Murillo
Camarotto
Tese da
'privatização de tudo' é tão infantil quanto demonização
Uma vítima do Estado Islâmico. Foi assim que o último presidente dos
Correios se sentiu ao ver a cena de um boneco feito em sua
"homenagem" arder em chamas numa praça de Campinas, no interior
paulista. Colocado no comando da estatal por Gilberto Kassab, onipresente
governista, Guilherme Campos deixou o cargo para concorrer à Câmara dos
Deputados, mesmo com a sua popularidade em cinzas.
Mais ou menos na mesma época, seis vice-presidentes da Caixa Econômica
Federal foram praticamente enxotados porta afora do banco, sob suspeitas de
usarem os cargos no atendimento de interesses particulares e, principalmente,
de seus padrinhos políticos.
Para se salvar da segunda denúncia oferecida pelo Ministério Público,
Michel Temer teve que receber no Jaburu um dos padrinhos políticos mais
bem-sucedidos da República. Na lista de pedidos de Valdemar Costa Neto,
presidente do PR, constavam a reabertura do Aeroporto da Pampulha, em Belo
Horizonte, e a exclusão de Congonhas do programa de concessões. O objetivo era
claro: garantir influência e caixa para a Infraero, que é controlada por seu
partido.
Com tantas intempéries, não é de se estranhar a mistura de satisfação
e alívio com que Temer anunciou - em um vídeo nas redes sociais - a assinatura
do decreto que deu início aos trâmites para a privatização da Eletrobras.
Historicamente cobiçadas por políticos de todos os credos, algumas estatais vêm
se tornando verdadeiros micos, onde a multiplicidade de problemas acaba
superando as vantagens de administrá-las.
Não é à toa que, diferentemente do que se viu em eleições passadas,
vários políticos estão defendendo abertamente as privatizações, mesmo com
pesquisas mostrando que a população ainda é resistente a elas. Em 2006, o
presidenciável Geraldo Alckmin teve que vestir um colete da Petrobras para se
afastar do que mais tarde veio a ser chamado de "privataria tucana".
Dificilmente ele fará algo parecido em sua segunda tentativa de morar em
Brasília.
Quase ninguém o fará, com exceção dos candidatos mais à esquerda.
Também é verdade que a postura infantilizada de demonizar o assunto encontra no
flanco oposto um discurso quase tão precário quanto. Os chamados ultraliberais
entraram no jogo eleitoral deste ano com o discurso de "privatizar
tudo", um factoide que só serve para ilustrar a dimensão do despreparo
para assumirem as rédeas do país.
Apontada por pesquisa recente do Datafolha como a maior preocupação
dos brasileiros, a corrupção foi a trilha encontrada para tornar as
privatizações mais palatáveis. Encolher a máquina pública, diz a tese, reduz
automaticamente a oferta de comida para as aves de rapina.
Faz até algum sentido, mas não é só isso. Estudioso das estatais, o
professor do Insper Sérgio Lazzarini lembra que as privatizações podem abrir
oportunidades para grandes negociatas, como se viu em um passado não muito
distante. O maior problema, contudo, é a complexidade dos processos, ignorada
solenemente pelos devotos do Estado raquítico.
"E os empregados? E o fundo de pensão? E o passivo contingente?
Para cada caso desses, tem que fazer tanta coisa estruturada que quem chegar aqui
e falar que vai privatizar desse jeito não conhece o assunto", explica
Fernando Soares, titular da Secretaria de Coordenação e Governança das
Estatais, ligada ao Ministério do Planejamento.
No cargo há quase dois anos, Soares recebeu a missão de analisar todas
as possibilidades de privatização. Elas não são poucas, de fato, mas é bom que
o próximo presidente não se iluda com a capacidade de torná-las realidade.
"Não é só questão de apoio da sociedade. O passo a passo disso é quase
heroico. Surgem tantos problemas e tantas dificuldades que, quando você vence
tudo, gastou dois anos na privatização de uma empresa".
Sozinho, o processo de capitalização da Eletrobras consome
praticamente toda a capacidade operacional da administração pública nessa área.
Mesmo se o governo quisesse, não conseguiria tocar nenhuma outra privatização
relevante em paralelo. A ausência de privatizações durante os 13 anos do
governo petista resultou em toda uma geração de técnicos sem expertise no
assunto, especialmente no BNDES, que é o órgão responsável pela coordenação do
Programa Nacional de Desestatizações.
A redução do número de empresas estatais, hoje são 146, está
diretamente vinculada à equação fiscal. Se é verdadeira a necessidade de uma
readequação do Estado à realidade de suas receitas, o debate sobre as
privatizações se faz obrigatório no processo eleitoral deste ano. Indispensável
que a abordagem se dê em bases menos grosseiras, que mirem tanto a inutilidade
de algumas estatais quanto o papel social de outras.
Quando o próximo presidente assumir, a Eletrobras ainda não será
privada. Projeções mais otimistas apontam para um desfecho do processo no meio
de 2019. Quando a privatização for concluída, o governo terá se livrado não só
da empresa, mas de suas 38 subsidiárias. No ano passado, o grupo apresentou um
prejuízo de R$ 1,72 bilhão.
A tendência atual é de que o enxugamento de estatais continue, podendo
cair para menos de 100 empresas no médio prazo. Não é só por meio da venda que
se pode diminuir o peso delas para o Estado. Alternativas como liquidação,
extinção, abertura de capital e joint ventures devem estar permanentemente no
radar.
Aprovada em 2016, a Nova Lei das Estatais representou um avanço importante,
ao colocar mais entraves às indicações políticas. Se não barrou completamente a
entrega das empresas aos afilhados, a legislação ajuda a qualificar um pouco
mais as indicações.
Apesar de mais problemáticas, as estatais continuam sendo um filão considerável
para o fatiamento político do Estado, como se pôde ver na tentativa recente de
privatização da Casa da Moeda. O governo engavetou a ideia após protestos do
PTB, que segundo uma fonte do Planalto se abrigou na estatal como os
personagens do seriado espanhol "La Casa de Papel".
Valor Econômico
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