Nunan,
professor do Centro de História Global da Universidade Livre de Berlim.
A
Revolução Russa e a formação da URSS tiveram um impacto profundo no islã político
e na expansão do radicalismo islâmico, dentro e fora das fronteiras soviéticas.
Em alguns casos, de forma brutal. E a questão-chave aqui se resume a um país: o
Afeganistão.
O impacto da invasão do Afeganistão
Para o
professor Nunan, trata-se de uma questão repleta de nuances - é possível
interpretar tanto que houve como que não houve uma influência de Moscou no
mundo muçulmano.
"De
uma maneira simples, eu diria que não houve. A União Soviética, desde suas
origens, apoiou os movimentos anticoloniais e o que eles chamavam de
anti-imperialistas. Os movimentos islâmicos raramente se encaixavam nessa
ideia".
"No
entanto, em meados da década de 70 e 80, a URSS se tornou objeto de ódio dos
movimentos islâmicos em todo o mundo, especialmente como resultado da invasão e
ocupação do Afeganistão. (O país) virou um ímã para os movimentos islâmicos dos
anos 80", ressalta.
A
invasão soviética do Afeganistão se deu em 1979, em apoio ao governo comunista
que combatia guerrilhas islâmicas no país, por sua vez apoiadas pelos EUA.
Nunan
aponta que, até então, a relação entre a URSS e o mundo islâmico era
relativamente cordial e tinha sido marcada pela influência soviética sobre os
movimentos de descolonização.
Alianças
com o Iêmen do Sul - um Estado socialista próximo de Moscou que desapareceu em
1990 - e com a Síria pareciam demonstrar o sucesso da perspectiva soviética do
socialismo no "Terceiro Mundo" e nas sociedades de maioria muçulmana.
Jihad contra a União Soviética
Os dez
anos da guerra soviética no Afeganistão transformaram radicalmente essa imagem.
Após a invasão, a guerrilha islâmica dos Mujahedin ("combatentes" em
árabe) recorreu à jihad (no contexto político, indica em árabe uma guerra pela
fé contra os infiéis). Moscou tornou-se seu principal inimigo.
"O
Afeganistão se tornou naquele momento tanto a rota de um islã político mais
global e acolheu o crescimento de movimentos islâmicos regionais e de violência
e instabilidade", diz Kathleen A. Collins, professora da Universidade de
Minnesota.
"A
Al Qaeda também nasceu no contexto da guerra do Afeganistão, com a chegada dos
jihadistas do Oriente Médio que surgiram nos ramos mais radicais da Irmandade
Muçulmana. Muitos deles vieram da Arábia Saudita e de outros países árabes e se
mudaram para o Afeganistão, para participar da jihad contra a União
Soviética", acrescenta a autora do livro prestes a ser lançado The
Rise of Muslim Politics: Islam and State in Central Asia and the Caucasus (O
Surgimento da Política Muçulmana: Islã e Estado na Ásia Central e no Cáucaso,
em tradução livre).
Os muçulmanos soviéticos e a
Revolução Russa
Dentro
da União Soviética, no entanto, a relação entre Moscou e as populações
muçulmanas passou por diferentes fases desde o triunfo da Revolução Russa.
Durante
seus mais de 70 anos de existência, a União Soviética alternou períodos de
tolerância - em que a convivência entre o islã e o socialismo era possível -
com momentos de severa repressão religiosa, não só contra os muçulmanos.
Nos
primeiros dias da Revolução Russa, Lenin pediu aos seguidores do islã - que
haviam sido marginalizados e reprimidos pelo Império Russo - para se juntarem
aos bolcheviques, à frente da revolta.
"Muçulmanos
russos cujas mesquitas e casas de pedra tenham sido destruídas, cujos costumes
e crenças tenham sido zombados pelos czares, apoiem a revolução!", disse o
líder revolucionário em novembro de 1917.
Para
Lenin, os cerca de 16 milhões de muçulmanos do Império Russo - em torno de 10%
de sua população - eram uma força útil para o avanço de seu projeto político.
Foi
também nos primeiros dias da URSS que ideólogos e revolucionários como Sultan
Galiev - um bolchevique da origem tártara - tentaram combinar o marxismo e o
islã em uma única ideologia.
Mas esse
"nacionalismo socialista muçulmano" não durou muito. Galiev, acusado
de desvios nacionalistas, foi preso em 1923 e expulso do Partido Comunista. Em
1940, ele foi executado.
Repressão contra os muçulmanos
soviéticos
Desde o
início dos anos 20, a URSS começou a considerar o islã uma força
contrarrevolucionária que tinha que ser combatida. Assim, milhares de mesquitas
e madraças (casas de formação no islamismo) foram fechadas, especialmente na
Ásia Central.
"No
final, havia apenas duas escolas islâmicas legalizadas em toda a União
Soviética. O número de mesquitas diminuiu drasticamente. Enquanto anteriormente
centenas de mesquitas podiam ser encontradas em uma única grande cidade na Ásia
Central, depois sobraram cerca de 17 em todo o Tajiquistão, por exemplo. A
política soviética foi extremamente repressiva e destrutiva com a cultura e a
fé muçulmana", afirma Collins.
Essa
linha dura suavizou após a invasão alemã da URSS, quando mudanças na política
religiosa levaram a um período de relativa tolerância.
Burocracia religiosa
Moscou
criou uma espécie de "burocracia religiosa" que tentou monopolizar a
prática do islã e limitar a prática da fé a lugares controlados pelo Estado.
Como
resultado, uma parte da população muçulmana da Ásia Central deslocou suas
práticas religiosas para a esfera privada.
"Eles
continuaram a organizar funerais muçulmanos nas suas casas, mesmo sabendo que
isso era arriscado. Abandonaram sinais externos, como o hijab (véu tradicional
do islã) ou a ida regular às mesquitas, mas muitos deles continuaram sendo
crentes. Não foram secularizados", diz Collins.
Alguns
autores argumentam que essa prática religiosa não oficial, somada à rigidez do
governo, levou à radicalização dos muçulmanos soviéticos. No entanto, há
dúvidas sobre esse ponto.
"É
uma questão complicada, não existe uma reação universal ou geral contra a URSS,
especialmente nas últimas décadas. Pode-se dizer que muitas pessoas acabaram se
adaptando ao sistema soviético, porque este lhes permitia avanços em termos
educacionais, profissionais. Não havia nenhum caso de um movimento muçulmano de
massa contra a União Soviética", diz o professor Collins.
"Havia
pequenos grupos, que se chamavam os 'jovens mulás', especialmente no
Tajiquistão e no Uzbequistão, que começaram a se radicalizar com ideias da
literatura da Irmandade Muçulmana e de outros grupos islâmicos transnacionais
que se infiltraram na URSS nos anos 70 e 80", acrescenta a pesquisadora.
O
colapso da URSS, nos anos 1990, e a independência das repúblicas muçulmanas na
Ásia Central representaram uma mudança drástica.
Esses
grupos minoritários se tornaram a base da nova oposição islâmica, violenta em
alguns casos, que foi duramente reprimida no Uzbequistão e no Tajiquistão - da
década de 90 até o presente.
Estado Islâmico e ex-repúblicas
soviéticas
Com a
queda da URSS, os movimentos islâmicos locais - às vezes forçados a fugir de
seus países de origem - começaram a convergir ao jihadismo internacional que
havia sido estimulado pela guerra no Afeganistão.
Quase 30
anos após a separação de Moscou, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central
continuam sob o controle de governos autoritários e o islã político continua a
ser reprimido. Uma estratégia que, às vezes, parece dar resultados opostos aos
planejados.
No entanto,
o território pós-soviético onde o jihadismo foi mais ativo nas últimas décadas
não deve ser buscado na Ásia Central, mas na Chechênia, nas montanhas do
Cáucaso.
Desde a
sua adesão ao Império Russo em meados do século 19, essa república
predominantemente muçulmana foi palco de várias revoltas contra Moscou.
Em 1944,
Josef Stálin chegou a deportar centenas de milhares de chechenos para a
Sibéria, acusados de colaborar com os nazistas.
Mas a
repressão não acabou com o nacionalismo na região: meio século depois, o
colapso da URSS foi visto como uma oportunidade para a independência. Isso
também levou ao surgimento do radicalismo islâmico no Cáucaso.
"Durante
o início da década de 90, os separatistas buscaram a total independência de sua
república, mas o fracasso na construção desse Estado e a forma brutal com que
Moscou lutou contra ele transformou a causa nacionalista em islamista, com um
componente jihadista", afirma relatório publicado em 2012 pelo centro de
estudos International Crisis Group.
Em 1999,
os rebeldes chechenos anunciaram a implementação da sharia (lei islâmica) na
Chechênia e invadiram a república vizinha do Daguestão, onde declararam um
Estado islâmico. Mais uma vez, a Rússia respondeu militarmente.
A
segunda guerra chechena terminou com a destruição de sua capital, Grózni, e a
tomada do poder por Moscou.
Desde
então, militantes jihadistas chechenos continuaram a realizar diversos ataques
- incluindo a tomada de mais de 800 reféns num teatro de Moscou em 2002, que
terminou com a morte de pelo menos 170 pessoas, e a invasão a uma escola de
Beslan, que terminou com quase 400 mortes.
Seu
papel no jihadismo internacional também tem sido ativo. Em algumas ocasiões,
essa área do Cáucaso e as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central já foram
descritas como viveiros jihadistas.
"Se
você soma todos os países pós-soviéticos, você verá que eles enviaram o segundo
maior número de militantes para o EI (o autodenominado grupo Estado Islâmico)
depois da Tunísia. No entanto, acho que há particularidades desse fenômeno que
são contraditórias com o período soviético", diz o professor Nunan.
"Uma
delas é que essas pessoas vivem em Estados independentes onde muitas vezes há
carência de legitimidade e uma maior corrupção do que na antiga URSS. Na União
Soviética, as pessoas tinham proteção social, um emprego estável, um senso de pertencimento
a uma superpotência. (...) Para muitas pessoas hoje, particularmente em países
como o Tajiquistão ou o Quirguistão, a percepção é de perspectivas de vida
muito mais limitadas", aponta o especialista.
BBC-Mundo
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