Augusto de Franco
Muitos
conservadores e liberais-econômicos aceitam a democracia e convivem com ela.
Mas aceitar a democracia – e até mesmo participar de eleições, seja como
candidato a representante ou como eleitor-representado – não significa
necessariamente aderir à democracia como ideia (para usar uma expressão de John
Dewey) e tomá-la como um valor (no sentido empregado por Amartya Sen).
Ao
contrário de alguns conservadores que são declaradamente antidemocráticos, os
liberais-econômicos, em geral, convivem bem com a democracia. Sim, adeptos do
liberalismo-econômico podem ser democratas. Mas também podem desprezar a
democracia, admitindo-a como quem se conforma com o regime democrático na falta
de outro melhor.
Vamos
ver um exemplo de um liberal-econômico famoso, de posição extrema –
anarcocapitalista – que se coloca em termos intelectuais (possivelmente não na
prática) contra a democracia. Trata-se de ninguém menos do
que Hans-Hermann Hoppe, que é um membro sênior do Ludwig von Mises
Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do
periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu
pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. É o autor, entre
outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e
Capitalismo e The Economics
and Ethics of Private Property.
O artigo
abaixo, publicado no site Mises Brasil, é uma transcrição de uma
entrevista dada pelo professor Hoppe. O site não informa a data da entrevista,
nem fornece nenhum link para a versão original.
Por que a monarquia é superior à
democracia
O
sistema político que todos fomos ensinados a venerar desde cedo — seja pelas
escolas cujos currículos são controlados pelo governo, seja pela mídia serviçal
ao estado — é a democracia.
O que
quero argumentar aqui é que a antiga forma de governo, a monarquia, não só era
muito mais limitada, como também era mais pacífica, menos totalitária e mais
propensa ao desenvolvimento de um país do que a democracia.
Democracia x Monarquia
O
primeiro ponto a ser enfatizado é: estados — sejam eles monárquicos ou
democráticos — não são empresas. Eles não produzem nada para ser vendido no
mercado, e, como tal, suas receitas não advêm da venda voluntária de bens e
serviços.
Ao
contrário: estados vivem da coleta de impostos, que são pagamentos coercivos
coletados sob ameaça de violência.
Portanto,
sendo um anarcocapitalista, não sou apologista nem da monarquia e nem da
democracia. Porém, se tiver de escolher um desses dois regimes maléficos, então
é seguro dizer que a monarquia tem certas vantagens.
A razão
é que os reis eram normalmente vistos pela população como aquilo que realmente
eram: indivíduos privilegiados que podiam tributar seus súditos. E como todos
sabiam que não podiam se tornar reis, havia uma certa resistência dos súditos
contra as tentativas dos reis de aumentar impostos e expandir a exploração.
Sob a
democracia, surge a ilusão de que nós somos nossos próprios governantes, de que
governamos a nós mesmos. Entretanto, como já deveria estar mais do que claro,
sob a democracia também existem soberanos e os súditos desses soberanos. Porém,
o fato de que qualquer um pode potencialmente se tornar um funcionário público
é algo que, além de também ajudar a estimular a ilusão de que governamos a nós
mesmos, leva a uma redução daquela resistência que havia contra os reis quando
estes tentavam aumentar suas receitas tributárias – afinal, o aumento da
receita do estado ser-lhe-á favorável caso você seja um dos soberanos.
Há ainda outras desvantagens da
democracia.
Na
monarquia, o rei pode ser visto como uma pessoa que considera o país sua
propriedade privada, e as pessoas que vivem nele são seus inquilinos, que pagam
um tipo de aluguel ao rei.
Por
outro lado, consideremos os políticos eleitos sob um sistema democrático. Estes
políticos não são os proprietários do país da maneira como um rei o é; eles são
meros zeladores temporários do país, por um período que pode durar quatro anos,
oito ou mais.
E a
função de um proprietário é bastante diferente da função de um zelador.
Imagine
duas situações distintas: na primeira, você se torna o proprietário de um
imóvel. Você pode fazer o que quiser com ele. Você pode morar nele para sempre,
você pode vendê-lo no mercado — o que significa que você tem de cuidar muito
bem dele para que seu preço possa ser alto —, ou você pode determinar quem será
seu herdeiro.
Na
segunda situação, o proprietário desse imóvel escolhe você para ser o zelador
dele por um período de quatro anos. Nesse caso, você não pode vendê-lo e não
pode determinar quem será seu herdeiro. Porém, você ganha um incentivo novo:
extrair o máximo possível de renda desse imóvel durante o período de tempo que
lhe foi concedido.
Isso
implica que, na democracia, o zelador temporário é incentivado a exaurir o
valor do capital agregado do país o mais rápido possível, pois, afinal, ele não
tem de arcar com os custos desse consumo de capital. O imóvel não é dele. Ele
não tem o que perder com seu uso irrefletido. Por outro lado, o rei, como
proprietário do imóvel, tem uma perspectiva de longo prazo muito maior que a do
zelador. O rei não vai querer exaurir o valor agregado de seu imóvel o mais
rapidamente possível porque isso se refletiria em um menor preço do imóvel, o
que significa que sua propriedade (o país) seria legada ao seu herdeiro a um
valor menor.
Portanto,
o rei, por ter uma perspectiva de longo prazo muito maior, tem o interesse de
preservar — ou, se possível, aumentar — o valor do país, ao passo que um
político em uma democracia tem uma orientação voltada para o curto prazo e quer
maximizar sua renda o mais rapidamente possível. Ao fazer isso, ele
inevitavelmente irá gerar perdas no valor do capital de todo o país.
Guerras
As
guerras sob um regime monárquico tendiam a ser, como certa vez descreveu Mises,
guerras exclusivamente entre soldados, ao passo que as guerras feitas por
democracias envolvem o homicídio em massa de civis em uma escala jamais vista
na história humana.
Essa
diferença tem a ver novamente com o fato de que os monarcas consideram o país
como sua propriedade. Tipicamente, os monarcas faziam guerras para resolver
disputas de propriedade. “Quem é o dono de determinado castelo? Quem é o dono
de determinada província?” O objetivo de uma guerra monárquica sempre era
limitado e específico.
Já as
guerras feitas por democracias tendem a ser guerras ideológicas. Ora quer-se
liberar um país de alguma ditadura, ora quer-se converter um país a uma
determinada ideologia. E é difícil determinar quando tal objetivo foi de fato
atingido. A única maneira certa de atingi-lo é matando toda a população do país
que se está tentando invadir ou ocupar.
Um
monarca, obviamente, jamais teria tal interesse, pois ele quer adicionar — em
vez de destruir — uma determinada província, uma determinada cidade ou mesmo um
determinado castelo à sua propriedade privada. E, para atingir esse objetivo
satisfatoriamente, é de seu interesse causar os mínimos danos possíveis –
afinal, de nada adianta adquirir bens destruídos e sem valor.
Portanto,
embora para um monarca fosse mais fácil começar uma guerra, também lhe era mais
fácil determinar quando o objetivo havia sido atingido, o que dava fim à
guerra.
Nunca
houve alguma motivação ideológica que levasse diferentes reis a guerrearem
entre si, ao passo que as democracias — assim como as guerras religiosas — são
um conflito de civilizações, um conflito de sistemas de valores praticamente
impossível de se controlar.
Ademais,
as guerras iniciadas por reis eram vistas pelo público meramente como um
conflito entre monarcas, uma vez que os reis geralmente dependiam de
voluntários para lutarem suas guerras. Já nas democracias, todo o país
participa da guerra, todos os seus recursos são forçosamente desviados para o
esforço da guerra e nele são exauridos.
Com a
democracia surgiu também o serviço militar obrigatório — uma situação típica em
várias democracias atuais —, no qual os indivíduos são obrigatoriamente
recrutados e forçados a ir às guerras. O argumento utilizado para tal
escravidão mortal é: “já que agora você tem uma participação no estado (afinal,
estamos em uma democracia), você também tem de lutar as guerras do estado”.
Já sob
uma monarquia as pessoas não tinham uma participação no estado; o estado era
visto como pertencente ao rei, sendo os cidadãos uma entidade completamente
separada do estado. Por causa disso, o envolvimento da população nas guerras
monárquicas era muito limitado.
Nacionalismo
Erik von
Kuehnelt-Leddihn costumava dizer que uma das coisas de que ele mais gostava nos
regimes monárquicos era o fato de que havia muito menos nacionalismo — o
nacionalismo, obviamente, é uma característica democrática dos séculos XX e
XXI.
Sob a
monarquia não havia nada de errado em ser, por exemplo, um nobre germânico e ir
trabalhar para a czarina da Rússia. Pessoas que lutavam em vários lados também
não eram consideradas “traidoras” da pátria.
Foi com
a ascensão da democracia que tivemos a ascensão da beligerante e inauspiciosa
filosofia do nacionalismo.
As altas
aristocracias foram, por assim dizer, as pessoas mais “internacionais” da
história da civilização. Praticamente todos os altos nobres eram
interrelacionados com aristocratas de outros países. O Kaiser alemão, por
exemplo, tinha relações com os monarcas britânicos e russos. Todos os soberanos
de Europa também tinham, de alguma forma indireta, ligações com Maomé — logo,
com países islâmicos.
Quando
havia contendas entre monarcas, estas eram vistas como brigas entre famílias.
Sendo assim, o sentimento de nacionalismo era impossível de surgir — até
porque, novamente, os nobres eram a mais internacionalista das classes de
pessoas que existiam. Portanto, sentimentos nacionalistas eram totalmente
estranhos e atípicos para uma classe como aquela.
E isso
certamente poupou várias vidas e evitou muito empobrecimento.
Bem,
Hope faz uma confusão brutal entre forma ou sistema de governo (monarquia ou
república) e modo de regulação (autocracia ou democracia). Monarquias podem ser
democracias, desde que sejam constitucionais e tenham governos representativos.
Democracia não tem a ver com monarquia ou república. Aliás, dentre
os países que hoje figuram entre os mais democráticos do mundo, a maior
parte não é composta por repúblicas. Das 19 full democracies doDemocracy Index 2016 da The Economist Intelligence Unit, por
exemplo, a maioria é composta por monarquias, como se pode ver na lista abaixo:
Norway –
Monarquia
Iceland – República
Sweden – Monarquia
New Zealand – Monarquia
Denmark – Monarquia
Canada – Monarquia
Ireland – República
Switzerland – República
Finland – República
Australia – Monarquia
Luxembourg – Monarquia
Netherlands – Monarquia
Germany – Republica
Austria – República
Malta – República
United Kingdom – Monarquia
Spain – Monarquia
Mauritius – República
Uruguay – República
Iceland – República
Sweden – Monarquia
New Zealand – Monarquia
Denmark – Monarquia
Canada – Monarquia
Ireland – República
Switzerland – República
Finland – República
Australia – Monarquia
Luxembourg – Monarquia
Netherlands – Monarquia
Germany – Republica
Austria – República
Malta – República
United Kingdom – Monarquia
Spain – Monarquia
Mauritius – República
Uruguay – República
Ou seja,
entre as 19 full democracies, 10 são monarquias constitucionais e 9 são
repúblicas.
É um
absurdo o que Hope está afirmando. Ao contrapor monarquia à democracia ele quer
dizer que monarquias não-democráticas (por exemplo, monarquias absolutistas)
são melhores do que democracias (sejam monarquias democráticas ou repúblicas
democráticas)? Se ele está dizendo isso, parece claro que está preferindo a
autocracia à democracia.
Perdoem-nos
a opinião curta e grossa: o texto é pedestre. Parece uma redação escolar de um
analfabeto democrático que quase não vale a pena comentar sistematicamente.
Vamos, portanto, apenas fazer duas observações adicionais.
A
opinião de Hope sobre as guerras é outra aberração histórica e teórica.
Monarquias, há mais de cinco mil anos, guerreiam entre si. A evidência
histórica dos últimos séculos, depois que os modernos reinventaram a
democracia, aponta justamente o oposto do que afirma Hope: países democráticos
não costumam guerrear entre si. Quem duvidar dessa afirmação, por favor,
forneça um contra-exemplo.
A
opinião de Hope sobre o nacionalismo é outra besteira. O internacionalismo da
nobreza era um “nacionalismo” de casas autocráticas e não de países (que
surgiram, com a configuração atual, com a forma Estado-nação, nascida
da paz de Westfália – ou seja, como fruto da guerra entre… monarquias, posto
que a democracia representativa só foi inventada naquela ocasião).
O
fundamental porém é perceber que Hope não é – como ele mesmo declara – um
convertido à democracia. Ele pode até se conformar com regimes democráticos,
mas, por opção, não escolheria a democracia.
Infelizmente,
não temos – dentre os adeptos das doutrinas do liberalismo-econômico – apenas o
anarcocapitalista Hans-Hermann Hope com essa disposição não-democrática. Ainda
que o liberalismo-econômico não possa ser caracterizado como antidemocrático,
ele não toma, em geral, a democracia como um valor. De sorte que de ninguém se
requer que abrace radicalmente o modo não-guerreiro de regulação de conflitos
que chamamos de democracia para que professe sua crença liberal (em termos
econômicos). O que significa que o liberalismo-econômico aceita pensamentos
não-democráticos como, por exemplo, os dos conservadores políticos que não são
democratas.
Mais uma
vez fica clara a diferença entre liberalismo-econômico e liberalismo político.
O liberalismo-econômico convive com o conservadorismo político, mesmo que não
seja democrático. O liberalismo político, não.
A
principal ideia do conservadorismo é a ideia de ordem como sentido da política.
Por isso, todos os conservadores são descendentes de Hobbes, antes de Burke. O
que funda o liberalismo é a ideia de liberdade (não de ordem) como sentido da
política. Por isso todos os liberais são descendentes dos democratas atenienses
e de Spinoza, não de von Mises. É preciso entender a diferença essencial entre
Hobbes e Spinoza: é a diferença entre autocracia e democracia. O
conservadorismo político pode conviver com o liberalismo-econômico, mas não com
o liberalismo político.
Desgraçadamente
o conservadorismo político se baseia no mesmo fundamento da autocracia: a ideia
de ordem como fim da política. Por isso não adianta dizer: eu sou liberal em
termos econômicos e conservador em termos políticos (como Pinochet). Se você
diz isso, você não é um democrata e sim um autocrata (como Pinochet).
DAGOBAH
Nenhum comentário:
Postar um comentário