Fernando
Limongi
Candidatura
avulsa favoreceria estrelas de TV e endinheirados
"Eu nunca submeti minhas opiniões ao credo de um partido, na religião,
na filosofia, na política, ou em qualquer outra coisa em que eu fosse capaz de
pensar por mim mesmo. Esse vício é a degradação mais completa de um agente
moral e livre. Se eu só pudesse ir ao paraíso juntando-me a um partido, eu não
iria lá de forma alguma." Esse é Thomas Jefferson, em tradução livre.
Sabe-se lá se Jefferson teve seu acesso ao paraíso franqueado, mas se sabe que,
quando tratou de chegar à Presidência, não hesitou em organizar o primeiro
partido político da era moderna.
Partidos políticos não são bem vistos. É natural que seja assim.
Jefferson sintetiza bem as razões desse descrédito generalizado. Integrar um
partido corresponderia à perda da independência e da autonomia, sacrificando o
juízo próprio.
Partidos, além disso, dividem a sociedade. Por definição, são partes
que querem governar a todos. Difícil conciliar as duas pontas desta proposição,
a de serem partes e a de pretenderem representar o interesse geral. Por isto
mesmo, não é difícil acusar partidários de se servirem do governo para promover
seus interesses particulares, de serem os veículos de que se servem os
ambiciosos para chegar ao poder.
No mundo ideal do governo representativo, não há lugar para partidos.
A política seria um reino frequentado apenas pelos indivíduos dotados de
autonomia moral, intelectual e econômica. Os verdadeiramente independentes
estariam acima dos interesses que dividem a sociedade e, porque dotados dessa
superioridade, seriam capazes de agir como magistrados, governando sem tomar
partido nas controvérsias que colocam os demais em confronto quando se trata de
discutir religião, filosofia e, sobretudo, distribuir bens materiais. Homens
com essas qualidades não se candidatariam; seriam convocados a servir ao
interesse público.
Neste modelo, somente os que tivessem garantida a sobrevivência - os
que não precisariam trabalhar para viver- deveriam se dedicar à política. Este
é o caso de Jefferson, cuja independência para agir como um 'agente moral
livre' estaria garantida pela sua fazenda e pelo trabalho de seus escravos.
Ecos deste mundo idealizado embasam as demandas recentes em prol das
candidaturas avulsas. Notícia recente no "JOTA" deu conta da
realização de uma Convenção Nacional para Candidaturas Apartidárias, cujo
objetivo seria 'concretizar o maior número de pedidos de registro de candidatos
independentes'. O movimento recebeu o apoio da União Nacional dos Juízes
Federais (Unajuf), cujo presidente, Eduardo Cubas, declarou que é preciso
começar a reforma política pelo "reconhecimento das candidaturas
avulsas".
Os termos utilizados merecem atenção: apartidários, avulsos e
independentes são usados como se fossem sinônimos, como se denotassem a mesma
coisa. Mais do que isso, chama a atenção que a União Nacional dos Juízes
encampe o movimento. Aí tem coisa, pois não? Ainda mais interessante é a
estratégia adotada, a de direcionar para Supremo Tribunal Eleitoral a
'responsabilidade' pela decisão. Em outras palavras, o Dr. Cubas quer contornar
a Constituição. Lá está escrito com todas as letras que candidatos devem se
filiar a partidos. Como juízes e promotores não podem se dedicar a atividades
político-partidárias, segue que não podem se candidatar a cargos eletivos.
Ou seja, o Dr. Cubas está advogando em causa própria. Mais do que
isso, quer que membros de seu próprio grupo, os juízes, decidam a questão. Como
todo ardil deste tipo, a demanda vem revestida da defesa do interesse geral,
como parte de uma reforma que livraria a política dos interesses sinistros dos
políticos profissionais. Para os membros da casta de toga, tanto quanto para
Thomas Jefferson, interessados são os outros. Interessante é que, no caso do
Dr. Cubas, a independência econômica é garantida pelo polpudo salário que
recebe do Estado.
A Procuradora-Geral da República veio em socorro da Unajuf e dos
demais interessados na questão. Em parecer enviado ao Ministro Luís Roberto
Barroso, responsável pela análise da questão no STF, a Dra. Raquel Dodge
argumentou que a filiação partidária não está entre as restrições à
elegibilidade elencadas pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil
é signatário. Restrições a juízes e membros do Ministério Público também não
são mencionadas, ainda que as relativas à instrução o sejam. O essencial é a
conclusão a que a Dra. Dodge chega: a de que a Justiça Eleitoral teria razões
para desconsiderar a vedação constitucional às candidaturas avulsas. Quando se
trata de fazer valer seus interesses, sempre se encontra uma forma elaborada
para ignorar o texto constitucional.
A ideia de que deveríamos ser governados por uma elite de homens
públicos desinteressados tem enorme apelo, mas não passa da mais pura
ingenuidade acreditar que candidaturas avulsas nos levariam a esse mundo
idealizado.
Digamos que a medida tenha o condão de estimular a entrada na política
de pessoas verdadeiramente independentes, desinteressadas e comprometidas
apenas com a coisa pública. Como os eleitores saberão distingui-los dos demais?
Para merecer o voto dos eleitores, um cidadão precisa se destacar dos demais,
precisa ser conhecido e reconhecido e isso não ocorre naturalmente, mesmo que a
disputa se restrinja a homens independentes. Neste caso limite, o candidato
teria que dar mostras de ser o mais independente entre todos os independentes.
Descendo à realidade, cabe pensar como os possíveis candidatos avulsos
poderiam se fazer conhecer pelos eleitores. É evidente que celebridades de todo
o tipo, incluindo os justiceiros, as estrelas de TV e os endinheirados, serão
os grandes beneficiários da reforma.
Valor Econômico
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