Editorial
A Constituição de 1988 foi um valioso instrumento para consolidar a
redemocratização do País, resgatando o respeito a importantes direitos e
garantias fundamentais. Deve-se reconhecer, no entanto, que ela também trouxe
alguns sérios problemas, que até hoje dificultam o desenvolvimento político,
econômico e social da Nação. Várias reformas constitucionais foram feitas, mas
os desequilíbrios ainda persistem e, em alguns casos, foram agravados. Basta
ver, por exemplo, o tratamento dado pelo texto constitucional a supostos
direitos, sem a necessária contrapartida e, pior, sem condicioná-los à
existência de recursos. Um grave problema fiscal foi introduzido no próprio
fundamento do Estado.
Outro sério problema institucional trazido pela Constituição de 1988
foi o tratamento dado ao Ministério Público, contemplado com uma autonomia que,
a rigor, é incompatível com a ordem democrática. Num Estado Democrático de
Direito não deve existir poder sem controle, interno e externo. Não há poder
absoluto. Explicitamente, a Constituição de 1988 não confere poderes absolutos
ao Ministério Público, mas, da forma como ele está organizado, sem hierarquia
funcional, cada membro da instituição torna-se a própria instituição.
Ao longo dos anos, esse problema foi agravado por dois motivos. Em
primeiro lugar, consolidou-se nos tribunais uma interpretação extensiva das
competências do Ministério Público. Obedecendo a uma visão unilateral, que
olhava apenas para os supostos benefícios de uma atuação “livre” do Ministério
Público, permitiu-se que procuradores se imiscuíssem nos mais variados temas da
administração pública, desde a data do vestibular de uma universidade pública
até a velocidade das avenidas. Parecia que o Estado nada podia fazer sem uma
prévia bênção do Ministério Público.
A segunda causa para o agravamento da distorção foi uma bem sucedida campanha de imagem do Ministério Público, que, ao longo dos anos, conseguiu vincular toda tentativa de reequilíbrio institucional à ideia de mordaça. Qualquer projeto de lei que pudesse afetar interesses corporativos do Ministério Público era tachado, desde seu nascedouro, de perverso conluio contra o interesse público. O resultado é que o País ficou sem possibilidade de reação.
Na prática, a aprovação no concurso público para o Ministério Público
conferia a determinados cidadãos um poder não controlado e, por isso mesmo,
irresponsável. Nessas condições, não é de assustar o surgimento, em alguns de
seus membros, do sentimento de messianismo, como se o seu cargo lhes conferisse
a incumbência de salvar a sociedade dos mais variados abusos, públicos e
privados. Como elemento legitimador dessa cruzada, difundiu-se a ideia de que
todos os poderes estavam corrompidos, exceto o Ministério Público, a quem
competiria expurgar os males da sociedade brasileira.
Nos últimos três anos, esse quadro foi ainda reforçado pelos méritos
da Lava Jato, como se as investigações em Curitiba conferissem infalibilidade
aos procuradores e um atestado de corrupto a todos os políticos. Os bons
resultados obtidos ali foram utilizados para agravar o desequilíbrio
institucional.
Construiu-se, assim, a peculiar imagem de um Ministério Público
inatingível, como se perfeito fosse. Basta ver, por exemplo, o escândalo
produzido quando o Congresso não acolheu suas sugestões para o combate à
corrupção. A reação dos autores do projeto foi radical: ou os parlamentares
aceitavam todas as vírgulas – com seus muitos excessos – ou seriam comparsas da
impunidade.
Pois bem, esse monopólio da virtude veio abaixo nos últimos meses de
Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ações radicais
e destemperadas deixaram explícita a necessidade de que todos, absolutamente
todos, estejam sob o domínio da lei, com os consequentes controles. Poder sem
controle não é liberdade, como alguns queriam vender, e sim arbítrio.
Na crise da PGR envolvendo a delação de Joesley Batista há uma
incrível oportunidade de aprendizado e de reequilíbrio institucional. Com impressionante
nitidez, os eventos mostram que também os procuradores erram.
Estadão
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