terça-feira, 21 de agosto de 2018

A corrupção que cerca Cristina Kirchner

FEDERICO RIVAS MOLINA

O maior escândalo de pagamento de subornos coincide com uma grave crise econômica e a rejeição dos argentinos em relação a sua classe política

“Minha memória, senhor, é como uma lixeira”, disse, da escuridão de seu quarto, o protagonista de “Funes, o memorioso”. A Argentina encontrou esses dias seu próprio Funes, mais vivo do que o da invenção literária de Jorge Luis Borges, mas igualmente necessitado da escrita para não esquecer. Oscar Centeno: esse é o nome do novo memorioso, que foi motorista de um alto funcionário dos governos de Néstor e Cristina Kirchner. Durante 10 anos, anotou em oito cadernos escolares centenas de viagens com bolsas cheias de dinheiro, produto de supostos subornos que empresas construtoras pagavam em troca de contratos com o Estado. “Os cadernos da corrupção”, como a imprensa argentina os chama, revelaram uma rede monumental que envolve ex-funcionários, empresários poderosos e até juízes, um escândalo sem precedentes que, como a Lava Jato brasileira, ameaça arrastar tudo.

Na Argentina há uma expressão que diz: “fulano ligou o ventilador”. Aplica-se a quem guarda segredos sujos e um dia, pelos motivos que sejam, decide espalhá-los a torto e a direito, besuntando de lama seus colegas de escândalo. Centeno foi o primeiro a ligar o ventilador, mas é a peça menos importante do quebra-cabeças. Seus cadernos chegaram em janeiro à redação do jornal La Nación e em abril às mãos do juiz Claudio Bonadio. Depois de quatro meses de análise, o magistrado ordenou a prisão de cerca de vinte pessoas, entre ex-funcionários kirchneristas e empresários. O nome que se destacou nessas primeiras levas foi o de Roberto Baratta, o número dois do ministro Julio De Vido no ministério do Planejamento.

Pelas mãos de De Vido passaram todas as obras públicas realizadas durante os 12 anos de kirchnerismo. Baratta, segundo se conclui dos escritos de Centeno, era o arrecadador do dinheiro sujo, fornecido por empresários dispostos a pagar para fechar contratos milionários. Na lista dos pagadores figuram nomes conhecidos na Argentina, como Roggio, uma das maiores construtoras do país, a Techint, a espanhola Isolux e a empresa Iecsa, do grupo Macri. Até 2016, Iecsa foi propriedade de Angelo Calcaterra, primo do presidente Mauricio Macri e hoje colaborador arrependido.

Nos cadernos de Centeno há detalhes obsessivos das viagens com dinheiro: horários, rotas, nomes e até o peso das bolsas quando foi impossível para ele calcular quantos milhões de dólares havia lá dentro. Mas todo esse monumental acúmulo de provas logo ficou pequeno diante da avalanche de delações. Os empresários envolvidos caíram um a um, e como em um clube cujo lema era “salve-se quem puder” ligaram seus próprios ventiladores em troca de benefícios judiciais. Todos se declararam vítimas de extorsão para justificar as contribuições por baixo dos panos.

O conteúdo de cada declaração judicial chegou e chega ainda quase de imediato a toda a mídia, que cansou de divulgar manchetes. O primeiro arrependido de peso foi Carlos Wagner, ex-presidente da Câmara de Construção durante o kirchnerismo. Wagner não hesitou em envolver dezenas de colegas, e o desfile pelos tribunais tornou-se interminável. Do lado dos cobradores a figura é Claudio Uberti, homem chave na rede de subornos, sobretudo porque em 2007 caiu em desgraça e hoje tem motivos para se vingar. Uberti falou de quartos cheios de dinheiro na casa de Néstor Kirchner, voos à Patagônia com malas transbordantes de dólares e até abóbadas ocultas.

Em todos os casos, as revelações passam por uma curva ascendente que leva até Cristina Fernández de Kirchner, considerada pelo juiz Bonadio como “a chefa” de uma associação ilícita para arrecadar fundos públicos. Uberti aponta diretamente contra ela em seu depoimento e disse que estava por dentro de tudo. Em uma carta aberta publicada na sexta-feira, a ex-presidenta acusou o Governo de Macri de fazer uma “evidente manipulação extorsiva da figura do arrependido” com o único objetivo de prejudica-la. “Os problemas judiciais que tenho”, escreveu, “são por ter afetado interesses econômicos muito poderosos que sempre tentaram obstruir as medidas que conduzi em benefício das grandes maiorias populares”.

Em duas semanas, o caso dos cadernos acumulou 14 presos, 13 testemunhas arrependidas e 43 indiciados. Mas haverá mais, e as consequências políticas são ainda tema de especulação. A rede colocou em evidência um sistema que está podre, com políticos enriquecidos com dinheiro público, empresários que levam vantagem à custa de subornos, juízes protetores e um eficiente sistema de lavagem de dinheiro. Há também outra má notícia. O escândalo coincide com uma grave crise econômica e o desânimo de uma sociedade que vive agoniada com as más notícias. “A dupla corrupção e inflação é fatal, a opinião pública não a tolera e o resultado é mau humor e desânimo”, afirma Mariel Fornoni, diretor da Management & Fit. “A questão dos cadernos e a economia que não decola formam um coquetel explosivo que complica o cenário de recessão”, acrescenta Juan Germano, da consultoria Isonomia.

O mau humor social joga contra Macri, que não conseguiu capitalizar o escândalo como esperava. E não só porque a trama envolve seu primo, herdeiro do conglomerado de empresas da família. A falta de confiança afeta toda a classe política, independentemente da tonalidade política. Cerca de 44,4% dos argentinos consultados pela Management & Fit disseram que os responsáveis pela rede não serão julgados e só 31% opinaram que sim. Outro dado revelador: 41% disse que a causa é uma estratégia para desviar a atenção dos problemas econômicos.

Macri está então diante de um cenário que o obriga a reescrever o relato que na campanha de 2015 o erigiu como um líder anticorrupção e exitoso estrategista econômico. “O desafio do Governo é vincular aquela corrupção com estes problemas econômicos. Os cadernos podem ajudá-lo, mas só se conseguir mostrar a corrupção como algo do passado”, diz Germano. Macri tem a seu favor o fato de que, segundo as pesquisas, não há político de oposição que neste momento capitalize o desânimo popular. Tem contra ele a evidência de que a Lava Jato argentina tem início, mas não se vislumbra um fim.

EL PAÍS

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