Sérgio Moro
A corrupção faz parte da condição
humana. Isso não é um álibi, mas uma constatação. Sempre haverá quem,
independentemente das circunstâncias, ceda à tentação do crime.
Outro fenômeno é a corrupção
sistêmica, na qual o pagamento de propina torna-se regra nas transações entre o
público e o privado. Isso não significa que todos são corruptos ou que todas as
interações entre agentes privados e públicos envolvam sempre propina. Mas, na
corrupção sistêmica, o pagamento da propina, embora não um imperativo absoluto,
torna-se um compromisso endêmico, a regra do jogo, uma obrigação consentida
entre os participantes, normalmente refletida no pagamento de percentuais fixos
de comissões sobre contratos públicos.
OS CUSTOS SÃO GIGANTESCOS
A economia perde eficiência. Além dos
custos óbvios da propina, normalmente inseridos nos contratos públicos,
perde-se a racionalidade na gestão pública, pois a apropriação dos valores
passa a guiar as decisões do administrador público, não mais tendo apenas por
objetivo a ótima alocação dos recursos públicos. Talvez seja ela a real
motivação para investimentos públicos que parecem fazer pouco sentido à luz da
racionalidade econômica ou para a extraordinária elevação do tempo e dos custos
necessários para ultimação de qualquer obra pública.
Mais do que isso, gera a progressiva
perda de confiança da população no estado do direito, na aplicação geral e
imparcial da lei e na própria democracia. A ideia básica da democracia em um
estado de direito é a de que todos são iguais e livres perante a lei e que,
como consequência, as regras legais serão aplicadas a todos, governantes e
governados, independentemente de renda ou estrato social.
Se as regras não valem para todos, se
há aqueles acima das regras ou aqueles que podem trapacear para obter vantagens
no domínio econômico ou político, mina-se a crença de que vivemos em um governo
de leis e não de homens. O desprezo disseminado à lei é ainda um convite à
desobediência, pois, se parte não segue as regras e obtém vantagens, não há
motivação para os demais segui-las.
Pior de tudo, a corrupção sistêmica
impacta o sentimento de autoestima de um povo. Um povo inteiro que paga propina
é um povo sem dignidade.
Pode-se perquirir quando o problema começou, mas a questão mais relevante é indagar como sair desse quadro.
Há uma tendência de responsabilização
exclusiva do poder público, como se a corrupção envolvesse apenas quem recebe e
não quem paga. A iniciativa privada tem um papel relevante no combate à
corrupção. Cite-se o empresário italiano Libero Grassi. Em ato heroico, no
começo da década de 90 na Sicília, denunciou publicamente a extorsão mafiosa,
recusando-se a pagar propina. Ficou isolado e pagou com a vida, mas seu exemplo
fez florescer associações como o Addiopizzo, que reúne atualmente centenas de
empresários palermitanos que se recusam a ceder à extorsão. Não se pretende que
empresários daqui paguem tão alto preço para tornarem-se exemplos, mas, por
vezes, poderão se surpreender como a negativa e a comunicação às autoridades de
prevenção, que podem mostrar-se eficazes.
Mas o poder público tem igualmente um
papel relevante. As regras de prevenção e repressão à corrupção já existem. É
preciso vontade para torná-las efetivas. Se a Justiça criminal tratasse a
corrupção com um terço da severidade com que lida com o tráfico de drogas, já
haveria uma grande diferença. Em parte, a inefetividade geral da lei contra a
corrupção e contra figuras poderosas é um problema de interpretação e não de
falta de regras. O exemplo do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação
Penal 470 deve ser um farol a ser considerado por todos os juízes.
Dizer que as regras existem não
significa que não é preciso melhorá-las.
O que mais assusta, em um quadro de
naturalização da propina, é a inércia de iniciativas para a alteração das
regras legais que geram as brechas para a impunidade. O processo penal deve
servir para absolver o inocente, mas também para condenar o culpado e, quando
isso ocorrer, para efetivamente puni-lo, independentemente do quanto seja
poderoso.
Não é o que ocorre, em regra, nos
processos judiciais brasileiros. Reclama-se, é certo, de um excesso de punição
diante de uma população carcerária significativa, mas os números não devem
iludir, pois não estão lá os criminosos poderosos. Para estes, o sistema de
Justiça criminal é extremamente ineficiente. A investigação é difícil, é certo,
para estes crimes, mas o mais grave são os labirintos arcanos de um processo
judicial que, a pretexto de neutralidade, gera morosidade, prescrição e
impunidade.
Um processo sem fim não garante
Justiça. Modestamente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil apresentou
sugestão ao Congresso Nacional, o projeto de lei do Senado 402/2015, que visa
eliminar uma dessas grandes brechas, propiciando que, após uma condenação criminal,
em segunda instância, por um Tribunal de Apelação, possa operar de pronto a
prisão para crimes graves e independentemente de novos recursos.
Críticos do projeto apressaram-se em
afirmar que ele viola a presunção de inocência, que exigiria o julgamento do
último recurso, ainda que infinito ou protelatório. Realisticamente, porém, a
presunção de inocência exige que a culpa seja provada acima de qualquer dúvida
razoável, e o projeto em nada altera esse quadro.
Não exige, como exemplificam os Estados
Unidos e a França, países nos quais a prisão se opera como regra a partir de um
primeiro julgamento e que constituem os berços históricos da presunção de
inocência recursos infinitos ou processos sem fim. O projeto não retira poderes
dos Tribunais Superiores que, diante de recursos plausíveis, ainda poderão
suspender a condenação. Os únicos prejudicados são os poderes da inércia, da
omissão e da impunidade.
Mas há alternativas. Em sentido
similar, existe a proposta de emenda constitucional 15/2011, originária de
sugestão do ministro Cezar Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. O
Ministério Público Federal apresentou dez propostas contra a corrupção que
deveriam ser avaliadas pelo governo e pelo Congresso, assim como os projetos
citados, com a seriedade que a hora requer.
O fato é que a corrupção sistêmica
não vai ceder facilmente. Deve ser encarada da forma apropriada, não como um
fato da natureza, mas como um mal a ser combatido por todos. Os tempos atuais
oferecem uma oportunidade de mudança, o que exige a adoção, pela iniciativa
privada e pela sociedade civil organizada, de uma posição de repúdio à propina,
e, pelo Poder Público, de iniciativas concretas e reais, algum ativismo é
bem-vindo, para a reforma e o fortalecimento de nossas instituições contra a
corrupção.
Milhões já foram às ruas protestar contra a corrupção, mas não surgiram respostas institucionais relevantes. O tempo está passando e o momento, em parte, está sendo perdido.
Milhões já foram às ruas protestar contra a corrupção, mas não surgiram respostas institucionais relevantes. O tempo está passando e o momento, em parte, está sendo perdido.
Sérgio Fernando Moro
Professor Universitário e
juiz da 13a Vara Federal em Curitiba.
Globo. 04.10.15.
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