Demétrio Magnoli
Na era Lula, acadêmicos eram
militantes partidários. Agora, eles ingressam no ofício de marqueteiros
A
campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada película que ainda
separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O ácido foi derramado
pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma disciplina intitulada
“O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.
Uma
reclamação imprópria do ministro da Educação serviu como pretexto para que
dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo intelectual, ofertando
disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp, UFBA, Ufam e outras. Na
“era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos a militantes
partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de marqueteiros.
O
vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo suas necessidades
biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo com as
circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a militância,
na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o PT anunciou
a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o MDB e as siglas
do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para denunciar o veto
legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a dizer sobre as
funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos que a
reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a
instituição na qual trabalham.
Na UFBA,
a disciplina decola no golpe do Estado Novo, transita pelo golpe de 1964 e
aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma etapa de “autoritarismo”. As leis
de exceção, a proibição de partidos, a cassação de parlamentares, as prisões
políticas, a tortura, a censura, a repressão a manifestações —nada disso
aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu à letra da Constituição e procedeu
segundo regras ditadas pelo STF. Por qual motivo, além da fidelidade ao
partido, a disciplina não contempla o “golpe de 1992” (ou seja, o processo de
impeachment contra Collor)?
“O
discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer
interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente Felipe Miguel em
defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina acadêmica. Ocorre que
a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é estranha à investigação
científica. O discurso científico distingue-se do discurso político-ideológico
por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é proibido fabricar uma
conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A disciplina dos neomarqueteiros
não peca por “parcialidade”, mas por violar o método científico.
A
prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades nem sempre conduziu à
dissolução do método científico. Os professores socialistas ou comunistas do
passado separavam sua militância partidária de seu trabalho acadêmico, pois
acreditavam que a transformação social não seria produzida por eles, mas por
uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT coincidiu com o descrédito da
ideia revolucionária —eabriu caminho para o vale tudo intelectual.
Na
confusa ideologia original petista, o socialismo nasceria “por cima”, pela
construção de uma hegemonia social da esquerda, não da anacrônica insurreição
proletária. A missão exigiria a produção de um direito, uma história, uma
sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na mente dos quadros acadêmicos
petistas, a fronteira entre discurso científico e discurso ideológico aparecia
como uma conservadora exigência de “imparcialidade” destinada a proteger “as
elites”.
Os
professores que se entregam ao marketing lulista pertencem à geração de
estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando os mais ingênuos, eles
já desistiram do objetivo socialista, contentando-se hoje com uma migalha: o
sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de 2016” —eis o título para uma
disciplina útil.
Folha de São Paulo
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