Carlos Andreazza
Com
capacidade de comunicação inferior à de Dilma Rousseff, o governo informou que
vai — ou quer — extinguir uma reserva na Amazônia. Não que comunicar melhor
tivesse efeito. Já ninguém mais ouvia. Neste país, é falar em exploração da
Amazônia — é mencionar qualquer pretensão produtiva para a região — e pronto.
Oh! Ah! Não! Não pode! Vão entregar aos chineses! Fora, Temer!
Neste
país perturbado, não há hipótese de uma reserva — de algo nomeado reserva — não
ser ambiental. Especialmente se na Amazônia. Falou-se em reserva, em manejar
uma reserva — e: Oh! Ah! Não! Estão vendendo o Brasil! Este é o lugar mental em
que estamos: o Parque Nacional Buraco da Indigência Intelectual. Nele, de
dimensão continental, não existe obviedade. Lê-se algo fluorescente como
Reserva Nacional de Cobre e Associados e só a raríssimos ocorre desconfiar de
que talvez aquilo não seja uma reserva ambiental, de que talvez haja pormenores
— variáveis — a respeito do território.
Que tal
ler o decreto?
Não. A
ordem unida prevalece. O sujeito escuta que é uma reserva, que fica na
Amazônia, que tem 47 mil quilômetros quadrados, extensão equivalente à da
Dinamarca, que vão lhe passar o trator, e fica imediatamente surdo para todo o
resto, inclusive para a informação com a qual um indignado honesto pouparia o
couro do bumbo: a Renca não é — nunca foi — reserva ambiental.
Mas o
que é?
Chegarei
lá. Antes, porém, é necessário afastar a histeria. Não sei se a Amazônia é
mesmo o pulmão do mundo, mas a idealização sobre sua absoluta intocabilidade,
para além de bafejar a falta de vocação brasileira para soluções equilibradas,
venta os ares mais poluídos a que endinheirados, alguns dos quais notórios
desmatadores em suas reservas particulares, à cata de expiar as culpas
consumidoras, tenham as boas intenções manipuladas. Não faltam marinismos para
tanto.
A
fotografia é curiosa: o sujeito é incapaz de localizar o Pará no mapa, mas é
ambientalista radical se o assunto é Amazônia. Até Gisele Bündchen — antiga
manequim de casacos de pele, no pescoço de quem certamente vão pedras cuja
procedência a proprietária ignora — bradou tuítes de indignação ambiental.
Jogar para a galera é irresistível. Mas: quem leu o decreto?
Poucos
assuntos serão mais ilustrativos do triunfo da idiotia entre nós do que o
pretenso debate acerca da subitamente descoberta — e de súbito apaixonante —
Renca. Pretenso porque debate não é. Não haverá debate onde uma parte comunica
mal e a outra ergue bandeiras sem que seus agitadores conheçam a realidade
contra a qual as deflagram. Isso tem outro nome: oportunismo — condição
fundamental à imposição de agendas que nem raramente são as do brasileiro,
inclusive o brasileiro amazônico.
Debate
pressupõe honestidade intelectual; impõe algum nível comum de ciência. Contudo,
a natureza própria à ignorância — o aterramento de nuances, a planície do
desconhecimento, a transformação da pluralidade amazônica em uma Amazônia só —
deriva numa desconcertante, diria imbatível, convicção do ignorante: quanto
menos sabe sobre alguma coisa, mais tem certeza a respeito do que seja. Isso
também tem outro nome: burrice — condição fundamental a que alguém, tanto
melhor se célebre, torne-se massa de manobra para a cobiça de grupos de
pressão.
Grita-se
que a reserva virtualmente extinta se sobrepõe a áreas de proteção integral e a
terras indígenas, mas a ninguém interessa ouvir que o status dessas não é — não
poderia ser, por força de lei — tocado pelo fim da Renca. Berra-se que se trata
de um Espírito Santo arreganhado à mineração, mas a ninguém interessa escutar
que apenas 21% dessa porção poderão ser minerados, e que isso principalmente na
forma de exploração subterrânea, menos danosa, ademais em zona já estabelecida
como de uso sustentável. Não interessa. Tampouco interessa saber que aquilo não
é um paraíso e que ali — sem o controle decorrente da extração profissional —
multiplicam-se pistas de pouso clandestinas e núcleos, mais de mil hoje, de
garimpo ilegal; esses, sim, devastadores. E há anos em atividade. Que artista
deu pio?
Não lhes
interessa o que a Renca realmente seja: uma reserva mineral, criada, em 1984,
para assegurar que, quando quisesse, apenas o Estado brasileiro a pudesse
explorar. Passados 33 anos, segundo o governo de turno, essa hora chegou — e,
felizmente, com a clareza de que a exploração deve caber à iniciativa privada.
Há um
ponto aqui.
Na
fundação dos protestos, estão, mais urgente que a verdade, o compromisso
político em rejeitar tudo quanto venha de Temer e, entranhadamente, o desprezo
pela ideia de empresa privada. Entre os que protestam, pouquíssimos serão os
genuinamente preocupados com o futuro — real — da região, ou estariam
empenhados em conhecer opções sustentáveis de exploração. Porque a exploração é
inevitável. Num país sério, aliás, teria lugar agora um debate sobre modelo
regulatório e categorias de aproveitamento seguro do solo.
Não será
desta vez. Mas ainda virá o dia em que o Brasil emergirá da puberdade para
escolher entre ser o que querem que seja — um jardim botânico — ou uma nação
capaz de cuidar de si e se mover, talvez até crescer, ao mesmo tempo.
Carlos Andreazza
Editor
de livros
O Globo
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