sábado, 28 de outubro de 2017

O que se passou, Kamarada? Nada... Apenas o tempo...

Carlos I. S. Azambuja

A dissidência nas hostes comunistas é interessante de acompanhar, pois é rica em argumentos e expõe suas mazelas

     Após o desmonte do socialismo, Nicolas Buenaventura, engenheiro e professor, que hipotecou sua vida ao comunismo, pois durante 40 anos foi membro do Comitê Central do Partido Comunista Colombiano com o cargo de chefe da Seção de Educação de Massas, explorou a fundo, numa autocrítica ácida e demolidora, através de seu livro “Que Pasó, Camarada?”, as razões da catástrofe dos ”socialismos reais”.
             
     Disse ele que os comunistas sempre lutaram por um pedaço da democracia formal e burguesa. Sempre defenderam, até a morte, a sua minguada liberdade de palavra, de imprensa, de dissidência e de oposição. A liberdade de locomoção, de ir e vir, de empresa - das empresas do partido -, dos camaradas, das associações, dos sindicatos. Cada resquício de democracia tradicional, formal, era sagrado para eles.
             
     “Defendíamos o pedaço de pão velho, como diria Bertolt Brecht. Porém, isso nunca foi considerado suficiente. Esse não era o objetivo. Era o meio. Queríamos o pão inteiro. Defendíamos a democracia possível. Porém, quando chegasse o momento e tudo mudasse, chegaria a hora da democracia real. Onde estava, então, o nosso erro? Qual foi o nosso pecado?
             
     A verdade é que sempre fizemos uma leitura muito óbvia, muito simples, da história da democracia formal. Sempre raciocinamos assim: uma democracia sem pão, sem escola, sem terra, puramente formal, é mentirosa.
             
     E daí em diante, dessa leitura simplista, vinha o resto, a grande dedução: primeiro o pão, primeiro a roupa, primeiro a terra e a escola e, depois, só depois, viria... a democracia.
             
     Era assim que nós encarávamos as coisas: sem pão, a democracia é uma mentira. Sem teto, sem escola, sem o conhecimento, é mentirosa a democracia. De forma que tudo tem o seu tempo, como diz a Santa Bíblia. Por agora, a saúde e a educação gratuitas. Depois, só depois, a democracia.
             
     Nunca dissemos isso assim, explicitamente, na Colômbia, em Cuba ou na União Soviética. Nunca dissemos isso com estas palavras precisas.
             
     Essa, porém, era a essência da nossa democracia real. E era, por outro lado, a que melhor se adaptava ao mundo do subdesenvolvimento, sem maior cultura política ou tradição democrática. Esse mundo, onde foi implantado e existiu, o socialismo real”.
             
     Então, para essa viagem desde o pão à democracia real, do futuro - uma viagem difícil; uma viagem, ademais, sem calendário -, para esse percurso tão acidentado, um grupo de escolhidos, formado pelos melhores, entre os quais Nicolas Buenaventura se encontrava, foi encarregado da direção. E esse grupo construiu o instrumento que conduziria os oprimidos à Terra Prometida. Esse instrumento denominava-se O PARTIDO, assim, em maiúsculas.
             
    “Não se tratava de falar, de protestar ou de fazer oposição. Para isso havia sua hora, o seu tempo. Tratava-se de construir a democracia real.
             
     Depois, as coisas aconteceram como já sabemos. É um fato e uma verdade. Primeiro faltou a democracia, faltou a dissidência, faltou a oposição, faltou a minoria. Todos éramos maioria. Uma maioria ideal, plena, uniforme, de uma só cor, que pouco a pouco foi se convertendo em unanimidade. Porém, o pão se acabou, veio a queda de produção, a ineficiência e a obsolescência.
             
     Primeiro, o Partido foi roubado na democracia. Depois também no pão.
             
     Dessa forma, nós, comunistas, aprendemos muito duramente, para sempre, esta lição: a democracia não tem ordem, não tem espera, não tem comissários políticos, nem delegação e nem guardiões. A democracia somos cada um de nós. É você mesmo.
             
     E mais: a democracia é, certamente, o governo da maioria. Democracia é o contrário da pirâmide centralista do Partido, na qual a cúpula, isolada das bases, era sempre endeusada, convertendo-se em uma dinastia.
             
   Em uma palavra: democracia é cada vez menos governo do Partido e do Estado, e mais autogoverno da sociedade civil.
             
     E, paralelamente, com isso e junto com isso, estará o problema do pão, da escola, da terra e do Direito.
             
     Nós, do Partido Comunista, havíamos tapado, afogado, o pensamento de Marx com a tradução de um montão de manuais de marxismo-leninismo.
             
     Vivemos sempre em um partido que não fez outra coisa, durante mais de meio século, senão instalar-se na porta da revolução, convencido, com a maior certeza, de que esse era o seu lugar, acabando por receber, por isso, o castigo mais duro.
             
     Todas as revoluções neste século, em qualquer parte do mundo - e as revoluções são muito de invenção e riqueza -, utilizaram a violência para moer a antiga máquina, para quebrar o poder militar entrincheirado no capital. Tudo era uma grande festa.
             
     Porém, mesmo após cumprir o seu papel demolidor, rompendo as antigas cadeias, mesmo após forçar as portas dos cárceres, a violência não cessou, não se deteve, e institucionalizou-se.
             
     Eu vivi isso muitas vezes, na Nicarágua, na China e em Cuba.  Experimentei o poder local guerrilheiro e vivi o Poder opressor e absolutamente arbitrário dos donos do novo Poder. E tudo me parecia lógico. O novo dia, após anos de obscuridade, surgiria enredado em fios invisíveis de medo à cidade, ao povo, à vereda, ao camarada, ao guerrilheiro, ao dirigente. O novo Poder não se equivoca. Ele conhece os traidores, os colaboradores, os cúmplices passivos, os que nunca fizeram nada, os que não moveram um dedo. Ele conhece a todos.


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