José Fucs
Para Flavio Gordon, a inteligência
de esquerda, que apoia o PT, também deveria responder pela corrupção ocorrida
nos governos petistas
O
antropólogo social carioca Flavio Gordon, de 38 anos, já apoiou o PT
e esteve até na posse de Lula em Brasília, em 2003. Nos últimos anos,
dizendo-se decepcionado com as práticas do partido no poder e incensado
pelas ideias de pensadores conservadores, como o filósofo e cientista político
alemão Eric Voegelin e o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, Gordon deu uma
guinada ideológica radical para a direita. Em seu novo livro “A Corrupção
da Inteligência – Intelectuais e Poder no Brasil” (Ed. Record), ele analisa
como a esquerda brasileira conquistou a hegemonia na área cultural e faz uma
crítica contundente ao papel submisso da intelectualidade nos governos
petistas. Em entrevista ao Estado, Gordon diz que os intelectuais de
esquerda “se tornaram cúmplices do poder” e também devem ser responsabilizados
pelos desvios ocorridos nos governos petistas.
Para começar, o senhor poderia dizer
a que exatamente se refere no livro ao falar dos “intelectuais”? Quem se
enquadra nessa categoria?
Uso o
termo “intelectual” em dois sentidos, um mais direto e outro mais crítico. O
sentido mais direto baseia-se no conceito adotado por Thomas Sowell,
intelectual e economista americano. No livroIntelectuais e Sociedade, ele
inclui nessa categoria, sem qualquer juízo de valor, todos os que vivem das
palavras, que se comunicam com o público, a “classe falante”. São professores e
estudantes universitários, principalmente das chamadas humanidades,
jornalistas, escritores, críticos, pessoas que lidam com a formação da opinião
pública. O sentido mais crítico, no qual me concentrei, é o de Antonio Gramsci,
o ideólogo do Partido Comunista Italiano, que vê o intelectual mais no sentido
orgânico, como aquele que exerce uma influência política em nome de um
determinado partido, que expressa mais ou menos os interesses da classe que ele
pretende representar. O Gramsci ampliou o conceito de intelectual e incluiu
artistas e influenciadores de opinião. Para ele, qualquer uma pode ser um
intelectual e contribuir para reforçar uma determinada visão política e
ideológica na sociedade. No livro, eu uso também o termo “inteligência” em dois
sentidos ambivalentes. Pode significar tanto a “classe” dos intelectuais,
quando se aproxima do conceito russo de inteligentsia, como um atributo
individual.
Quando o senhor fala em “corrupção
dos intelectuais” o que quer dizer com isso?
Estou me
referindo a um processo em que os intelectuais abdicam de sua função
primordial, de compreender e explicar a realidade, e querem interferir nos
acontecimentos, em especial nos campos político e social. O problema não é os
intelectuais se posicionarem politicamente. Isso sempre aconteceu, é natural. O
grande problema é conceber a atividade intelectual exclusivamente como
militância política. Um autor em que me baseio muito para criticar essa postura
é o francês Julien Benda. Ele escreveu um livro clássico em 1927 sobre isso,
intitulado A Traição dos Intelectuais, que teve muita influência na minha
formulação.
Na prática, como esse fenômeno se
manifestou no Brasil?
Depois
da vitória do Lula, em 2002, os intelectuais, que tradicionalmente assumem um
papel crítico em relação aos governos, se tornaram cúmplices do poder. A partir
do momento que o PT dominou a máquina estatal, o “aparelhamento” se
intensificou na área cultural. Houve um processo de “instrumentalização” da
cultura, em função dos interesses partidários, nas universidades, editoras,
redações de jornais, na chamada indústria cultural como um todo. Muitos
intelectuais tornaram-se meros reprodutores do discurso oficial do partido e do
governo. Outros ficaram em silêncio, adotaram uma postura de cumplicidade muda,
com receio de sofrer represálias, ser mal vistos, prejudicar seus ciclos de
relações. Foi um triste espetáculo.
O senhor pode citar um exemplo dessa
“promiscuidade” dos intelectuais com o poder no País?
O caso
do impeachment da Dilma foi escandaloso. Havia uma posição quase unânime na
academia, principalmente nas ciências humanas, contrária ao impeachment da
Dilma Rousseff. Tivemos até reitores de universidades federais se aproveitando
de seu papel institucional para tomar posição contrária ao impeachment, de uma
maneira claramente partidária e ideológica. Houve professores universitários de
destaque chegando a comparar o impeachment da Dilma com o nazismo. O
intelectual, o estudioso, tem de saber que uma coisa não teve nada a ver a
outra. Se ele está disposto a sacrificar a própria reputação, a própria
credibilidade, falando uma coisa dessas, é porque realmente a inteligência dele
já está bastante corrompida.
A corrupção dos intelectuais nos
governos do PT foi respaldada pela ideologia, estava a serviço de uma causa
Historicamente, de que forma se
iniciou esse processo no País? Como se criaram as condições para que isso
acontecesse?
A partir
da década de 1960, começou a haver uma ocupação de espaço no modelo gramsciano,
que prega a realização de uma revolução cultural antes da revolução
política. A ideia é que antes de se tomar poder do Estado deve se preparar o
terreno para quando os comunistas chegarem ao poder. Isso aconteceu nas
universidades, nas editoras e também nas redações dos jornais. Criou-se todo um
mecanismo de seleção de pessoas e de prestígios baseado nessa ideia de
afinidade político-ideológica de esquerda. Passou-se a associar qualquer intelectual
que não fosse de esquerda à ditadura. O pensamento conservador, liberal, foi
sendo gradativamente banido, tido como não legítimo. A direita no Brasil se
transformou num espantalho, numa fantasmagoria. Até a década de 1950, isso não
ocorria. Existia um debate profundo, até violento, entre grandes intelectuais
brasileiros, das mais diversas orientações políticas, inclusive nos jornais. As
discussões eram públicas. Hoje, na universidade, as opiniões são quase
homogêneas. Mesmo que as pessoas não concordem com essa visão, elas acabam não
se manifestando para não ter problemas.
Como o PT entra nisso?
Essa
influência crescente do Gramsci no Brasil acabou provocando a saída de membros
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que não concordavam com a visão soviética
de Luis Carlos Prestes, que era o grande líder da sigla. Muitos dos
intelectuais que introduziram Gramsci no Brasil depois foram fazer parte do PT,
no final da década de 1970 e começo da década de 1980, como os editores da
Civilização Brasileira, os tradutores Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho,
que morreu há pouco tempo, cuja participação na fundação do PT foi fundamental.
Então, o PT já nasceu mais ou menos nesse contexto, de mudança de postura de
integrantes do Partido Comunista para uma visão mais cultural. Aí, muito antes
de chegar ao poder, com a eleição do Lula, o PT já tinha conquistado essa
hegemonia cultural, como preconizava Antonio Gramsci. Quando o PT chegou ao
poder, foi quase como uma coisa inevitável. Toda a narrativa era
“finalmente chegou o Partido dos Trabalhadores”, “o encontro do
Brasil consigo mesmo”, "a festa da democracia". Já havia todo um
exército de intelectuais, jornalistas, formadores de opinião criando essa
narrativa, preparando a sociedade para receber o PT. Quando o partido
conseguiu chegar ao poder do Estado, já com a hegemonia cultural, foi muito mais
complicado tirá-lo de lá.
No livro, o senhor diz que, por
causa dessa postura, os intelectuais que sustentavam o PT também deveriam
ser responsabilizados pelo que aconteceu nos governos petistas. Faz sentido
culpá-los pelo envolvimento do partido em atos de corrupção?
Evidentemente,
não digo que haja uma relação direta entre os políticos do PT envolvidos em
corrupção e os intelectuais que os apoiam. O vínculo dos intelectuais com os
acontecimentos se dá pela forma como eles abordam ainda hoje a corrupção
praticada pelos integrantes do partido. O PT foi a única agremiação que tinha
por trás um exército de “corruptos intelectuais”, como eu os chamo, que lhe
dava respaldo cultural e intelectual. Foi uma corrupção respaldada pela
ideologia, a serviço de uma causa, em vez da corrupção tradicionalmente
praticada no País. Quando você tem uma justificativa moral para o seu delito,
ele tende a ser ainda mais grave, a se espalhar e a atrair mais adeptos.
O PT nunca teria chegado às
dimensões que chegou sem o apoio dos intelectuais
Até que ponto os intelectuais
tiveram um papel tão relevante na ascensão do Lula e do PT, como o senhor diz?
O poder
cultural é de muito longo prazo. Há o poder econômico, o político, o militar e
o cultural. Apesar de menos impactante de imediato, no longo prazo é o
poder intelectual que vai moldando o imaginário das pessoas, construindo as
narrativas, sedimentando as emoções e os sentimentos das pessoas. Então, o
processo de conquista do poder pelo PT foi muito de longo prazo. Isso começou
com um círculo pequeno de intelectuais, quando as ideias do Gramsci começaram a
chegar para valer no Brasil, nos final dos anos 1960, bem antes de o PT surgir.
Aos poucos, a coisa foi se espalhando e atingindo aquelas pessoas que estão na
periferia da academia, que se formaram, mas não seguiram carreira acadêmica,
como jornalistas e publicitários, que são muito suscetíveis à influência desses
medalhões acadêmicos. A partir daí, as ideias começaram a circular através
desses mediadores e foram chegando nos valores, na indústria cultural, na
televisão. Foi isso que permitiu ao PT gozar durante muito tempo de certa
imunidade de críticas. O PT era tratado até pouco tempo atrás como o partido da
ética. Em vários momentos, criticar o Lula era algo visto como preconceito de classe,
de região. Trata-se de um mecanismo supereficiente de silenciar as críticas e
de proteção aos políticos petistas.
Agora, o senhor
afirma que sem o apoio dos intelectuais o Lula e o PT não teriam
chegado aonde chegaram. Não há certo exagero nessa visão?
Acredito
que não, porque é justamente isso que cria a imagem mítica do Lula, em
contradição com a realidade dos fatos. É isso que faz com que exista uma
militância disposta a segui-lo, porque tem toda uma camada de mistificação,
criada pelos intelectuais, pelos agentes culturais, impedindo as pessoas de
visualizar a realidade. Só isso explica que, nesta altura do campeonato, o Lula
ainda tenha algum capital político. Se fosse qualquer outro, que não se
beneficiasse dessa hegemonia cultural, já estaria liquidado. Eu costumo usar o
exemplo do Demóstenes Torres, do DEM, que era um nome conservador. Depois que
se revelou aquele escândalo dele, da ligação com o Carlinhos Cachoeira, aquela
coisa toda, a carreira do homem simplesmente acabou. Ninguém saiu na rua para
defender o Demóstenes Torres. Não houve intelectuais, jornalistas, artistas
defendendo o Demóstenes. Isso é que chamo de poder cultural, para manter os
cargos de poder, promover a mistificação dos políticos do partido. Sem isso, um
partido não se mantém durante muito tempo no poder.
O senhor não está sobrevalorizando o
papel dos intelectuais no PT?
Um dos
insights que eu tive para escrever o livro foi tratar o PT não como Partido dos
Trabalhadores, mas como Partido dos Intelectuais. Para mim, a base do PT são os
intelectuais. O PT nunca teria chegado às dimensões que chegou sem o apoio dos
intelectuais. Houve o movimento sindicalista, mas se o PT fosse só isso teria
sido um fenômeno restrito. Tanto que a base que sobrou hoje, depois de o PT
virar um partido relativamente popular, durante um período efêmero na sua
história, foram os intelectuais, os acadêmicos, os universitários marxistas e
gramscianos. Na verdade, o reduto do PT está na intelectualidade, na
inteligência de esquerda brasileira. Inclusive, quando o PT surgiu, gabava-se
muito disso.
Esse grupo que o senhor menciona,
apesar de muito ativo politicamente, sempre foi muito pequeno. Como
conseguiu alcançar esses resultados?
Há um
grupo mais ativo, doutrinário, que é pequeno, mas muito bem posicionado. Há
também os medalhões acadêmicos nas principais universidades federais, que usam
suas posições para fortalecer essa hegemonia. Finalmente, há o grupo dos que se
acomodam por causa desse mecanismo de hegemonia de que eu falei. Ele não
se envolve no processo de maneira consciente, para que o deixem em paz,
para que possa seguir sua carreira acadêmica sem percalços, porque se não
fizer isso vai sofrer muita pressão. No livro O Poder dos Sem Poder, o
escritor e intelectual tcheco Václav Havel desenvolve o conceito do sistema
pós-totalitário, num contexto que a União Soviética e os países satélites estão
iniciando um processo de abertura. Mas mesmo com essa abertura, ele mostra que
o sistema não acabou, mas tornou-se um totalitarismo mais silencioso, mais
sutil. Isso acontece não só na academia, mas nas redações também. Tenho muitos
amigos jornalistas que dizem que, em certos momentos, têm medo de expressar
suas opiniões.
A esquerda associava os críticos do
PT à elite, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião pública
Ao falar da hegemonia cultural da
esquerda no Brasil, o senhor critica também o PSDB. Qual o papel do PSDB nisso
tudo?
Acredito
que o PSDB teve um papel fundamental. Não o PSDB como um todo, mas o seu núcleo
duro, o Fernando Henrique Cardoso, o José Serra. O Fernando Henrique,
principalmente, foi um dos que estavam plenamente conscientes da estratégia de
repartir o campo político brasileiro entre versões de esquerda, de banir a
legitimidade política de qualquer coisa que não pertencesse às correntes da
esquerda. A única direita permitida passou a ser a direita da esquerda. O
PT e o PSDB têm as suas origens intelectuais na Universidade de São Paulo (USP)
e travam uma disputa intestina pela hegemonia político-cultural da esquerda no
país. O PSDB segue uma linha mais social-democrata, que pensa mais em
resultados de longo prazo. Um termo que ficou muito na moda e agora acabou se
tornando meio ridículo, mas que tem uma base real, é o tal do socialismo
fabiano. De tanto o pessoal ter feito mau uso do termo, ele acabou perdendo o
sentido, mas é bom recuperar o significado original. Ele designa os socialistas
britânicos que tentavam um modo gradualista de instaurar o socialismo. No
Brasil atual, essa turma é o PSDB. O PT tem uma visão mais radical,
mais imediatista. Mas eles são “inimigos-irmãos”, como socialistas e comunistas
na Europa, girondinos e jacobinos, mencheviques e bolcheviques. No fundo, com a
estratégia do Gramsci, essas coisas se fundiam, havia muito diálogo entre eles.
Essa oposição entre PT e PSDB é mais jogo de cena. Ela se dá muito mais em
contexto eleitoral, de disputa de cargos, do que no contexto de disputa
política no sentido mais nobre do termo.
Dentro do PSDB também tem gente como
o João Doria, prefeito de São Paulo, e o Geraldo Alckmin, governador paulista.
Não é preciso separar essas correntes que atuam no PSDB?
É
verdade, há diferenças. Mas o Doria está surgindo agora. A gente não sabe
direito o que ele é, nem se vai permanecer no PSDB. Agora, ele é meio um outsider do
PSDB, tanto que não conta nem um pouco com a simpatia desse núcleo duro. O
Alckmin, também, é um pouco democrata cristão, um pouco mais centrista. De todo
modo, a esquerda se expande através de suas diferenças. Isso está meio que no
DNA da esquerda, a ideia de uma evolução dialética. A direita, ao contrário,
costuma se enfraquecer com os rachas internos. No momento, inclusive, a
direita está vivendo uma disputa acirrada, muito feia, no Brasil. De repente,
surgiu um pequeno espaço para a direita no País e tem gente indo com muita sede
ao pote. Com a oportunidade de conquista do poder, acaba havendo uma disputa
por posição, de vaidades. Mas é meio natural, nesse processo de renascimento da
direita no País nos últimos anos, que cada um puxe para o seu lado.
O senhor afirma que, nos governos do
PT, a esquerda recorreu a todos os expedientes possíveis para reforçar sua
hegemonia na área cultural. Como isso aconteceu?
Basicamente,
por meio do assassinato de reputação, da mobilização de agentes de influência
em jornais, na academia, para deslegitimar quem ousasse alertar a opinião
pública para o que vinha ocorrendo. A esquerda fazia associações entre os
críticos ao PT e a elite, dizia que eles não gostavam do povo. Na época da
União Soviética, os comunistas já faziam isso para demonizar os críticos do
partido. É um fenômeno que autor frances Jean Sévillia chamou de “terrorismo
intelectual”, em referência ao papel desempenhado pelos intelectuais franceses
depois da Segunda Guerra, que se aplica perfeitamente ao que aconteceu nas
últimas décadas no Brasil e se intensificou nos governos do PT. Tivemos até
alguns casos de violência, como ocorreu com aquela blogueira cubana, a Yoani
Sánchez. Ela foi recebida por um grupo de militantes estudantis com muita
violência e até impedida de dar palestras no País na base da força.
Os principais nomes do pensamento
conservador são inexistentes na academia brasileira
O senhor também tem uma postura
muito crítica em relação ao Jornalismo nesse processo. Afirma que o Jornalismo,
como a academia, foi essencial para sustentar o projeto do PT. Quer dizer que,
no final, a culpa de tudo que aconteceu é da Imprensa?
Acredito
que a Imprensa tem uma parte significativa de culpa, por ter evitado por muito
tempo fazer críticas mais contundentes ao PT. A criação do Foro de São Paulo,
organizado por Lula e Fidel Castro, durante muito tempo quase não repercutiu na
Imprensa. Basta fazer pesquisa nos arquivos dos jornais. Toda aquela ligação do
PT com a Venezuela, a Bolívia, o Equador, que era um projeto continental, o
socialismo do século 21, não recebeu o tratamento devido. Depois do colapso da
União Soviética, eles tinham o projeto de reconquistar o terreno perdido, de
fazer na América Latina uma espécie de nova União Soviética. Ainda hoje todo o
simbolismo é aquele simbolismo arcaico do comunismo, do imperialismo americano,
é o mesmo vocabulário que se usava na década de 1960. A Imprensa teve um
papel muito importante em não tornar isso conhecido e colocar esse tema no
debate público. Não estou dizendo, obviamente, que todo mundo na Imprensa é
petista Agora, até os críticos do PT restringiam suas críticas a alguns pontos
e deixavam outras questões importantes de lado. Criticavam a corrupção, a má
gestão, mas não tratavam desse projeto em comum, do Foro de São Paulo, desse
projeto totalitário. Mesmo os críticos da esquerda brasileira acabam cedendo à
narrativa da esquerda europeia e americana ao cobrir os acontecimentos na
Europa e nos Estados Unidos.
Em sua opinião, como essa postura da
Imprensa se manifesta no dia a dia?
Algumas
agendas são tratadas como se fossem uma unanimidade. Por exemplo, o aborto.
Quase toda a imprensa aborda isso como um direito das mulheres, uma evolução, e
trata quem é contra como atrasado, arcaico, fundamentalista. Com as questões do
direito ao porte de arma, da maioridade penal, acontece a mesma coisa. Nas
redações, a maioria dos jornalistas – você sente isso pela cobertura – é
contrária a essas ideias. O próprio vocabulário usado no noticiário reforça
essa percepção. Toda ideia que sai um pouco da bolha dos jornalistas é tratada
de forma pejorativa. Toda a direita costuma ganhar os sufixos ultra ou extrema,
mas você não vê quase nunca o uso do termo “extrema esquerda” ou
“ultraesquerdista”. O ex-ombudsman do New York Times, Arthur Brisbane,
falava que havia um progressivismo cultural nas redações dos grandes jornais
americanos. Não vejo esse tipo de autocrítica no Brasil, com raras exceções.
O senhor conta no livro que não
apenas votou no Lula em 2002, como foi à Brasília, para a posse. Hoje, se diz
um liberal conservador. O que o levou a essa guinada ideológica? Alguma
decepção, algum ressentimento?
Foram
várias coisas que se combinaram para eu dar essa virada à direta. De um lado,
percebi que nunca fui de esquerda por convicção. Era de esquerda porque todo
mundo era, porque ser de esquerda era, digamos, como respirar. Fazia parte da
cultura da minha geração. Se não fosse de esquerda, não era bem aceito nos
lugares, virava praticamente um ET. Por outro lado, estudei no IFCS, o Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que é um dos núcleos da esquerda
carioca há décadas. Com a convivência muito próxima com o pessoal de esquerda,
fui percebendo uma série de incongruências entre o que eles falavam e o que
faziam. Eu lembro que um dos momentos em que tive de profunda vergonha de mim
mesmo foi no começo da faculdade. Eu me vi numa situação com um grupo de
militantes estudantis do PC do B e do PT, fechando a Avenida Passos, no centro
do Rio de Janeiro, na hora do rush, protestando contra o FMI, e o Fernando
Henrique, no governo dele. Aí, eu observei o olhar descompromissado da
população que circulava na região, os motoristas, o pessoal indo
para o trabalho, e fiquei morrendo de vergonha. Aquilo me marcou profundamente.
Eu pensei: essa manifestação aqui está falando do povo, mas não do povo real e
sim de uma criação poética da própria esquerda. O pessoal não estava preocupado
com as pessoas de carne e osso.
Quais foram os pensadores que mais
influenciaram essa sua guinada à direita?
Comecei
a tomar contato com a literatura conservadora mais recentemente, com autores
como o economista americano Thomas Sowell e o filósofo e cientista político
alemão Eric Voegelin, e fui me identificando com essas ideias. Vi que tinha um
substrato filosófico, teórico, para essas coisas em que eu sempre acreditei.
Sempre fui um pouco desconfiado com a ideia de tentar realizar ideias criadas
em laboratório. O filósofo Olavo de Carvalho também foi muito importante para
mim nesse processo, um autor que me abriu uma série de referências que não tive
na faculdade. Os principais nomes do pensamento conservador são inexistentes
dentro da academia brasileira. Comecei a me voltar para uma tradição mais
clássica e também para a filosofia medieval, escolástica. Li bastante Santo
Agostinho, que teve um impacto muito profundo em mim. Tudo isso foi
sedimentando uma visão mais sólida e mais consistente. Comecei a ler também
muitos críticos da esquerda, ex-intelectuais de esquerda, sobretudo do leste
europeu. Além disso, é claro, teve também todo o efeito da atuação da esquerda
quando assumiu o poder no Brasil. Comecei a ver que era uma coisa perigosa, o
aparelhamento, a mentalidade totalitária de lidar com a sociedade, o inchaço do
Estado, tudo isso que aconteceu no País. No fundo, essa minha virada ideológica
foi uma redescoberta, meio que uma volta às ideias que eu havia abandonado
durante uma parte da vida para me acomodar ao ambiente que me circundava.
A candidatura de Jair Bolsonaro
representa os anseios de uma parte da direita brasileira
O senhor afirma que o Olavo de
Carvalho foi um dos teóricos que marcaram o seu pensamento. Ele já se declarou
várias vezes a favor da candidatura do deputado Jair Bolsonaro à presidência em
2018. O senhor concorda com ele?
O debate
de nomes agora é muito prematuro. Mas acho que o Jair Bolsonaro representa uma
parte das pessoas que se levantaram contra a esquerda durante esse período. É
uma candidatura legítima, que representa os anseios de uma parte da direita
brasileira, que não estão sendo correspondidos pela estrutura política do País,
que não vinham tendo canais de expressão. Mas prefiro não entrar em discussões
eleitorais no momento. Falta um ano ainda para as eleições e precisamos ver se
esses nomes que estão surgindo agora vão se efetivar, quais partidos terão
candidatos. Acredito que é o momento de discutir a política no sentido mais
amplo, questões sociais mais profundas.
Na economia, as declarações de
Bolsonaro mostram que as ideias dele são muito próximas das que o PT, o Lula e a
Dilma defendem, como uma intervenção estatal muito forte na economia, aquela
coisa do “Brasil grande” do Geisel. Como alguém que se diz liberal-conservador
pode apoiá-lo, com essa plataforma econômica?
Mais uma
vez, prefiro não entrar nessa discussão agora. Acho que não tem muito a ver com
as questões mais duradouras de que trato no livro. A própria economia deve ser
vista dentro de um contexto cultural. O Brasil tem muitos problemas a resolver
antes de a gente discutir programas econômicos.
O senhor diz que o livro foi a sua
“carta de alforria”. Por quê?
Estou me
referindo especificamente à linguagem da academia. Durante mais de 11 anos, eu
me viciei pelo falso rigor, cheio de jargões e tecnicismos que predomina na
academia, distante da linguagem culta e da boa escrita. O livro é uma espécie
de libertação dessas amarras, onde eu pude me expressar como quis, de forma
mais compreensível, sem ficar preso às etiquetas acadêmicas. Olhar para quem
está fora da academia, não significa rebaixar a linguagem, mas falar linguagem
culta comum, que as pessoas letradas vão entender.
Estadão
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