Há quase
cinco décadas, a União tenta recuperar terras no interior de São Paulo que
foram cedidas pelo governo paulista a mais de 20 fazendeiros. Essa, contudo,
não é apenas mais uma disputa de posse que se arrasta há anos e foi parar na
Justiça. É também o caso mais antigo em tramitação no Supremo Tribunal Federal
(STF).
Ajuizada
em 1969, a Ação Cível Originária (ACO) 158 ostenta o título de ação mais antiga
da corte desde março de 2012, quando o tribunal julgou um processo que teve
início em 1959 e questionava concessões de terras por Mato Grosso. No mês
passado, o caso chegou a ser pautado para julgamento, mas não foi analisado. E,
como acabou retirado da pauta, ainda não há data prevista para chegar ao fim.
Essa
ação, que têm 16 volumes, 1,5 mil folhas e quatro apensos, também levanta a
discussão não apenas sobre o tempo de tramitação, mas também sobre a atuação do
STF. A corte tem 11 ministros e, até o início de março, contabilizava mais de
43 mil processos em curso, que não se limitam a questões constitucionais -
teoricamente aqueles nos quais o tribunal deveria se debruçar.
Há pelo
215 processos que tramitam no Supremo há pelo menos 20 anos.
Complexidade
Segundo
a Advocacia-Geral da União (AGU), o objeto da disputa é uma área chamada Campos
Realengos, próximo à Fazenda Ipanema, em Iperó (SP), que afirma ser de
propriedade da União. "É uma área onde funcionou uma fábrica de ferro na
época do Império, mas com a Constituição de 1891 o Estado de São Paulo entendeu
tratar-se de terras devolutas e fez a alienação a vários particulares",
explicou a AGU, por meio da assessoria de imprensa.
O lento
tramitar da ação mais antiga do STF, na avaliação da AGU, deve-se à grande
quantidade de réus e à discussão em relação à competência. Antes de ir para o
STF, o caso foi apresentado inicialmente à Justiça Federal em São Paulo.
"Só
a citação de todos os réus levou mais de uma década. Também foi necessário
remeter o processo para São Paulo para a instrução, em seguida o STF ficou mais
alguns anos instando as partes à conciliação", esclareceu.
A atual
relatora do caso, a ministra Rosa Weber, destacou em um despacho com data de
maio de 2016 o fato de se tratar da ação mais antiga em trâmite no STF.
"O
processo em exame é de fato peculiar, dada sua complexidade, multiplicidade do
polo passivo e, especialmente, tempo de tramitação, ao que tudo indica a lide,
da competência originária desta Casa, mais antiga ainda em trâmite",
destacou a ministra no despacho.
Weber
assumiu a relatoria dessa ação em dezembro de 2011. No entanto, segundo observa
a advogada Ana Paula Peresi de Souza, o primeiro despacho proferido pela
ministra que, de fato, retomou o andamento do processo ocorreu somente em março
de 2014.
Procurada
pela BBC Brasil, Rosa Weber não quis falar sobre o caso "devido ao
exercício da atividade jurisdicional".
Para
Flávia Santiago, doutora em Direito Público, o excesso de processos no STF é
uma variável que pode explicar trâmites tão longos.
"Devo
lembrar, porém, que a razoável duração do processo é uma garantia fundamental
constitucional, que demanda a organização da estrutura do Poder Judiciário para
sua concretização", diz a jurista, que tem se dedicado a estudar o STF.
Caso atípico
Mesmo
cientes da morosidade do Judiciário, juristas ouvidos pela BBC Brasil não
esconderam a surpresa em saber que uma ação tramita há quase 50 anos no STF sem
ter o mérito julgado.
A
advogada Ana Paula Peresi de Souza, especialista em Direito Administrativo e
Constitucional, analisou o caso a pedido da BBC.
Ela
também ressalta que a celeridade processual é um direito fundamental garantido
pela Constituição de 1988. Mas pondera que fatores distintos levam à recorrente
morosidade.
Peresi
de Souza observa que "os aspectos procedimentais que são inerentes a toda
e qualquer ação judicial e as falhas na gestão da máquina pública que resultam
em um Poder Judiciário pouco eficiente" parecem ser capazes de explicar a
demora na tramitação da ação.
Segundo
a advogada, há vários percalços processuais no caso da atual ação mais antiga
do STF. Além da multiplicidade de réus e concessão de prazos suplementares, ela
cita como exemplo a necessidade de substituir advogados que morreram e o
falecimento de réus, que exige procedimentos morosos para trocar defensores e
incluir os herdeiros no processo. Houve ainda reiteradas tentativas frustradas
de acordo.
Heloisa
Câmara, professora de Direito Constitucional no Centro Universitário Curitiba e
doutora pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), também destaca a
complexidade desse caso e afirma que o fato de a ação ter muitas partes aumenta
o prazo de citação e apresentação de contestação do processo. Como o caso
envolve conflito entre União e o Estado de São Paulo, diz Câmara, os prazos são
ainda maiores.
"Mas
ainda com todas as questões acima, é bastante atípico que um caso envolvendo
propriedade leve tanto tempo", observa a professora, ponderando que faz
parte das histórias do direito que processos complexos demorem décadas para
serem resolvidos.
A
especialista Flávia Santiago, por sua vez, diz haver ações mais antigas no STJ
(Superior Tribunal de Justiça). "Recentemente, noticiou-se uma ação da
família real brasileira, de 1895, que aguarda julgamento de recursos",
observa a especialista, referindo-se ao que se acredita ser o processo mais
antigo do país, com pouco mais de 120 anos. Trata-se de uma disputa sobre a
posse e a propriedade do Palácio Guanabara, sede do governo do Rio de Janeiro.
Brasil é exceção
Tanto a
professora Heloisa Câmara quanto a advogada Ana Paula Peresi de Souza salientam
que o Brasil é exceção quando analisados o tempo e a quantidade de processos da
mais alta Corte brasileira.
Para
Câmara, parte da explicação se deve ao fato de o Supremo ter uma competência
abrangente. Ela explica que o STF acumula competência originária (o caso é
proposto direto no STF, como ações penais de pessoas com foro privilegiado), recursal
(conhece casos através de recursos depois de decisão do juiz e tribunais) e
constitucional (julgar ações de controle de constitucionalidade nas quais se
discute se uma lei ou ato normativo é compatível com a Constituição).
Segundo
a professora, a tradição é que haja separação das competências. Ela cita como
exemplo a Suprema Corte americana, que "escolhe" os casos que julgará
a partir da relevância.
Assim,
colocadas lado a lado, as estatísticas do Supremo brasileiro e da Suprema Corte
americana impressionam.
A
advogada Peresi de Souza diz que em 2017, o STF recebeu 42,5 mil recursos e
15,4 mil processos. Na corte americana, por sua vez, entre 1º de abril de 2016
e 31 de março de 2017, 91 recursos foram admitidos para julgamento e 76
recursos foram, de fato, julgados.
"No
Brasil, foram criados na Reforma do Judiciário mecanismos para diminuir o
número de casos a serem decididos no STF, especialmente por via de recurso. Mas
o mecanismo só foi parcialmente bem-sucedido, visto que em 2017 foram decididos
126.524 casos (entre decisões monocráticas e colegiadas). Nos Estados Unidos a
Suprema Corte teve em torno de 100 casos decididos no mesmo período",
avalia a professora.
Solução
Ainda
que o STF esteja sobrecarregado de processos e com dificuldades de avaliá-los
em tempo considerado razoável, nem todo mundo, na prática, tem acesso à mais
alta corte ao país.
"Na
verdade, em um processo que tenha se originado na primeira instância, o acesso
ao STF é de grande dificuldade, pois, cada vez mais, são criadas verdadeiras
barreiras de caráter processual – transvestidas como "requisitos de
admissibilidade" – que impedem que os recursos sejam apreciados. Essas
barreiras são historicamente baseadas em jurisprudência daquele tribunal e não
na legislação", afirma Ana Paula Peresi de Souza.
Tanto
ela quanto a professora Heloisa Câmara defendem rediscutir a competência do STF
para tentar assegurar uma agilidade maior da mais alta corte.
Para
Peresi de Souza, o extenso rol de atribuições, que vão muito além de avaliar se
leis e atos estão de acordo com a Constituição, somado ao número limitado de
julgadores – 11 ministros – fazem do STF uma corte morosa.
"Enquanto
o STF tiver competências tão diversas e amplas não creio que haverá melhora
substancial do tempo do processo. Isso porque além de ter muitos casos para
julgamento, a forma de decidir é muito diferente. Conhecer questões de
constitucionalidade é muito diverso de analisar provas em processo penal, por
exemplo."
Heloísa
Câmara diz ainda ser necessário ter mais transparência para justificar quais
casos são julgados, enquanto outros estão há anos sem serem analisados ou sem
entrar na pauta de votação.
"Não
fica claro o critério utilizado, o que faz com que alguns casos tramitem
relativamente rápido e outros tenham que aguardar um tempo muito maior",
afirma Câmara.
Um
exemplo são as investigações e ações penais que tramitam contra suspeitos de
terem se beneficiado dos esquemas investigados pela Lava Jato.
O STF
ainda não condenou ou absolveu nenhum dos deputados, senadores e ministros
citados por delatores e alvos de investigação, cujos casos só estão sendo
analisados no tribunal porque eles desfrutam de foro privilegiado.
BBC
Brasil
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