Carlos Coelho
Innocence Project existe nos Estados
Unidos há 25 anos. No Brasil, nem dados confiáveis há sobre inocentes
condenados injustamente
Quando
um dos documentários de mais sucesso da Netflix, “Making a Murderer”, estreou
no Brasil, em 2015, o vendedor Atercino Ferreira de Lima Filho lutava há 13
anos para provar sua inocência. Acusado de abusar sexualmente de seus próprios
filhos em 2002, quando eles tinham 6 e 8 anos, o paulista estava prestes a
encarar um inferno.
Em
fevereiro de 2017, foi condenado e mandado para a prisão, em Guarulhos, onde
teria de cumprir 27 anos trancafiado. A condenação se deu na base de
depoimentos das crianças na época, infladas pela ex-mulher de Atercino, mãe das
crianças, e uma amiga. Felizmente, seu calvário durou bem menos. No começo
deste mês, o vendedor teve sua condenação revista e foi considerado inocente.
Está de volta às ruas (leia mais
abaixo).
A
semelhança com a série documental não está apenas na luta pela inocência –
“Making a Murderer” conta a história do norte-americano Steven Avery, condenado
por homicídio em um caso duvidoso. Assim como Avery, Atercino contou com a
ajuda de uma rede de advogados voluntários, ávidos por corrigir erros da
Justiça e melhorar os processos judiciais: o Innocence Project. Lá, ele existe
há 25 anos. Aqui, chegou no ano passado. No Brasil, esta foi apenas a primeira
vitória da inciativa.
É um
cenário preocupante na medida em que a população carcerária cresce no país –
hoje são mais de 726 mil pessoas com alguma restrição de liberdade no país,
cerca de 40% delas presas à espera de julgamento. O Innocence Project Brasil
quer esvaziar as celas. Do jeito correto: tirando quem não deveria estar lá.
Desse montante carcerário é impossível levantar estatisticamente quantas
pessoas são inocentes.
“Mas a
sensação que temos é que estamos levantando um tapete e embaixo dele há muita
coisa para aparecer”, comenta a criminalista Flavia Rahal, diretora do projeto
e uma das responsáveis por implantá-lo em solo nacional. “Tanto que estamos
recebendo muito pedidos de auxílio em um momento em que o projeto ainda está
muito discreto”, diz. São 250 a 300 no banco de dados do site oficial; 18 deles
estão em um processo mais avançado, de análise.
O que
todas essas pessoas procuram é uma voz capaz de salvá-las de uma condenação.
Mas o Innocence quer mais que isso. “Não queremos provar simplesmente que
aquela condenação não tem sustentação, mas, sim, que a pessoa é inocente. É uma
postura mais pró-ativa. É uma busca por elementos que provem aquela inocência”,
destaca a advogada.
Para que
a ONG assuma essa responsabilidade, porém, é preciso preencher requisitos
básicos. “Nós temos critérios objetivos para poder aceitar um caso. Nem todas
as pessoas que nos procuram estão diante de um fato que seja conceituado como
erro Judiciário. Uma das coisas que pedimos é para saber se aquele caso já foi
definitivamente julgado. Se já há o trânsito em julgado. É a partir de uma
decisão concreta que podemos tratar como um erro”, diz. É a esperança quando
não cabe recurso.
Para
reverter o julgado, o grupo é formado pela coordenação e direção, mas com
auxílio de profissionais e de estudantes. Há também consultores, como
psicólogos e peritos criminais. Mas o “núcleo duro” é de criminalistas, a
formação do trio que fundou o projeto no Brasil. É uma rede do bem, na qual
ninguém ganha nada no sentido monetário – mas muito no de dever
cumprido.
Uma dos
pontos do projeto é criar um banco de dados sobre as principais causas das
condenações equivocadas. “Trazer liberdade e reconhecimento para um inocente é
uma coisa que nos move. Mas, além disso, queremos por meio destes casos olhar
para o sistema da Justiça criminal e descobrir quais são as razões para os
erros. Com isso você tem um aprimoramento no sistema de Justiça. Uma melhoria”,
diz a diretora. “Temos a pretensão de conseguir mudanças legislativas,
alterações de determinadas práticas que acabam nos levando a erro”, afirma.
Efeito midiático
Após o
efeito midiático, o Innocence Project Brasil deve ter uma explosão, espera a
direção. Não apenas no número de casos enviados, mas também de voluntários
interessados em ajudar. Uma equipe que, quanto maior, mais poderá efetivamente
tirar inocentes da prisão, como Atercino.
No caso
do vendedor, em 2012, um dos filhos mudou seu depoimento e afirmou ter sido
coagido pela mãe e uma amiga dela. Há dois anos, foi a vez da filha. Ambos
sofreram violência nas mãos das duas. De posse das novas informações e com a
presença dos advogados voluntários, a Justiça
reconheceu a inocência do paulista.
“Só quero comer uma bela pizza”, disse ele a repórteres em sua saída da prisão,
na sexta-feira (2). Acabou em pizza. Da melhor forma possível.
Sem dados oficiais
O
Innocence Project pode ser o início de um estudo estatístico importante no
Brasil. Atualmente, as vítimas do sistema judicial são tratadas quase como
invisíveis. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen) não tem estudos sobre
os condenados injustamente. Tampouco o Conselho Nacional de Justiça. Os
levantamentos existentes são independentes. Em 2016, Instituto Sou da Paz em
parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da
Universidade Cândido Mendes apontava haver, só no Rio de Janeiro, 772 pessoas
presas erroneamente em flagrante.
“Estamos
na Idade Média. Em crimes de homicídio, as principais provas são depoimentos e,
algumas vezes, uma mal-ajambrada confissão do réu. Os exames necroscópicos
normalmente ajudam a explicar algumas coisas, mas não trazem certeza sobre a
autoria. Nas melhores hipóteses, consegue-se um confronto entre a arma
encontrada com o réu e o exame balístico”, declarou Fábio Tofic,
vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) à agência O
Globo.
“Além
disso, há a questão da preservação da prova ao longo da sua movimentação.
Algumas vezes as provas são esquecidas anos em um saquinho plástico guardado
num armário de delegacia”, relata.
Gazeta do Povo
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