FEDERICO RIVAS MOLINA
O maior escândalo de pagamento de
subornos coincide com uma grave crise econômica e a rejeição dos argentinos em
relação a sua classe política
“Minha
memória, senhor, é como uma lixeira”, disse, da escuridão de seu quarto, o
protagonista de “Funes, o memorioso”. A Argentina encontrou
esses dias seu próprio Funes, mais vivo do que o da invenção literária de Jorge
Luis Borges, mas igualmente necessitado da escrita para não esquecer. Oscar
Centeno: esse é o nome do novo memorioso, que foi motorista de um alto
funcionário dos governos de Néstor e Cristina
Kirchner. Durante 10 anos, anotou em oito cadernos escolares centenas de
viagens com bolsas cheias de dinheiro, produto de supostos subornos que
empresas construtoras pagavam em troca de contratos com o Estado. “Os cadernos
da corrupção”, como a imprensa argentina os chama, revelaram uma rede
monumental que envolve ex-funcionários, empresários poderosos e até juízes, um
escândalo sem precedentes que, como a Lava Jato brasileira,
ameaça arrastar tudo.
Na
Argentina há uma expressão que diz: “fulano ligou o ventilador”. Aplica-se a
quem guarda segredos sujos e um dia, pelos motivos que sejam, decide
espalhá-los a torto e a direito, besuntando de lama seus colegas de escândalo. Centeno
foi o primeiro a ligar o ventilador, mas é a peça menos importante do
quebra-cabeças. Seus cadernos chegaram em janeiro à redação do jornal La Nación e em
abril às mãos do juiz Claudio Bonadio. Depois de quatro meses de análise, o
magistrado ordenou a prisão de cerca de vinte pessoas, entre ex-funcionários
kirchneristas e empresários. O nome que se destacou nessas primeiras levas foi
o de Roberto Baratta, o número dois do ministro Julio De Vido no ministério do
Planejamento.
Pelas
mãos de De Vido passaram todas as obras públicas realizadas durante os 12 anos
de kirchnerismo. Baratta, segundo se conclui dos escritos de Centeno, era o
arrecadador do dinheiro sujo, fornecido por empresários dispostos a pagar para
fechar contratos milionários. Na lista dos pagadores figuram nomes conhecidos
na Argentina, como Roggio, uma das maiores construtoras do país, a Techint, a
espanhola Isolux e a empresa Iecsa, do grupo Macri. Até 2016, Iecsa foi
propriedade de Angelo Calcaterra, primo do presidente Mauricio Macri e
hoje colaborador arrependido.
Nos
cadernos de Centeno há detalhes obsessivos das viagens com dinheiro:
horários, rotas, nomes e até o peso das bolsas quando foi impossível para ele
calcular quantos milhões de dólares havia lá dentro. Mas todo esse monumental
acúmulo de provas logo ficou pequeno diante da avalanche de delações. Os
empresários envolvidos caíram um a um, e como em um clube cujo lema era
“salve-se quem puder” ligaram seus próprios ventiladores em troca de benefícios
judiciais. Todos se declararam vítimas de extorsão para justificar as
contribuições por baixo dos panos.
O
conteúdo de cada declaração judicial chegou e chega ainda quase de imediato a
toda a mídia, que cansou de divulgar manchetes. O primeiro arrependido de peso
foi Carlos Wagner, ex-presidente da Câmara de Construção durante o
kirchnerismo. Wagner não hesitou em envolver dezenas de colegas, e o desfile
pelos tribunais tornou-se interminável. Do lado dos cobradores a figura é
Claudio Uberti, homem chave na rede de subornos, sobretudo porque em 2007 caiu
em desgraça e hoje tem motivos para se vingar. Uberti falou de quartos cheios
de dinheiro na casa de Néstor Kirchner, voos
à Patagônia com malas transbordantes de dólares e até abóbadas ocultas.
Em todos
os casos, as revelações passam por uma curva ascendente que leva até Cristina
Fernández de Kirchner, considerada pelo juiz Bonadio como “a chefa” de uma
associação ilícita para arrecadar fundos públicos. Uberti aponta diretamente
contra ela em seu depoimento e disse que estava por dentro de tudo. Em uma
carta aberta publicada na sexta-feira, a
ex-presidenta acusou o Governo de Macri de fazer uma “evidente manipulação
extorsiva da figura do arrependido” com o único objetivo de prejudica-la. “Os
problemas judiciais que tenho”, escreveu, “são por ter afetado interesses econômicos
muito poderosos que sempre tentaram obstruir as medidas que conduzi em
benefício das grandes maiorias populares”.
Em duas
semanas, o caso dos cadernos acumulou 14 presos, 13 testemunhas arrependidas e
43 indiciados. Mas haverá mais, e as consequências políticas são ainda tema de
especulação. A rede colocou em evidência um sistema que está podre, com
políticos enriquecidos com dinheiro público, empresários que levam vantagem à
custa de subornos, juízes protetores e um eficiente sistema de lavagem de
dinheiro. Há também outra má notícia. O escândalo coincide com uma grave crise
econômica e o desânimo de uma sociedade que vive agoniada com as más notícias.
“A dupla corrupção e inflação é fatal, a opinião pública não a tolera e o
resultado é mau humor e desânimo”, afirma Mariel Fornoni, diretor da Management
& Fit. “A questão dos cadernos e a economia que não decola formam um
coquetel explosivo que complica o cenário de recessão”, acrescenta Juan
Germano, da consultoria Isonomia.
O mau
humor social joga contra Macri, que não conseguiu capitalizar o escândalo como
esperava. E não só porque a trama envolve seu primo, herdeiro do conglomerado
de empresas da família. A falta de confiança afeta toda a classe política,
independentemente da tonalidade política. Cerca de 44,4% dos argentinos
consultados pela Management & Fit disseram que os responsáveis pela rede
não serão julgados e só 31% opinaram que sim. Outro dado revelador: 41% disse
que a causa é uma estratégia para desviar a atenção dos problemas econômicos.
Macri
está então diante de um cenário que o obriga a reescrever o relato que na
campanha de 2015 o erigiu como um líder anticorrupção e exitoso estrategista
econômico. “O desafio do Governo é vincular aquela corrupção com estes
problemas econômicos. Os cadernos podem ajudá-lo, mas só se conseguir mostrar a
corrupção como algo do passado”, diz Germano. Macri tem a seu favor o fato de
que, segundo as pesquisas, não há político de oposição que neste momento
capitalize o desânimo popular. Tem contra ele a evidência de que a Lava Jato
argentina tem início, mas não se vislumbra um fim.
EL PAÍS
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