Bolívar Lamounier
Uma falsa oposição, que só a
mediocridade do atual debate político permite circular por aí
Só mesmo
a mediocridade atual do debate político brasileiro permite compreender que uma
questão tão mal posta como a oposição social-democracia x liberalismo circule
por aí com tanta desenvoltura, sem ser incomodada.
Dá-se
geralmente por assentado que social-democracia é sinônimo de esquerda, como se
este segundo conceito esbanjasse clareza, nada mais se requerendo, portanto,
para esclarecer o primeiro. Essa discutível premissa está na raiz de outras
tantas esquisitices, como tentarei demonstrar adiante.
Sim, é
certo – e aqui vou direto ao exemplo relevante – que o Partido Social-Democrata
Alemão tem origens marxistas. Mais que uma orientação geral, a filiação ao
marxismo chegou mesmo a ser uma cláusula estatutária, removida, como é de
conhecimento geral, no congresso de Bad Godesberg de 1959. Dessa circunstância
de origem e de outras tupiniquins que lhes fomos agregando decorreram novas
confusões, algumas bem presentes na maçaroca ideológica que ora impera em nosso
país. Creio ser útil citar duas dessas confusões.
Primeiro,
dentro do PSDB, a sinonímia social-democracia = esquerda é o núcleo de uma
acendrada disputa entre duas alas, uma variavelmente designada como
desenvolvimentista, intervencionista, estatista, etc., e a outra explicitamente
mais propensa ao pensamento liberal. Segundo, postula-se (há quem postule!) que
PSDB e PT disputam o espaço social-democrático, variavelmente identificado como
esquerda, centro-esquerda e até como centro tout court!
Ora,
para pôr um pouco de ordem nesse emaranhado penso que precisamos apenas de uma
distinção lógica elementar e de umas poucas observações históricas.
A
distinção lógica é aquela que tradicionalmente estabelecemos entre fins e
meios. Um mesmo fim – ou ideal, ou programa político – pode ser buscado com
base em diversos meios, ou instrumentos. Por caminhos alternativos, se
preferem, conforme sejam as circunstâncias , os recursos disponíveis, os perfis
dos contendores. Também aqui me parece útil ir direto ao exemplo mais
relevante: a transformação do marxismo em marxismo-leninismo.
Como
ninguém ignora, o fim colimado pelos marxistas até a antevéspera da Revolução
Russa era a revolução, a destruição do capitalismo e a instauração da sociedade
sem classes. Esse, na terminologia que sugeri, era o ideal, o programa
ideológico. E os fins? Estes, de Marx à fundação do Partido Comunista russo, haveriam
de ser a mobilização de massas, sob a égide do proletariado, único sujeito
legítimo da História. Mas eis que um dia Lenin, ponderando as circunstâncias e
os recursos que teria eventualmente ao seu dispor, mandou passar uma borracha
em tudo isso. Resolveu que o fim – a sociedade sem classes – estava certo e
devia ser considerado imutável, mas o meio estava errado e exigia urgente
alteração. O sujeito da revolução não poderia ser uma massa numerosa, amorfa e
indisciplinada, mas uma organização pequena, ferreamente disciplinada e
adestrada na arte da luta clandestina. Um grupo de revolucionários
profissionais, “poucos, mas bons”. Daquele ponto em diante, o sujeito da
História passou a ser o partido, que delegaria seus poderes ao plenum, que, por
sua vez, os delegaria ao presidium e este ao secretário-geral.
Posso
imaginar quantos leitores, impacientes, estão a perguntar o que a minha
peroração sobre a Revolução Russa tem que ver com o título deste artigo.
Ora,
sabemos todos que a social-democracia pós-Bad Godesberg foi uma construção dos
países mais adiantados da Europa, convencidos de que era mais prático realizar
o fim a que almejavam no marco das democracias ocidentais, e mais ainda no
quadro da recuperação econômica ensejada pela ajuda americana, consubstanciada
no Plano Marshall. Naquela prosperidade que subitamente lhes pareceu eterna, os
dirigentes social-democratas dos países referidos elaboraram o que o
historiador designou como a “narrativa social-democrática”: a eliminação da
pobreza e uma progressiva universalização do bem-estar por meio do gasto
público. Recordo que essa visão fora já elaborada por Thomas Marshall em seu
clássico Democracia, Cidadania e Classe Social, obra de 1951. Nesse trabalho,
repensando a evolução histórica da Europa, Marshall argumentou que o essencial
era converter aspirações e desejos que já se esboçavam na prática em direitos,
ou seja, em pleitos respaldados pelo direito positivo.
Alguém
contestará que esse, também no Brasil, é o fim desejado? Não é exatamente esse
o ideal ou programa que os constituintes de 1988 consideraram adequado para
melhor integrar e pacificar a sociedade brasileira?
O
problema, evidentemente, são os meios, e aqui vale a pena ser taxativo: no
Brasil, os ideais da social-democracia só podem ser realizados com base em
instrumentos que tendem ao liberalismo. Por meio de um novo leninismo, ou
cedendo a um intervencionismo rombudo como o posto em prática pela sra.
Rousseff, isso certamente não será possível. Os erros de Lula e Dilma foram
palmares: escolheram os “campeões” empresariais, mas nem sequer encomendaram
tornozeleiras em quantidade suficiente. Eis aqui o trágico, o grotesco equívoco
dos soi-disant desenvolvimentistas brasileiros. Não compreendem que estão
torcendo o nariz justamente para os instrumentos de que dispomos para repor o
País nos trilhos: equilíbrio fiscal, abertura da economia, privatizações, forte
investimento estrangeiro na infraestrutura, ênfase no mérito, uma reforma
enérgica na administração pública, apoio à pequena e média empresa e, last but
not least, uma revolução educacional.
O Estado de S.Paulo
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