Cora
Rónai
A sociedade
dá de ombros, vencida pela inércia
Um país não vai para o brejo de um momento para o outro — como se
viesse andando na estradinha, qual vaca, cruzasse uma cancela e, de repente,
saísse do barro firme e embrenhasse pela lama. Um país vai para o brejo aos
poucos, construindo a sua desgraça ponto por ponto, um tanto de corrupção aqui,
um tanto de demagogia ali, safadeza e impunidade de mãos dadas. Há sinais
constantes de perigo, há abundantes evidências de crime por toda a parte, mas a
sociedade dá de ombros, vencida pela inércia e pela audácia dos canalhas.
Aquelas alegres viagens do então governador Sérgio Cabral, por
exemplo, aquele constante ir e vir de helicópteros. Aquela paixão do Lula pelos
jatinhos. Aquelas comitivas imensas da Dilma, hospedando-se em hotéis de luxo.
Aquele aeroporto do Aécio, tão bem localizado. Aqueles jantares do Cunha.
Aqueles planos de saúde, aqueles auxílios moradia, aqueles carros oficiais.
Aquelas frotas sempre renovadas, sem que se saiba direito o que acontece com as
antigas. Aqueles votos secretos. Aquelas verbas para “exercício do mandato”.
Aquelas obras que não acabam nunca. Aqueles estádios da Copa. Aqueles
superfaturamentos. Aquelas residências oficiais. Aquelas ajudas de custo.
Aquelas aposentadorias. Aquelas vigas da perimetral. Aquelas diretorias da
Petrobras.
A lista não acaba.
Um país vai para o brejo quando políticos lutam por cargos em
secretarias e ministérios não porque tenham qualquer relação com a área, mas
porque secretarias e ministérios têm verbas — e isso é noticiado como fato
corriqueiro da vida pública.
Um país vai para o brejo quando representantes do povo deixam de ser
povo assim que são eleitos, quando se criam castas intocáveis no serviço
público, quando esses brâmanes acreditam que não precisam prestar contas a
ninguém — e isso é aceito como normal por todo mundo.
Um país vai para o brejo quando as suas escolas e os seus hospitais
públicos são igualmente ruins, e quando os seus cidadãos perdem a segurança
para andar nas ruas, seja por medo de bandido, seja por medo de polícia.
Um país vai para o brejo quando não protege os seus cidadãos, não paga
aos seus servidores, esfola quem tem contracheque e dá isenção fiscal a quem
não precisa.
Um país vai para o brejo quando os seus poderosos têm direito a foro
privilegiado.
Um país vai para o brejo quando se divide, e quando os seus habitantes
passam a se odiar uns aos outros; um país vai para o brejo quando despenca nos
índices de educação, mas a sua população nem repara porque está muito ocupada
se ofendendo mutuamente nas redes sociais.
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O Brasil caminha firme em direção ao brejo há muitas e muitas luas,
mas um passo decisivo nessa direção foi dado quando Juscelino construiu
Brasília, aquela farra para as empreiteiras, e quando parlamentares e
funcionários públicos em geral ganharam privilégios inéditos em troca do
“sacrifício” da mudança para lá.
Brasília criou um fosso entre a nomenklatura e os cidadãos comuns. A
elite mora com a elite, convive com a elite e janta com a elite, sem vista para
o Brasil. Os tempos épicos do faroeste acabaram há décadas, mas os privilégios
foram mantidos, ampliados e replicados pelos estados. De todas as heranças
malditas que nos deixaram, essa é a pior de todas.
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Acho que está rolando uma leve incompreensão dos reais motivos de
mobilização da população em alguns setores. Eles parecem acreditar que o MBL e
o Vem Pra Rua falam pelos manifestantes, ou têm algum significado político,
quando, na verdade, esses movimentos funcionam mais como agentes de mobilização
— afinal, alguém precisa marcar uma data e um horário, ou nenhuma manifestação
acontece.
A maioria das pessoas que foi às ruas está pouco se lixando para eles.
Seu alvo primordial é gritar contra a corrupção, a sordidez que rege a vida
política brasileira, a bagunça geral que toma conta do país. Seu principal
recado é o apoio à Lava-Jato, que parece ser a única coisa que funciona num
cenário em que o resto se desmancha.
Se ninguém fez muita questão de gritar #ForaTemer nos protestos de
domingo passado, isso talvez se deva menos a palavras de ordem vindas de carros
de som do que a dois fatos bastante simples. O primeiro é que está implícita na
insatisfação popular a insatisfação com Temer, e naquele momento parecia mais
urgente responder aos insultos do Congresso; o segundo é que há uma resistência
natural a se usar uma palavra de ordem criada pelo “outro lado”, pela turma que
acredita na narrativa do golpe.
______
Gilmar Mendes disse que a decisão de Marco Aurélio Mello de afastar
Renan da mesa do Senado é “indecente”. Não, ministro. Pode ser qualquer outra
coisa, mas indecente não é. Indecente é um homem como Renan Calheiros ocupar a
mesa do Senado. Aliás, indecente é um homem como Renan Calheiros, que já
renunciou ao mandato para não ser cassado e tem mais prontuário do que
biografia.
Com todo o respeito, ministro, o senhor precisa rever as suas
prioridades e dar um trato nos seus adjetivos.
O Globo
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