FERNANDO SCHÜLER
As aulas
voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou
não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à
pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos livros de história e
sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma
livraria que dispunha de todos os exemplares e pus mãos à obra. Já li muita
coisa na vida, mas não foram fáceis as horas que passei tentando entender o que
se dizia em todos aqueles livros. No fim, acho que entendi.
O
resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um claro viés
ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou
particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica.
Talvez livros assim existam, e gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos
que me chegaram às mãos. Tudo livro “manco”. E sempre para o mesmo lado.
Com um
adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos
os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e reclamam do viés
“anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista
mesmo é o discurso que seu filho adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem
chance de reação, no colégio.
O viés
politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de
leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda
Star Wars: o lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins;
o lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos
“movimentos sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser
verdade. Mas está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão.
No
Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke
Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem mais
sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros didáticos. Em
particular, quando tratam de nossa história recente.
No livro
Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes
aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal
(apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os
“resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias
de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas
“pouca coisa se investigou”.
Nossos
alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e que o país
assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e da concentração de renda
e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela
reforma agrária, “sem sucesso”.
Na
página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula
Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na
história brasileira, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que,
graças à “política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da
miséria. Isso tudo faz a economia crescer e, como resultado: “telefones
celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte
do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de
consumo”.
Lendo
isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em
Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E
fui em frente.
Na
leitura seguinte, do livro História Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o
quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os
anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego
crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime
organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em
verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”,
transformadas em “centros de gerenciamento do tráfico e do crime organizado”,
acrescentam os autores.
Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro
termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os
anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um prognóstico: “as boas notícias
nos últimos anos indicavam que talvez os anos do pessimismo a toda prova já
tenham passado e, nesse caso, pode ser o momento do não negativo como um novo
paradigma para o Brasil”.
O livro
História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é
“neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões
arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos
investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa
vem no final: em seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou
“nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no
quarto andar do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de
Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola
(2001).
FHC
manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula
aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários
países africanos, asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os
especuladores; Lula beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”.
De quebra, “apoiou as indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a
se internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma
bandeira vermelha. Mas me contive.
O padrão
“João Santana” se repete no livro História para o ensino médio, da Atual
Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”. Alguma menção ao
julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal? Não.
Nossos
alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula,
incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela
imprensa liberal de oposição ao petismo”.
No livro
da Atual Editora, é interessante perceber o tratamento dado à América Latina. A
tensão política surge, como de regra, a partir da clivagem “contra ou a favor
do neoliberalismo”. Nossos alunos serão instruídos sobre a resistência
oferecida “à globalização capitalista neoliberal” pelo Fórum Social Mundial, de
Porto Alegre, e poderão saborear, sob o rótulo de “fonte histórica”, um trecho
do “manifesto de Porto Alegre”.
Sobre o
Mercosul, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído do bloco em
2012, em função do “golpe de Estado” que tirou do poder o presidente Fernando
Lugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro
de contestação à política de globalização capitalista liderada pelos Estados
Unidos”. Que “a classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as
transformações produzidas pelo chavismo, mas que, mesmo assim, o comandante
“conseguiu se consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma
informação? Alguma opinião crítica para dar uma equilibrada no jogo e permitir
que os alunos formem uma opinião? Nada, por óbvio.
Interessante
é o tratamento dado às ditaduras na América Latina. Para os casos da Argentina,
Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando, no detalhe, os horrores do
autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas da América Latina, de
Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Victor Jara,
executado pelo regime de Pinochet, e uma sequência de indicações de filmes
sobre a “resistência” e a luta pelos direitos humanos, no continente. Tudo
perfeito.
Quando,
porém, se trata de Cuba, a algumas páginas de distância, a conversa é
inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista.
Em vez de filmes como Antes do anoitecer, sobre a repressão cubana ao escritor
e homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir
Diários de motocicleta, Che, e Personal Che.
Não
deixa de ser engraçado. Quando fala da Argentina, o livro sugere uma “Visita ao
patrimônio” no “Parque da Memória”, uma (justa) homenagem às vitimas do
terrorismo de Estado, em Buenos Aires. Quando trata de Cuba, a “visita ao
patrimônio” sugerida pelos nossos isentos autores é ao “Museu da Revolução”,
com especial recomendação para observar o “pequeno iate” em que Fidel e Che
aportaram para a gloriosa revolução. E, imperdível: uma salinha, o rincón de
los cretinos, feita para ridicularizar tipos como Batista, Reagan e Bush.
As
restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como “contradições”
da revolução. Alguma palavra sobre os balseros cubanos? São milhares, neste
mais de meio século. Alguma fotografia, sugestão de filme ou “link cultural”?
Alguma coisa sobre o paredón cubano? Há fotos muito boas sobre estes temas, mas
nenhuma aparece em livro nenhum.
Alguma coisa sobre Oswaldo Payá, Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta pelos direitos humanos na Ilha? Alguma coisa sobre as “Damas de Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada sobre isto. Não terão essa informação para que possam produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
Alguma coisa sobre Oswaldo Payá, Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta pelos direitos humanos na Ilha? Alguma coisa sobre as “Damas de Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada sobre isto. Não terão essa informação para que possam produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
A
doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos dos livros de história
para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de rede, da
revolução maker, da explosão dos coworkings e da economia colaborativa, nossos
jovens aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas
malvados x heróis da “resistência”. Em vez de encarar de frente o século XXI e
suas incríveis perspectivas, são conduzidos de volta a Manchester do século
XIX.
Não acho
que superar esse problema seja uma tarefa trivial. A leitura desses livros me
fez perceber que há um “mercado” de produtores em série de livros didáticos
muito bem estabelecido no país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a
passividade de pais, professores, diretores de escolas e autoridades de
educação. Pessoas comprometidas com uma visão política de mundo e dispostas a
subordinar o ensino das ciências humanas a essa visão. Sob o argumento malandro
de que “tudo é ideologia”, elas prejudicam o desenvolvimento do espírito
crítico de nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação
brasileira."
Fernando L. Schüler
Doutor
em Filosofia (UFRGS) e Professor do Insper. É titular da Cátedra Insper Palavra
Aberta e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento.)
Época/Globo
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