BBC-Brasil
Os novos
confrontos na Rocinha, os tiroteios, as paredes esburacadas, o tanque na porta,
um menino que viu um morto na rua com os olhos abertos, a sensação de que
voltar para casa é "chegar ao inferno" - tudo isso vem dado uma
sensação de déjà vu a Raquel de Oliveira.
"A
história se repete", afirma a escritora e moradora da Rocinha, de 56 anos,
dizendo-se triste pelo presente e "completamente cética" em relação
ao futuro.
Raquel
já esteve do outro lado dessa guerra, chefiando o tráfico da Rocinha, na zona sul
do Rio, no fim dos anos 1980, "missão" herdada depois da morte de seu
namorado, o traficante Ednaldo de Souza, o Naldo, que foi "dono do
morro".
Ela
revisita o passado de violência em seu primeiro romance, A Número Um(Casa
da Palavra, 2015), uma obra de ficção inspirada em sua trajetória no tráfico,
que incluiu três guerras na Rocinha e muitos "condenados à morte".
A mais
recente guerra na maior favela do Rio, precipitada por uma disputa pelo
controle do tráfico, levou a cúpula de segurança do Estado a pedir o apoio do
Exército, com o envio de 950 homens das Forças Armadas à Rocinha na sexta-feira
passada.
Ao ver
mais um surto de violência, Raquel diz não sentir culpa nem arrependimento pelo
envolvimento que teve na história violenta do local.
"Como
eu poderia ir por outro caminho, se só tinha aquela estrada ali?",
questiona, em entrevista à BBC Brasil. "Você cria a criança no meio de
ladrões e quer que ela seja um empresário famoso de moda?"
Ela
considera ter tido muita sorte por sair de um caminho que costuma ser sem
volta, "um ponto final", graças a pessoas que a ajudaram a largar o
tráfico e a superar o pesado vício em cocaína, uma luta diária que a acompanha
há 12 anos.
Mas diz
que a Rocinha agora está "entre a cruz e a espada", temendo que o vácuo
dê margem à entrada de uma nova facção criminosa ou mesmo de milicianos.
Raquel
conta que começou a usar drogas aos seis anos. Com essa idade também foi vítima
de uma tentativa de abuso do pai, pedófilo, e a mãe passou a mantê-la trancada
por dias a fio em seu barraco. Cheirava cola para enganar a fome, depois passou
para a maconha. Aos 9 anos, foi vendida pela avó a um bicheiro do morro. Aos 11
anos, ganhou sua primeira arma e passou a trabalhar "intensamente"
para o jogo do bicho.
Descobriu
na escrita o caminho para superar a dependência. Na reabilitação, foi
incentivada a escrever para conseguir extravasar suas emoções, e descobriu um
prazer e um talento até então insuspeitos.
Depois
disso, completou o ensino médio, se formou em pedagogia em 2014, publicou
poesias e contos em coletâneas da Festa Literária das Periferias (Flup) - e
agora está escrevendo um novo romance, a ser publicado pela Companhia das
Letras, e comemora que seu A Número Um em breve sairá em Portugal e
na França e teve os direitos comprados para o cinema - o roteiro do livro está
em fase de produção e o longa-metragem deve ser lançado em 2019.
BBC
Brasil - Como você
passou essa última semana na Rocinha? Sua casa foi afetada pelas trocas de
tiros?
Raquel de Oliveira - A minha casa fica numa linha
difícil, um beco que é caminho (rota do tráfico). Teve confronto aqui e a
cozinha foi atingida. As paredes ficaram todas esburacadas, quebrou janela,
porta, furou o piso de cerâmica. Isso começou de madrugada, eram 5h da manhã,
estávamos dormindo. Graças a Deus o quarto é nos fundos. A gente colheu as
balas que ficaram na parede, tinha bem umas quinze. E tinha dois defuntos no
beco. Agora tem um tanque de guerra no meu portão.
Essa é a
casa da minha mãe, onde moro e onde nasci. Eu tenho outra casinha na Rua 2, que
alugava para ter alguma renda. Deu perda total. Não sobrou nada, está tudo
furado de bala. A família (de inquilinos) saiu e nem pagou o mês. São barracos,
né, não são casas não. Sou muito pobre, minha filha. Tudo o que o tráfico me deu,
a cocaína levou. Cheirei tudo.
Mas eu
dei sorte, não furou a minha caixa d'água, não furou o fogão nem a geladeira,
não pegou em ninguém. Está tudo bem, graças a Deus.
BBC - A senhora nasceu na Rocinha em
1961 e assumiu o tráfico na favela nos anos 1980 depois da morte do Naldo. Como
se sente diante de um novo conflito em torno da disputa do poder no morro?
Oliveira - Essa semana foi bem difícil.
A história se repete. Fico muito triste. Porque foi uma guerra anunciada, tanto
do lado da polícia quanto da comunidade.
O
bagulho é um barril de pólvora, vinha crescendo e deu nisso. Acaba explodindo.
É uma tradição da Rocinha. Nada que é do mal coopera para o bem. A tendência é
as coisas entrarem nos eixos e o tráfico de drogas ser restabelecido, como foi
na minha época.
BBC - Qual é a história que você diz
que se repete?
Oliveira - Essa história da entrada da
polícia e do Exército aqui. Teve isso quando implantaram esse fracasso da UPP
(Unidade de Polícia Pacificadora), teve isso quando o Nem foi preso (Antônio
Bonfim Lopes, ex-chefe do tráfico na Rocinha, preso em 2011). Na minha época,
nas operações Mosaico 1 e 2, o Exército tampou a favela (as operações Mosaico foram
uma série de investidas em favelas cariocas no fim dos anos 1980, planejadas
pela Polícia Federal para conter o crescimento do tráfico de entorpecentes).
Hoje digo graças a Deus, porque foi preciso o apoio do Exército para apaziguar
a situação. Entre aspas, né?
Enquanto
não houver um programa sério para a questão da dependência química e da droga,
não vamos a lugar nenhum. Vi um delegado falando que são os ricos de São
Conrado que vêm comprar cocaína na Rocinha. P*rra nenhuma. Quem mantém o
tráfico dentro da favela é o usuário regular, aquele que usa todo dia, que
vende o liquidificador, a TV, o sapato, a criança, o corpo para comprar a
droga. Esse é o usuário que banca o tráfico. Esse é o dinheiro que entra
certinho todo dia, como um salário.
Eu
conheço o Rogério 157 há muito tempo (Rogério Avelino da Silva, que estava
chefiando o tráfico na Rocinha até a disputa que começou semana passada).
Éramos conhecidos de vizinhança. Ele nem tinha vida no crime ainda, era um
menino, normal. Com o tempo nessa posição (de chefe do tráfico), ele foi
enlouquecendo. Fui a um churrasco em que ele apareceu muito transtornado,
drogado, as pessoas ficaram com medo dele. A droga tira a noção de realidade.
BBC - Como foi para você encontrá-lo
assim?
Oliveira - Nós conversamos, ele queria
o meu livro. Eu vejo com uma certa dó. Não estou vitimizando ninguém. Mas são
caminhos que a pessoa trilha que não têm volta.
Quem usa
droga e vai para o tráfico, isso é um ponto final na vida do sujeito. Um
sujeito como Rogério. Uma pobreza miserável. Virou ladrão. Começou a fumar
maconha. Foi preso. Na cadeia, aceitou ajuda do tráfico. Se você tá na cadeia e
aceita esse tipo de ajuda, tá ferrado. Porque quando sair de lá, tá escravo.
Agora, se tivesse mais oportunidade para essas pessoas lá atrás, será que elas
chegavam nesse ponto final? Será que as nossas cadeias estavam tão cheias?
Eu não
faço apologia ao crime. Porque isso não é vida para ninguém. É aquela parada:
pague para entrar, reze para sair. Eu até me emociono. Eu amo tanto a Rocinha.
É um lugar tão rico e ao mesmo tempo tão miserável.
BBC - Você parou para pensar que, em
outros tempos, poderia ter sido você por trás de parte daqueles tiros?
Oliveira - Eu tive momentos de déjà vu
muito grande. Continuo tendo. Quando voltei para casa esses dias de ônibus,
cheguei na Via Apia (na entrada da Rocinha) e pensei: "Chegamos no inferno".
Vi o rosto pesadão dos outros passageiros. Eu tinha essa sensação quando estava
lutando para parar de usar droga. Em 2009, eu passava o dia no tratamento
intensivo, jantava e vinha embora. O ônibus entrava na Rua 1 e eu pensava,
"cheguei no inferno".
É muito
difícil ter a sorte que tive de superar o uso de drogas, de encontrar a
recuperação, de trilhar o rumo da literatura, de encontrar pessoas maravilhosas
como o Júlio Ludemir e o Écio Salles, da Flup (os idealizadores da Festa
Literária das Periferias). Isso me deu um objetivo de viver, tive um despertar
espiritual. Isso é raro.
BBC - Mas olhando para toda essa
violência, você se arrepende de ter sido parte disso no passado?
Oliveira - Eu não tenho arrependimento.
Eu sinto é uma dó desgraçada de uma vida desperdiçada. Eu tinha grandes
possibilidades. Eu tenho QI (quociente de inteligência) de 180. Consegui
terminar a faculdade agora, fiz Enem, gabaritei a prova de redação, fiz poesia
a partir da recuperação de drogas (Raquel começou a escrever durante o
tratamento para superar o vício). Se eu tivesse tido uma estrutura familiar
saudável e uma boa educação, onde eu estaria hoje?
gora, eu
não tenho arrependimento. Eu agi conforme a lei que eu conhecia. Como eu
poderia ir por outro caminho, se só tinha aquela estrada ali? À minha volta era
só aquilo. Não tinha como, meu bem.
Você
cria a criança no meio de ladrões e quer que ela seja um empresário famoso da
moda? Você não consegue colher coisa boa se só planta coisa ruim. Se só dá um
caminho para a pessoa andar. Vai ser pedra até o fim.
Que
outro caminho teria para uma pessoa que passou por tudo que passei? Fui até
feliz. Consegui tirar o melhor do pior. Dei uma sorte ferrada. Eu poderia estar
lá até hoje, ou ter morrido de arma da mão. Ter dado a vida em troca de nada.
Porque tudo isso é uma ilusão. É uma guerra inútil.
O
arrependimento desgraçado que eu tenho é do uso de drogas na minha vida, que
acabou com tudo que eu poderia ter.
BBC - Você teve uma história muito
sofrida já desde criança. O que te levou a se envolver com drogas tão cedo?
Oliveira - Eu tive uma infância
miserável. Meu pai era pedófilo. Isso eu fui descobrir com 6 anos, mas graças a
Deus ele não conseguiu consumar o ato. A minha mãe era passiva e eu fiquei
trancada dentro do barraco. Ficava até uma semana trancada dentro do barraco.
Eu tinha 6 anos.
Comecei
a sair pela janela e a andar em cima dos telhados da favela. A gente passava
muita fome. Cheirava cola para enganar a fome. A maconha já rolava entre os
mais velhos e a gente passou a fumar também.
Quando
eu tinha nove anos, a minha avó me vendeu para o sistema político vigente na
época, que era o jogo de bicho. Isso era uma prática comum aqui e no Morro da
Providência. E aí eu dei uma sorte danada. Pela misericórdia eu não fui
transformada em prostituta nem usada sexualmente por esse homem que me comprou.
Ele teve que me assumir como padrinho. Aí entra um sincronismo religioso. Ogum
nasceu na terra e deu a ordem. O bicheiro era muito ligado a São Jorge, que na
umbanda é Ogum. Eu dei essa sorte, aconteceram uns sinais.
Quando
eu tinha 11 anos, ganhei a primeira arma e fui trabalhar no barracão do bicho.
Limpava as armas, depois passei a fazer a contabilidade, registrar os
pagamentos dos agiotas, das putas, ia recolher o dinheiro. Até os 15 anos,
trabalhei intensamente para o jogo de bicho.
BBC - E depois você foi para o tráfico.
Como você compara os dias de hoje à época em que você, e antes o Naldo,
comandavam a venda de drogas no morro?
Oliveira - Hoje tem toda uma outra
tendência. Aquela coisa de heroísmo, do bandido Robin Hood, isso aí não existe
mais. Na minha época a gente era tratado como herói, pela falta absoluta de
assistência pública, de qualquer tipo de apoio do estado, dentro das favelas.
Mas a
história se repete. É uma história perpétua de luta pelo poder. Não é a luta
pela boca de fumo, pelos pontos de venda de drogas. A droga você vende em
qualquer esquina, vai ali no Baixo Gávea que tem gente vendendo. A disputa é
pelo poder. Vai muito além. Na minha época era pelo território. Hoje é por
poder econômico.
BBC - Como você recebeu a entrada das
Forças Armadas na sexta-feira passada?
Oliveira - Eu tive que ir para o meio
do fogo cruzado para buscar a minha neta na creche. Quando eu saí, estava
lotado de bandido aqui na entrada. E eu gritando, eu vou passar nessa p*rra!
Mais pra baixo, tinha um grupo de policiais acuados.
Com o
tiroteio, a gente nem se lembrou que era aniversário da minha mãe. Ela mora
comigo. Fez 88 anos no dia 22 (a sexta-feira em que os militares chegaram à
Rocinha). Quando a situação acalmou que a gente lembrou. Caramba! É aniversário
da velha. Aí compramos um bolinho e um sorvetinho na padaria e cantamos
um Parabéns. O pedreiro já tinha começado a tapar os buracos de tiros na
cozinha.
Eu
agradeço muito essa tomada do Exército, foi primordial. Se não tivesse
acontecido, não teríamos conseguido um pouco de paz, um período de rendição.
Mas fico
muito triste que os militares só vieram para acudir depois que a situação
chegou lá a São Conrado. Quando um ônibus foi incendiado no asfalto o
secretário de Segurança Pública (Roberto Sá) e o (governador Luiz Fernando)
Pezão voltaram atrás e admitiram que a Rocinha precisava de intervenção
militar. Enquanto isso a gente estava aqui vivendo o terror.
BBC - Em todos esses anos na Rocinha,
você viu alguma melhora? Você tem esperança que as coisas melhorem no futuro?
Oliveira - Eu sou completamente cética.
Não tenho esperança nenhuma de que vai acabar o tráfico de drogas. Sei o rumo
que isso vai ter e só peço a Deus que não sejamos entregues nas mãos do Comando
Vermelho (CV). Eu gostaria muito que a Rocinha continuasse nas mãos da ADA
(Amigos dos Amigos), porque se for para o CV, o que vai entrar na favela é o
crack, essa pá de cal (a ADA proíbe a venda da droga nas favelas que domina).
Aí vou fazer minhas malas e sair daqui. Porque não quero ver o cenário de
degradação que o crack traz.
A gente
fica nessa situação, entre a cruz e a espada. E não pode orar a Deus e pedir
para a polícia tomar conta, que vai virar milícia. Aí vai subir o morro e ter
que pagar pedágio. Eu me sinto assim num cenário nostálgico, vendo a história
se repetindo, se repetindo, se repetindo.
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