Olavo de Carvalho
Há
muitos motivos para você ser contra o socialismo, mas entre eles há dois que
são conflitantes entre si: você tem de escolher. Ou você gosta da liberdade de
mercado porque ela promove o Estado de direito, ou gosta do Estado de direito
porque ele promove a liberdade de mercado. No primeiro caso, você é um
“conservador”; no segundo, é um “liberal”.
Durante
algum tempo, você não sente a diferença. Quando a direita é ainda incipiente,
nebulosa e sem forma, liberais e conservadores permanecem numa gostosa
promiscuidade, fundidos na ojeriza comum ao estatismo esquerdista. Tão logo a
luta contra o esquerdismo exige uma definição doutrinal mais precisa, a
diferença aparece: ou você fundamenta o Estado de direito numa concepção
tradicional da dignidade humana, ou você o reinventa segundo o modelo do mercado,
onde o direito às preferências arbitrárias só é limitado por um contrato de
compra e venda livremente negociado entre as partes. Nos dois casos você quer a
liberdade, mas no primeiro o fundamento dela é “material”, isto é, definido por
valores e princípios explícitos, no segundo é “formal”, isto é, definido por
uma equação contratual cujo conteúdo está aberto à escolha dos interessados.
Se você
é um conservador, você acha que um cidadão não tem o direito de contratar outro
para matá-lo (muito menos para matar um terceiro), porque a vida é um dom
sagrado que não pode ser negociado. Mas, para o liberal, nada existe de mais
sagrado que o direito de comprar e vender – a própria vida inclusive: se você
acha que sua vida está um saco e quer contratar um profissional para dar cabo
dela, nem o Estado nem a Igreja têm o direito de dar nisso o menor palpite. Já
se quem está enchendo o saco é o seu bebê anencéfalo, a sua avó senil ou o seu
tio esquizofrênico, eles não têm capacidade contratante, mas você tem: caso tenha
também o dinheiro para pagar uma injeção letal e o enfermeiro para aplicá-la,
nada poderá impedir que os três chatos sejam retirados do mercado mediante os
serviços desse profissional. Curiosamente, não conheço um só liberal que atine
com a identidade essencial de contratar um enfermeiro para dar uma injeção nos
desgraçados, um pistoleiro para lhes estourar os miolos ou uma motoniveladora
para reduzi-los ao estado bidimensional. Quando dizem que consideram a primeira
alternativa mais “humana”, não percebem que estão apelando a um argumento
conservador e limitando abominavelmente a liberdade de mercado.
O
conservadorismo é a arte de expandir e fortalecer a aplicação dos princípios
morais e humanitários tradicionais por meio dos recursos formidáveis criados
pela economia de mercado. O liberalismo é a firme decisão de submeter tudo aos
critérios do mercado, inclusive os valores morais e humanitários. O
conservadorismo é a civilização judaico-cristã elevada à potência da grande
economia capitalista consolidada em Estado de direito. O liberalismo é um
momento do processo revolucionário que, por meio do capitalismo, acaba
dissolvendo no mercado a herança da civilização judaico-cristã e o Estado de
direito.
Jornal do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário