José de Souza Martins
De que
desigualdade se trata quando as estatísticas nos dizem que os ricos estão mais
ricos, e os pobres, imobilizados na mesma pobreza? Ricos de que e pobres de
quê? É claro que é esse um sinal de que a sociedade brasileira vai mal. Mas
onde está o conteúdo social dessa diferença? Milhões de brasileiros estão fora
das estatísticas, tanto os muito pobres quanto os muito ricos. Pouco sabemos
sobre a economia clandestina dos pobres e a economia oculta dos ricos. As
revelações da corrupção política apontam milhões de reais circulando por fora
da rede e dos meios fiscais de vigilância da decência econômica.
As diferentes
teorias do desenvolvimento capitalista nos dizem que é da natureza dos ricos
ficarem mais ricos. Se não o fazem, estão traindo a missão histórica que lhes
cabe, que é a de gestores da produção capitalista da riqueza. Foi Karl Marx
quem disse isso no primeiro tomo de "O Capital". Tenho notícia de um
único grande empresário brasileiro que foi leitor de Marx: Roberto Cochrane
Simonsen, um dos fundadores da Fiesp. O parceiro de Marx, aliás, foi um
industrial têxtil, Frederick Engels.
O
capitalista tem a responsabilidade social de administrar o capital que lhe está
nas mãos como bem privado, mas que é, de fato, um bem público pelas funções
sociais que tem. Ele é um funcionário de seu próprio capital, e não um patrão
de si mesmo. Fracassa quando é mau empregado. Essa impessoalidade foi analisada
por Max Weber em seu clássico estudo sociológico sobre "A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo".
Capitalista
que não acumula capital é o que vai a caminho da falência. Como é um traidor de
sua classe social o capitalista que acumula por meio da corrupção. O fracasso
do capitalista é o fracasso do sistema que lhe define a vocação, o chamamento
para fazer o sistema funcionar. Se ele não ficar cada vez mais rico, não atuará
empresarialmente para criar emprego para trabalho e remuneração dos mais
pobres, para integrá-los na sociedade de consumo, para fazê-los sujeitos da
sociedade baseada na premissa contraditória de que é uma sociedade de pessoas
juridicamente iguais e economicamente desiguais.
É esse o
fundamento da crítica social que faz da sociedade capitalista tema e referência
dos julgamentos morais. Julgamentos que dizem alguma coisa que não pode ser
ignorada por aqueles que tem a responsabilidade de assegurar o equilíbrio das
relações sociais e aquilo que se chama de justiça social.
Distribuição
desigual não é apenas distribuição desigual da riqueza, mas sobretudo
distribuição desigual da consciência social e dos meios culturais que permitem
a todos compreender as iniquidades constitutivas do sistema e a possibilidade
da sua correção.
Para
discutir as desigualdades sociais e a injusta distribuição da renda é preciso
ir muito adiante das estatísticas que nos dizem que os ricos ganham cada vez
mais e os pobres ganham o mesmo que ganhavam ou ganham menos. É necessário
fazer a listagem das iniquidades que respondem pela involução social na
evolução econômica. E isso não estamos fazendo. Não estamos fazendo a crítica
social e política do pseudoneoliberalismo que manda a conta dos riscos da
acumulação da riqueza aos desvalidos, aos aposentados, às futuras gerações, aos
pobres de meios para se defenderem da prepotência dos que tudo podem e nada
percebem. E não aos corruptos, aos inescrupulosos, ao Estado voraz de tributos
e mesquinho nas retribuições pelos tributos que recebe.
Desigualdade
não é só nem principalmente desigualdade de rendimentos. Desigualdade é,
também, desigualdade de percepção, compreensão e consciência das consequências
sociais dos ganhos desiguais e injustos, das privações que daí decorrem. As
desigualdades são socialmente constitutivas desta sociedade unicamente enquanto
os desiguais a aceitam e legitimam. Enquanto as vítimas com elas se conformam
na esperança de que nela ainda haja um lugar para si, seus filhos e netos.
Porém,
quando surge a consciência de que a desigualdade é expressão de uma iniquidade
sem saída, essa legitimidade desaparece. Estamos vivendo o momento perigoso
desse limiar do abismo. São tantos os indícios de revolta e indisciplina contra
as desigualdades sociais, em face da impunidade dos agentes da corrupção que as
acentua, um crime de lesa-pátria, da serenidade dos que nos tratam como idiotas
culturais, na indiferença ante nossa indignação, que não há como negar que
ultrapassamos a fronteira da reprodução serena do capitalismo subdesenvolvido
que é o nosso. É a difundida consciência de que talvez já não tenhamos presente
e que o futuro está ameaçado pela irresponsabilidade e insensibilidade dos que
nos iludem e nos enganam.
Valor Econômico
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