Wanderley Guilherme
dos Santos
Ter lado
sem compromisso partidário é um privilégio. Ajuda a observar que partidos do
seu lado não escapam ao mofo visível nos partidos do outro lado. A coragem para
saná-lo varia conforme a burocracia, mas a vulnerabilidade é a mesma. Está aí a
reforma política comprovando que há mais em comum do que em conflito entre o
PSDB/PMDB e o PT na lista de alternativas às regras eleitorais vigentes. A
começar por chamarem de "reforma política" os remendos propostos à
disputa pelas vagas de poder.
Digamos
que o PT, o PCdoB e o PSol compõem a vanguarda relativamente coesa de um lado e
o PSDB, o PMDB e o PP, o pelotão de frente do outro lado. São poucos a recordar
que, na origem, as aspirações de mudanças irmanavam o PT e o PSDB. Nos idos de
80 o PT era favorável ao parlamentarismo, ao voto distrital misto e ao fim do
imposto sindical, de memória varguista.
O futuro
candidato Lula da Silva, líder do Partido dos Trabalhadores, manifestava
sistemática rejeição aos doutores em ciências sociais, sem experiência real da
vida em pobreza, dizia. Não obstante, a agenda apadrinhada por seu partido era
a mesma do Cebrap, a mais completa tradução da intelectualidade paulista.
A
história, como se sabe, joga capoeira. Não é que o PMDB, compadre do PSDB,
liquidou a CLT varguista e promete parlamentarismo talvez com voto distrital
misto? Contra o PT, que, experimentado, também joga capoeira. Parece que o lado
à esquerda entendeu que rejeitar o imposto sindical era bandeira empresarial,
não dos trabalhadores alertas. Evitar a criação de sindicalismo fantasma é uma
coisa; acabar com o financiamento privado da ação política sindical é radicalmente
outra. Os trabalhadores urbanos eram o único grupo financiado pela contribuição
de seus membros. Neste quesito, a liderança sindical foi teleguiada da
intelectualidade conservadora.
O
autoritarismo da obrigatoriedade do imposto é conversa fiada. Não há ação
coletiva de massas sem coação contributiva. O sindicalismo patronal vive do
mesmo jeito e o licenciamento para exercício de profissões liberais só é obtido
mediante pagamentos individuais a suas ordens corporativas, agentes coletivos.
Agora, estão aí as centrais sindicais tentando remediar o desastre regressivo,
às vésperas de um sistema em que o trabalho se tornará dispensável em certas
atividades produtivas.
A Carta
de 1988 programou o conflito sobre regras, nas Disposições Transitórias, recomendando
plebiscito sobre parlamentarismo, monarquia e presidencialismo. Ocorreu em
1993, cinco anos depois de reinstalada a competição partidária. A xaropada
iniciada na Constituinte continuou até a edição atual. Não foi fácil sustentar
os ritos de uma competição liberal enquanto número não desprezível de atores
manteve-se arredio à constitucionalidade.
O PSDB
nunca aderiu de boa-fé ao presidencialismo e ao sistema de representação
proporcional. O PT, embora mudando aos poucos a pele cebrapiana, nunca
distinguiu com clareza o comportamento de parlamentares da instituição
parlamentar. Os dois lados alimentaram por ação, omissão e ignorância ilustrada
o deboche popular em relação às práticas parlamentares.
A
incapacidade de articular proposta coerente, revelando a repercussão de uma
regra sobre as demais e o que acontecerá com as instituições representativas
estaduais e as mais de 5,5 mil Câmaras de Vereadores, é outro denominador comum
a todos os lados, ângulos e hipotenusa das relações entre Brasília, vinte e
seis Estados e mais de cinco mil poderes municipais.
As
coincidências de propostas entre lados contrários levam o eleitor à loucura. Em
argumentos descosidos fala-se ora em cacareco, protesto aproveitado como razão
para o financiamento público das campanhas, ora em voto distrital majoritário,
o qual traria ligação mais responsável entre eleitor e eleito, e ora em voto em
lista fechada.
O
cacareco de hoje é o Tiririca, tratado com a mesma sem-cerimônia com que são
tratados os animais. O cidadão de apelido Tiririca tem sofrido sistemática
desmoralização pessoal, reiterada tanto pelos elitistas de um lado quanto do
outro, a demonstrar que, elas por elas, elite é a mesma droga, independente de
lado.
Ao crime
de ser Tiririca, soma-se o de receber caminhões de votos, elegendo uma tropa de
sub-Tiriricas. Efeito Tiririca? Ora, façam-me o favor. E o efeito Cunha e
outros do mesmo gênero? E o efeito Aécio, com seu pedaço da máquina do PSDB?
Cunha, seus apêndices, Aécio e sua máquina, estão atolados na Lava-Jato,
Lava-Furnas, Lava-Cemig, Lava-Caixa Econômica, Lava-Qualquer coisa. Em que
escândalo de propina, suborno e chantagem aparecem Tiririca e os que se
beneficiaram de sua votação? Meus caros reformistas, eu prefiro um Legislativo
com 513 palhaços a outro com 513 doutores Cunhas e Aécios. Se não encontram
coragem para encarar essa hipótese e escolher um lado, não me venham falar de
aperfeiçoamento democrático.
A lista
fechada é conquista moderna enquanto o chamado "voto distrital misto"
é a concessão conservadora, adiando a festa do majoritário puro. Defensores das
medidas acenam com o custo reduzido das campanhas e o controle da qualidade dos
eleitos. Ilusão. Em primeiro lugar, se imaginam que os investidores na eleição
de certos candidatos não gastarão o que for necessário para ordenar a lista dos
partidos, acordem. No capitalismo o dinheiro entra praticamente em tudo o que
quer e seus teóricos não tentam se enganar jurando que não é assim. Eles sabem muito
bem que é assim até porque assim é como deve ser, julgam.
Cada
partido tem direito a eleger um número de candidatos equivalente a um múltiplo
do quociente eleitoral. Se o quociente é de dez votos e o partido obteve cem,
terá direito a dez lugares, entregues aos dez primeiros da lista. Cada
ordenador partidário deve acreditar que os demais partidos agirão da mesma
maneira, isto é, ordenando seus candidatos por merecimento, usando régua comum.
Juízes e tanto! Exemplos da tarefa: o Rio de Janeiro tem direito a 46
deputados; Minas Gerais, a 53; Alagoas a 9 e São Paulo, a 70. Ainda que não
apresentassem candidatos correspondentes ao número de vagas, os juízes
precisariam ordenar algumas dezenas de pretendentes. Se alguém lhe disser, caro
leitor, que é possível ordenar por mérito um mínimo de nove pessoas por
partido, nas eleições alagoanas, não acredite. Faça o teste você mesmo.
Imagine
organizar a fila do PMDB, partido de elevados critérios, com seus 32 candidatos
às 46 vagas do Estado do Rio de Janeiro, em 2014, em Minas Gerais, com 27
candidatos, e em São Paulo, com 83 candidatos. Inevitável, a ordem beneficiaria
os candidatos prestigiados pela direção (descendentes de Cunha e Temer) e pelo
dinheiro (descendentes de Odebrecht e JBS). O resto dos candidatos? Ah, faz aí
por ordem de mérito alfabético. E por que seria a mesma acomodação com o PSDB e
o PT? Porque é humanamente impossível ordenar tantos candidatos utilizando um
só critério.
Os
reformistas detestam o baixo clero, muitas vezes catalogando como tal os
eleitos pelos pequenos partidos. Se por "baixo clero" se entende o
parlamentar que vive nas antessalas ministeriais em busca de benefícios para
sua região, o que não falta é baixo clero em todos os partidos. A aversão dos
defensores do voto majoritário a esse procedimento, a que chamam de
patrimonialismo, é surpreendente. São eles que derramam elogios às virtudes do
representante majoritário atento às demandas diretas de seu eleitorado
distrital. Sistemas majoritários encarnam o mais perfeito patrimonialismo de
segunda mão (ou dá ou desce).
A
realidade é mais dramática do que conceitos estereotipados. Quando o bem-estar
de enorme maioria da sociedade depende de decisões políticas, fica a
representação parlamentar obrigada a desencavar recursos e iniciativas públicas
destinadas a promovê-lo. Mas nem estamos falando, no Brasil, de aprimorar o
bem-estar da população. Trata-se de prover saneamento, escola, segurança -
enfim, a lista de demandas das passeatas. Os manifestantes, contudo, amaldiçoam
como baixo clero o parlamentar que acrescenta penduricalhos de escolas e postos
de saúde à legislação antipopular. Moram no asfalto, como os flagram as
pesquisas.
A
Rocinha, favela na cidade do Rio de Janeiro, terá o metro quadrado mais caro
das Américas. Imaginem o morro, de frente para o Atlântico, vista livre para
sempre, com saneamento, serviços médicos, escolas, segurança etc. como qualquer
bairro do asfalto. Mas tudo que é natureza, no asfalto, na Rocinha (aqui
simbolizando o universo dessas comunidades), ainda depende da "venda"
do voto.
Onde a
presença do poder público decorre de influência política, o voto é recurso da
outra ponta do patrimonialismo. No Sul dos Estados Unidos, nas palafitas da
Amazônia e na miséria de Calcutá.
Nenhum
dos problemas anotados pelos reformistas é solúvel por regras de competição. As
regras condicionam apenas a representatividade estatística do colégio
eleitoral, não a qualidade dos representantes. A competição pode ser de boa
qualidade (eleições limpas) e a qualidade da representação não tanto. O estofo
dos eleitos resulta, em grande parte, do grau de subserviência do eleitorado à
conexão mediadora da política. Quanto maior a necessidade de submissão, maior a
probabilidade de representações mafiosas, com quaisquer regras de competição.
É o caso
do Brasil. O eleitorado está entregue a máfias competitivas, despachantes dos
serviços de cuja responsabilidade o Poder Executivo se evade. Repete-se, nas
relações entre Executivos e Legislativos, o mesmo "patrimonialismo"
do comércio candidato-eleitor. Aí está Michel Temer e os 266 votos que
afiançaram seu caráter e comportamento virginal. Agenciem a independência
material da Rocinha - eis a reforma política necessária ao país.
PS - Jogar ao mar os suplentes de
senador seria bom começo.
Wanderley Guilherme
dos Santos
Pesquisador
sênior do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj)
Valor Econômico
Nenhum comentário:
Postar um comentário