Felippe
Hermes
A histórica rejeição por unanimidade das contas do governo Dilma
Rousseff no Tribunal de Contas da União (TCU), pela primeira vez na história,
terminou dando forma a uma acusação repetida a exaustão nos últimos meses, não
muito bem clara para a maioria esmagadora da população brasileira: o crime
envolvendo as pedaladas fiscais (ou fraudes contábeis, em bom português).
Após o anúncio, além do placar de 9×0, dois números chamaram a
atenção. O relator do caso, ministro Augusto Nardes, apontou que as irregularidades
atingiram a soma de R$ 106 bilhões apenas no ano de 2014 (sendo R$ 40 bilhões
apenas nas pedaladas). Em outro momento, o ministro trouxe à tona o
estarrecedor número de R$
2,3 trilhões, referente a um déficit atuarial, acusando o governo Dilma de ter
“feito sumir” este valor de seu balanço. Não demorou muito tempo para que
o número circulasse em comparações com o esquema do Petrolão, que causou
prejuízos de R$ 88 bilhões à Petrobras. Não faltaram acusações de que o Partido
dos Trabalhadores embolsou esse dinheiro.
Neste caso, porém, as coisas não são exatamente o que parecem- e a ignorância econômica definitivamente não deve se tornar uma
arma contra um governo cuja defesa está toda pautada em explorar a ignorância
econômica alheia.
O atuarial da expressão refere-se às ciências atuariais, uma
ciência que lida diretamente com o risco e é fundamental para estruturar
questões relativas à previdência ou seguro, por exemplo. Fortemente focada em
conhecimento da matemática, muitas vezes complexa e pouco acessível, as
ciências atuariais são geralmente desconhecidas para a maior parte da
população. Alguns conceitos, porém, são mais simples do que parecem e não
requerem que você seja um grande conhecedor de estatística ou ministro de um
Tribunal de Contas para entender. Um deles é exatamente o conceito de déficit
atuarial.
Déficit atuarial nada mais é do que a soma do descompasso entre
receitas e despesas de um regime previdenciário, e este é exatamente o caso da
previdência brasileira. Baseada em 2 grandes grupos divididos em outros 2, a
previdência pública brasileira é um grande problema com prazo para ser
solucionado. Esta é a conclusão possível de se tirar do déficit apresentado
pelo ministro.
O primeiro deles e mais amplo regime de previdência no Brasil é o
Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que inclui trabalhadores urbanos e
rurais, e conta com mais de 24 milhões de beneficiários. O segundo e mais
restrito, o Regime de Previdência Própria dos Servidores (dividido entre civis
e militares), conta com pouco mais de 1 milhão de beneficiários.
Representando nada
menos do que 42% dos gastos primários da União (excluindo-se despesas
financeiras), a previdência brasileira possui
um déficit de R$ 112 bilhões. Para o espanto de muita
gente, porém, o maior déficit não está com os 24 milhões de beneficiários do
INSS – sujeitos ao fator previdenciário e a recorrentes corrosões em seus
benefícios. O
déficit dos 670 mil civis e dos 270 mil militares é de cerca de R$ 62 bilhões,
contra R$ 50 bilhões dos beneficiários do INSS. O descompasso apontado pelo ministro,
portanto, é a soma destes déficits até o prazo do último beneficiário receber.
Mas então, o que há de errado na previdência brasileira? A grande
questão para entender por que o ministro considera que este déficit deve ser
assumido pelo governo reside justamente no fato da nossa previdência ser um
regime em que quem contribui sustenta quem está aposentado, e assim
sucessivamente. Ao contrário da maioria dos países, o dinheiro que você
contribui para a previdência não é um dinheiro seu. Este sistema tem prazo
limitado. Em 2000 haviam 11,5 pessoas contribuindo para cada beneficiário. Em 2060, a projeção é de que sejam 2,3
para cada beneficiário, tornando a conta inviável e forçando um aumento dos
gastos de impostos para cobrir os rombos.
Não se trata, portanto, de um dinheiro que tenha sido mal gasto ou
embolsado pelos membros do governo. Os
tais R$ 2,3 trilhões não estão na conta de um membro do partido ou da própria
presidente, mas sim em uma projeção futura de gastos não contabilizada no
orçamento federal.
Trata-se de mais um caso inequívoco de como a ignorância é uma
faca de dois gumes. Em outra ocasião, não faltou quem dissesse que o
ex-governador de Minas, Aécio Neves, havia desviado R$ 4 bilhões da saúde no
estado. O termo desviado foi notoriamente utilizado como
roubo, quando na realidade se refere a um desvio de função. Os recursos foram
utilizados em outra área que não aquela previamente determinada (algo que
ocorre em mais de 2/3 dos estados brasileiros).
O que é possível fazer para resolver a questão? Durante
décadas a previdência funcionou como um caixa extra para o governo. Milhões de
trabalhadores contribuíam mensalmente para bancar poucos beneficiários, levando
a diferença para a conta do governo, que passou a gastar os recursos sem se
preocupar em poupá-los. Em boa parte dos países este modelo inexiste – substituído
por outro, o modelo de capitalização, onde os recursos pagos à previdência vão
para uma conta que tem por intuito gerar rendimentos para bancar a previdência
futura.
Este é o modelo que o governo tem buscado adotar com os servidores
(apesar da ampla rejeição de sindicatos que acusam o Planalto de
privatizar a previdência).
Para os trabalhadores comuns, entretanto, a opção de poder
escolher entre a mais eficiente forma de acumular recursos ainda é uma
realidade distante. Os trabalhadores brasileiros continuam bancando um modelo
ineficiente e que a cada ano impõem maiores restrições. A maior delas, o fator
previdenciário, continua em vigor e é muitas vezes apontada como uma solução
pelo governo. Trata-se
de uma tentativa de reduzir os benefícios pagos para mascarar a realidade e
manter as aparências de viabilidade do regime.
Os problemas apontados pelo ministro, porém, vão um pouco além
deste. As pedaladas são uma realidade incômoda e põem em risco algo conquistado
a duras penas no país: a responsabilidade fiscal. Pilar da bem sucedida
política de crescimento adotada pelo país entre 2000 e 2009, a Lei de
Responsabilidade Fiscal, apesar de não estar totalmente adaptada ao governo
federal, serviu para balizar o comportamento esperado de um Estado moderno. Durante
mais de um século as relações entre governos e bancos públicos foram as mais
promíscuas possíveis. Caixa e Banco do Brasil serviram de base para a expansão
descontrolada de gastos públicos e uma das maiores crises de inflação da
história mundial.
A melhora nas práticas de gestão levaram o país a considerar
irregular o uso de recursos de bancos públicos como recursos do governo,
tornando-se assim crime o que foi realizado à exaustão durante o ano de 2014,
quando Caixa e Banco do Brasil utilizaram dinheiro próprio para bancar gastos
de benefícios como o Bolsa Família. Em suma, o governo atrasou os repasses à
Caixa durante meses, deixando a conta no vermelho para ser coberta pelo próprio
banco. Esse é, na essência, o legado positivo da rejeição das contas do governo
pelo TCU. A decisão do tribunal põe um mais do que necessário freio às
políticas expansionistas do governo que nos levaram à crise atual.
Nenhum governo, afinal, está acima da lei e
pode se utilizar de fraude para agir.
Spotniks
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