Vera Magalhães
Eis que, em 2017, voltamos a viver
como há 26 anos. E não cansamos de andar para trás
“Voltamos
a viver como há dez anos atrás
E a cada
hora que passa
Envelhecemos
dez semanas”
A
epígrafe acima é uma estrofe da música de Renato Russo que tem o mesmo título
desta coluna. Quando foi lançada pela Legião Urbana, em 1991, o Brasil estava
afundado na crise econômica e a crise política da era Collor começava a se
descortinar. Todo o álbum, o quinto da banda, é permeado por esse tom sombrio e
pela constatação de que o País regredia depois da euforia da primeira eleição
direta pós-redemocratização.
Eis que,
em 2017, voltamos a viver como há 26 anos (vou evitar a redundância do “atrás”,
que cabe na canção, mas não aqui). O Brasil de Dilma-Temer é recessivo na
economia, repulsivo na política e regressivo nos costumes e nos direitos. E não
se cansa de andar para trás. Trata-se, não se enganem petistas ou antipetistas,
do mesmo período. O presidente de 3% de hoje só existe porque a
presidente-poste que mergulhou o País na crise foi inventada pelo “cara” que
teve a ilusão divina da perpetuação de seu projeto no poder.
Ao se
associar ao PMDB para levar a cabo esse engenho, o PT fez uma sociedade não
apenas nas práticas corruptas de sequestro do Estado. Comprou também o pacote
do atraso em todas as demais áreas.
Se para
assumir a Presidência Temer precisou apresentar ao mercado um time econômico
com credibilidade e firmar compromisso com balizas racionais e ortodoxas em
questões como o ajuste fiscal e a política monetária, o mesmo não lhe foi
exigido nas demais áreas do governo. E isso foi entendido como uma licença para
que o atraso se espraiasse.
Desde o
primeiro dia, o atual governo demonstra que está disposto a franquear nacos de
transparência, direitos individuais, igualdades e preocupação social em nome de
maioria parlamentar – cuja ausência tinha sido outra causa da queda de Dilma.
O apogeu
dessa capitulação ao retrocesso é a famigerada portaria que trata de trabalho
análogo à escravidão. Sob o pretexto de regulamentar a questão, o texto não
tenta nem sequer esconder ter sido feito sob encomenda por setores que ainda
teimam em defender práticas incompatíveis com um país que se quer democrático e
almeja o desenvolvimento. O resultado foi a mais ampla contestação de uma
medida de Temer até aqui. Nesse caso, não cabe o supertrunfo argumentativo da
“ideologização” da discussão: a estrovenga editada pelo Ministério do Trabalho
foi repudiada pela procuradora-geral Raquel Dodge, pelo ex-presidente FHC e até
internamente.
Também
não são razoáveis argumentos como os do ministro Gilmar Mendes, que comparou
situações comuns no Brasil de trabalho em condições degradantes com a de um
ministro do Supremo. Não há que se falar em trabalho análogo à escravidão com
salário no teto do funcionalismo, aposentadoria integral, estabilidade e um
séquito de assessores até para puxar a cadeira.
Por fim,
não para em pé a tentativa de defender a portaria com base na justificativa de
que um fiscal pode autuar uma empresa e sozinho acabar com ela. Porque o
contrário é verdade: um fiscal pode acobertar uma empresa que pratique trabalho
degradante com base na conhecida propina. Portanto, há que se apertar a
fiscalização, não suprimi-la ou tutelá-la.
Na
semana em que o Senado se fechou no espírito de corpo mais deslavado para
salvar Aécio Neves – que, mesmo não sendo réu, como alegou em sua defesa,
claramente quebrou de todas as formas o decoro parlamentar, a métrica pela qual
o Senado julga seus pares – e a Câmara avançou no esperado script para salvar
Temer, o retrocesso político se encontrou com esse lamentável atentado aos
direitos humanos e à cidadania. Renato Russo não viveu para ver o teatro dos
vampiros em sua versão mais tosca.
O Estado de S.Paulo
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