DANIEL VERDÚ
O partido é um nítido reflexo do
clima de decomposição e exaustão dos italianos
As
pessoas comuns haviam conquistado Roma. Virginia
Raggi, uma desconhecida advogada de 38 anos, arrasou nas urnas, com quase
70% dos votos. Saiu à sacada, como uma pessoa qualquer, e chorou de emoção.
Depois tentou mudar uma cidade que acabava de se livrar de um prefeito por
inventar notas fiscais falsas e descobrira que a máfia não era só uma coisa do
sul. Dois anos depois, é difícil manter a conta dos assessores e
diretores-gerais demitidos, o lixo continua nas ruas, e Raggi se encontra a um
passo de ser processada por falso testemunho. Mas os efeitos eleitorais, também
em nível nacional, são nulos. A resposta sempre é a mesma: seus antecessores
foram piores. O pós-fascista, o ladrão... E o Movimento
Cinco Estrelas, que faria de Roma uma bandeira, não recuou nem um milímetro
nas pesquisas. Hoje continua liderando todas as pesquisas (com cerca de 29% das
intenções de voto) para ganhar as eleições nacionais deste domingo.
Roma
forneceu muitos dados sobre esse imparável fenômeno. O eleitor do M5S – fundado
pelo comediante Beppe
Grillo e pelo já falecido empresário da comunicação Gianroberto
Casaleggio – não é impermeável à realidade. Mas prefere arriscar a
voltar ao de sempre. É o caso de Andrea Natoli, 41 anos, dono uma pequena
empresa. Segue desde o primeiro dia o blog do movimento que deu origem ao
partido. “É a última ameaça democrática. Quero votar em alguém que pelo menos
ainda não roubou. Prefiro um incompetente a um ladrão. A política é hoje como
um estádio, aqui só há torcedores da esquerda ou da direita. Falta uma ideia
objetiva, mais prática.”
Mas o
partido é também o tubo de ensaio que melhor explica o clima de decomposição
política e exaustão que domina a Itália neste momento. Seu ímpeto eleitoral é
muito poderoso – Matteo
Renzi e Silvio Berlusconi pactuaram
uma lei eleitoral feita sob medida para freá-lo –, e se mostra à prova de erros
e acertos. O cientista Giovanni Orsina, professor da LUISS (Universidade
Internacional Livre dos Estudos Sociais), acredita que seus eleitores são
impermeáveis porque “é uma eleição desesperada”. “Prevalece a ideia de que, por
mais inexperientes que sejam, sempre serão melhores que os outros. O ponto de
inflexão será quando seus eleitores começarem a achar que são como os outros”,
acrescenta.
Há duas
semanas, a imprensa imaginou que esse momento havia chegado. Luigi di Maio, um
candidato de 31 anos cuja experiência se resume a uma legislatura no
Parlamento, empalideceu e interrompeu a campanha. Uma investigação do programa
televisivo da Mediaset Le Iene (uma espécie de CQC) revelou que
até 12 parlamentares do M5S haviam apenas fingido devolver parte do seu
salário, como obriga seu código de conduta. O rombo chegava a 1,4 milhão de
euros (5,6 milhões de reais). Um torpedo que atingiu a linha de flutuação moral
da agremiação. Mas seus eleitores, segundo as novas pesquisas, não acharam que
isso fosse grave.
O M5S já
não é mais um experimento. Tem hoje 45 prefeituras, 15 eurodeputados, 92
deputados nacionais, 36 senadores e 1.700 vereadores. Sua lógica funciona por
outros caminhos. Quanto mais cansaço existe com o sistema político – e Roma é a
quintessência dessa exaustão –, mais vibrante é seu pulso eleitoral. Um terço
dos seus votantes tem menos de 35 anos, e seu espectro ideológico se reparte
quase simetricamente entre a direita e a esquerda, como aponta o deputado
cincoestrelista Luza Frusone, num bar próximo ao Palácio de Montecitorio. “Populismo? Associo isso a
demagogia, e nossas propostas estão argumentadas. Acredito que essa definição
esteja mais perto da Liga [um partido de direita].”
A Itália, um país envelhecido
demográfica e institucionalmente, alimentou um virulento rechaço à velha
política por parte de seus eleitores mais jovens. Diante de um alto índice de
desemprego juvenil (36%), cerca de 30% dos eleitores que votam pela primeira
vez afirmam sua intenção de optar por um partido que tem o selo da inovação em
tantos aspectos. Foi o primeiro a nascer de um blog, o primeiro na Europa a
estar desideologizado, e o precursor em ganhar eleições – se não fosse pelo
voto do exterior em 2013 – sendo uma formação recém-nascida e surgida de uma
empresa privada, a consultoria política Casaleggio Associati (que
na prática controla a organização). Mas nisso, na verdade, houve um precedente
que oferece algum contexto.
Em 1994,
um empresário milanês que fizera fortuna com um império midiático e forjara sua
fama de ganhador com uma espetacular equipe de futebol fundou o Força Itália,
candidatou-se e ganhou. Já naquela época, Silvio Berlusconi também surfou numa
enorme onda de descontentamento provocado pelo Tangentopoli, o maior escândalo
de corrupção da história da Itália. “Quando chegou, em 1994, parecia a apoteose
da antipolítica. Um homem sem cultura parlamentar, que falava uma linguagem
simplificada, empresarial. Hoje o M5S levou a antipolítica berlusconiana à
perfeição. Mas são uma total incógnita, e ele parece mais confiável”, afirma
Orsina.
Di Maio
tentou se vacinar contra isso nos últimos meses, desde que foi proclamado
candidato com 30.936 votos dos 37.442 totais. Menos de um em cada quatro
filiados participou. Mas com ele chegou a emancipação em relação a Grillo –
ausente na campanha – e a terceira mutação. Aproximou-se da entidade patronal
das empresas e do Vaticano,
suavizou seu discurso antieuropeu e optou por priorizar sua relação com os EUA
(foi para lá a sua primeira viagem) em vez de continuar estimulando a narrativa
russa. “Busca se credenciar e assegurar os mercados internacionais e os
ambientes diplomáticos internacionais”, aponta Ilario Lombardo, do jornal La
Stampa.
Mas o
Movimento Cinco Estrelas tem poucas chances de governar a Itália. Primeiro
porque precisaria alcançar mais de 40% dos votos. Se não, deveria renunciar à
sua promessa de não formar alianças e encontrar alguém disposto a sair na mesma
foto. Se isso ocorrer, acredita Orsina, faltará equipe. “Uma classe dirigente é
um organismo. É exatamente o que aconteceu com Raggi. Quando ganharam em Roma,
uma cidade muito complexa de administrar, tiveram que procurar cem pessoas
potentes, honestas e competentes com as quais a prefeita se entendesse. E Raggi
não encontrou cem, nem dez, nem três. Passou o primeiro ano pensando em quem
colocar. Mas para governar um país são necessárias mil pessoas. E eles não as
têm.” A pergunta, como sempre, é se os outros têm.
EL PAÍS
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